Archive by Author | Anabela Ramos

bolos de bacia

A Simone é brasileira. Vive há uns bons anos em Braga e diz que não tem saudades de voltar ao Brasil. Só da família. Um destes dias, enquanto me arranjava as unhas, fomos pelo Sertão adentro. Contou-me que nasceu e viveu no mato, enquanto criança. Falou-me da casa simples feita de adobe; dos banhos no rio; da noite escura, sem qualquer luz, porque era preciso poupar o querosene; do milho que se transformava em cuscuz para se comer ao pequeno almoço; da mandioca e da trabalheira que era transformá-la em farinha; das frutas que havia por todo lado, e que nós nem imaginamos os sabores e as variedades; das idas à feira, uma vez por mês, para vender fruta e comprar querosene; dos avós e em particular da avó, uma mulher dura que mandava em tudo, sofredora o suficiente para aguentar a vida no mato e o nascimento de 18 filhos; do apelido Rocha, quiçá, descendente de portugueses; das cobras que atormentavam o quotidiano, com o seu canto perturbador, e de uma anaconda que um dia resolveu enrolar-se numa mangueira centenária…

A conversa derivou para os doces

Mas falámos também dos doces. Não havia doces, dizia ela, só uma vez por mês quando iam à feira e o avô permitia a compra de quebra-queixo, um doce vendido em tabuleiro feito de coco e açúcar. Mas lá foi falando, também, do pé de moleque, que a avó fazia de vez em quando, um creme doce feito à base de leite de coco, ovos e farinha de mandioca, que ía a cozer ao forno embrulhado em folha de bananeira; da rapadura, feita com a cana de açúcar, tão dura que quase partia os dentes, e dos bolos de bacia feitos pela mãe, num tempo mais tardio, quando já viviam na cidade. Foi aqui que me deu um clique. Bolos de bacia? E como eram feitos? – perguntei. Eram uns bolinhos fritos feitos de farinha, leite, às vezes ovos, tudo amassado, colherada a colherada no óleo quente, e no final envolvidos em açúcar. Ora, desses também eu comi quando era criança, respondi-lhe. A minha mãe também fazia estes bolinhos, mas não lhe dava nome nenhum. Chamava-lhe simplesmente bolo fritos.

Um doce com história

Todavia, aquela denominação era-me familiar porque a encontro em receituários do século XVII e XVIII. Os bolos de bacia são uma espécie de bolo tradicional português de épocas mais antigas. A receita está registada no primeiro livro impresso de cozinha português, da autoria de Domingos Rodrigues, editado em 1680, mas encontramo-la também num outro receituário manuscrito, com data atribuída de meados do mesmo século, e na obra do espanhol Francisco Martinez Moutiño, editada pela primeira vez em 1611. E continua pelo século XVIII a ser anotada em outros receituários. Tudo isto nos faz perceber que já se fazem bolos de bacia desde o século XVI, sendo as receitas muito similares. Contudo, nada têm a ver com esta versão brasileira de finais do século XX.

Os tais bolos de bacia eram feitos com massa finta, esticada ao tamanho da bacia (tabuleiro), recheada com diferentes ingredientes, conforme as posses e as circunstâncias, em camadas alternadas de massa e recheio, e levada ao forno na dita bacia devidamente untada. Domingos Rodrigues, a cozinhar para a família real, sugere um recheio de amêndoa pisada, manjar branco e ovos moles. A receita de meados do século XVII apenas utiliza açúcar.

Ora, esta receita deve ter sido levada para o Brasil, numa altura em que os dois países eram um só, num abraço de duas vivências, bem diferentes, havendo uma clara troca de sabores e saberes. No Brasil do século XVII (e nos séculos seguintes) não abundava o trigo para fazer pão. Olhando o receituário brasileiro percebemos a existência de uns bolos de bacia à moda de Pernambuco, feitos com farinha de mandioca e coco. O nome manteve-se, mas a receita foi-se alterando à medida dos recursos existentes. Na região de Alagoas, nos anos 80, a mãe da Simone fazia uns bolos de bacia, com poucos recursos e sem irem ao forno. Um docinho com que alegrava o lanche das filhas. Nesta longa duração as receitas foram-se alterando porque as pessoas, os gostos e os recursos também mudaram. Em Portugal o nome e o doce perderam-se no tempo. O Brasil, porém, mantém esta tradição de continuar a usar palavras que os portugueses já esqueceram há muito.

Bolos de bacia, uma designação secular que fica bem num doce moderno! Um encontro de culturas e de identidades culinárias!

A Receita

Para quem quiser perder algum tempo na cozinha e depois refastelar-se com um docinho cheio de história:

Bolos de basia (1)

Tomarão massa de boum pão molete (2) quando está pera deitar no forno, e fasão folhas desta maneira: molharão hũa piquena de massa em manteiga derretida, e estenda-na quanto puderem com a mão, e então toma-las-ão duas molheres, e estenda-nas ambas com os dedos o mais delgado que puderem, e ponha-na em hũa bacia de fartens, e antre folha e folha lhe deitem por sima delas duas ou 3es culher[es] de asuquere posto em ponto com hũa piquena de manteiga, e isto a cada folha até que seja da grandeza que quiserem. E então leve-no a cozer ao forno, e coza de seu vagar até que se embeba o asuquere nele.

  1. ADV, manuscrito 142, fl. 59. Publicada em: Ramos, Anabela e Claro, Sara – Alimentar o corpo, saciar a alma: ritmos alimentares dos monges de Tibães, séc. XVII. DRCN, Afrontamento, 2013, p. 214.
  2. Pão de trigo, mole, fresco e pequeno, semelhante à actual carcaça ou papo-seco.

  Hoje o dia está peneirado!

            A língua portuguesa, apesar de a tratarmos tão mal, com acordos mal engendrados e pouco esclarecedores, é de uma riqueza infindável e permanentemente viva, com novas palavras que emergem diariamente e outras que vão entrando em desuso.

            É desta riqueza que hoje venho falar porque um destes dias, numa manhã fria de Janeiro, ouvi a seguinte expressão a uma minhota de gema: “hoje o dia está peneirado”, referindo-se à geada que se tinha formado durante a noite e que tornava a paisagem branca como a farinha. Quando isto ouvi esbocei um sorriso pela beleza da expressão e, de imediato, o meu pensamento voou para alguém, qual figura alada, que, durante a noite, tivesse andado, montado num tapete voador ou numa nave espacial, com uma peneira e um saco de farinha a peneirar a terra. E tinha feito isto apenas porque lhe apetecia brincar, deixando os pobres terrestres a olhar o branco da paisagem e a tiritar de frio por uma horas, até vir o sol e, magicamente, desaparecer tudo até ao outro dia.

            Esta expressão levou-me para o linguajar regional e das palavras novas que aprendi quando vim residir para o Minho. Ainda não estou enraizada, mas, de vez em quando, já digo, sem me aperceber, uma ou outra palavra ou…um palavrão! É que de tal modo são comuns por estas bandas que à custa de tanto os ouvirmos começam a ser-nos familiares. Mas, ao inverso, também aprendi a não dizer certas palavras e expressões, mais típicas da região beirã, para não deparar com o olhar interrogado de alguns.

            Mas olhemos algumas diferenças do nosso linguajar. Comecemos pelo tempo meteorológico onde os minhotos têm algumas particularidades. Habituados a um clima mais ameno chamam “neve” à geada, e ao granizo, que nós chamamos “saraiva”, exageram um pouco e vem daí “pedraça”. Quando faz aguaceiros, entendem que há “chuveiros” e quando troveja dizem que “trovoa”.

            Para se referirem aos miúdos chamam-lhe “canalha”, o que para nós é um insulto, e a franja do cabelo são as “rêpas”. Na Beira “rêpas” é um cabelo mal penteado, por isso nunca disse no cabeleireiro que queria cortar as “rêpas”, sinto até algum pudor em utilizar a palavra. Assim como também ainda não consigo dizer “passador”, em vez do “travessão” ou gancho do cabelo.

             Na linguagem gastronómica também nos diferenciamos. Por exemplo, na Beira diz-se que o pão está “ressesso”, palavra que ninguém conhece no Minho. Aqui dizem que o pão é “atrasado”. Ao comprar alfaces no mercado deparo-me com a expressão genérica de “salada” ou “selada”, mais popular. As abóboras são “cabaças” ou jerimus e o arroz malandro aqui é “arroz fresco”, a fugir pelo prato fora como deve ser! O “chícharo” aqui vira “feijão-galego” ou “miúdo” e no resto do país feijão-frade, palavra que agora se vai generalizando. Atenção que o chícharo noutras regiões é outra variedade de feijão! Mas também não me esqueço que o “conduto”, ou seja, o prato que se segue à sopa, por cá denomina-se “presigo”. E nós, beirões, quando queremos descascar umas batatas usamos, no nosso linguajar mais popular, a palavra “esbrugar”, assim como “caldeiro” para designar balde, palavras que vão caindo em desuso.

            Se falarmos dos ramos das árvores, pernadas ou cavacos, aqui temos que lhes chamar “canos” e as cavacas assumem a denominação de “canhotas”. Vai daí também a caruma vira “pruma”.

            Com os meus filhos também aprendi alguma linguagem escolar. As “burronas” são as nossas canetas de feltro e as “safas” são as borrachas. Quando se brinca à apanhada não se diz “apanhei-te” mas “cacei-te”.

            E a propósito de crianças lembrei-me das festas de anos. Os meus filhos habituados, desde muito pequenos, a comemorar o aniversário na escola, deles e dos colegas, diziam com toda a naturalidade que estavam a “bufar“ às velas, ou seja,   “soprar”. E eu corrigia: diz “sopra” porque “bufa” é outra coisa….! A língua portuguesa é muito traiçoeira!