Vacinas do Pensamento
Entrevista a Álvaro Domingues
Importa imaginar para conhecer. Descolar da realidade para a descobrir. Desviar-se do rigor ruminante da “ciência normal” (Thomas S. Kuhn). E namorar a filosofia, as letras, as artes… Resgatar, até, o senso comum. Trata-se de uma opção que tem a virtude de franquear outras janelas para outros mundos, os “mundos da vida”. Sem eclipsar nem o “coeficiente humanístico” (Florian Znaniecki) nem a “dimensão acústica” (Marshall McLuhan) da experiência social. Quantos sociólogos podem rivalizar, por exemplo, com Marcel Proust ou Thomas Mann no retrato da ritualização quotidiana ou com Francisco de Goya na figuração do poder?

Álvaro Domingues assume-o. Instado por Diniz Cayolla Ribeiro a selecionar algumas obras chave para o entendimento da realidade contemporânea, convoca Todos os Nomes (1997), de José Saramago, Os Transparentes (2012), de Ondjaki, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1945), de Orlando Ribeiro, e a poesia de Rui Lage. Dois romancistas, um poeta e um geógrafo, o mais literário e criativo dos cientistas sociais portugueses.
O Álvaro, excelente conversador, é um provocador inspirador e sedutor. Também um excelente parceiro de percurso. Inquieto e atento, mas ancorado num fundo seguro e sereno, lembra um todo-o-terreno com suspensão Rolls-Royce a palpitar paisagens adormecidas. É um explorador, um cúmulo de “serendipidade”, um rastreador de fenómenos “inesperados, anómalos e estratégicos” (Robert K. Merton). Não hesita em tentar os limites! No rio, não bastam as águas pasmadas da pesqueira, deixa-se levar pelas correntes revoltas; na praia, escala falésias escarpadas; e na serra, não há tojal que o demova. Quem não ousar acompanhá-lo, que se entretenha à espera. O Álvaro é assim! Sente-se na sua pele tanto só como acompanhado, tanto a idealizar como a concretizar.
Entretanto, a vida continua e a sabedoria já não é o que era. Desafina, senta-se cada vez menos nos coros e nos cadeirais institucionais. “Pelo sonho é que vamos (…) Chegamos? Não Chegamos? – Partimos. Vamos. Somos” (Sebastião da Gama, Sonho, in Pelo Sonho é que Vamos, 1953).
Ida e volta a Cucujães
Álvaro Domingues

João de Andrade Corvo (1824-1890) no seu ímpeto de modernização do país arcaico entregue às conveniências de quem detinha o poder e aos interesses de companhias privadas estrangeiras e de alguns capitalistas e industriais do reino, num discurso à Câmara dos Deputados a 6 de Maio de 1867, afirmou: “Eu considero o caminho-de-ferro, não como um instrumento de criação imediata de produto líquido, mas como uma força que se põe ao serviço das diversas indústrias, como se põe uma máquina a vapor ao serviço dos diversos aparelhos, e das diversas máquinas de uma fábrica”. A primeira referência à Linha do Vouga data de 1874 e, como era frequente, a principal justificação era a de ligar regiões agrícolas e mineiras encravadas na exígua mãe-pátria, aos portos atlânticos – neste caso, ligar Viseu, o Vale do Vouga e o de Lafões ao Porto e a Aveiro e à linha do Norte. Pelo caminho haveria termas, fábricas, vilas e povoados, e muitas discussões sobre expropriações e opções de traçado ou de localização e designação de estações e apeadeiros. Onde chegasse o comboio, chegaria a via acelerada para o milagre económico.
Foi um longo ziguezaguear. Nada disposto a alimentar o lado romântico da tecnologia, Paul Virilio já disse que quem tinha inventado o caminho-de-ferro, sem saber, tinha também inventado o descarrilamento; acidentalmente, uma coisa decorre da outra.

A ordem natural das coisas, a perfeição e o desmesurado, os filósofos da Grécia antiga – o homem é a medida de todas as coisas – o palmo, o pé, a polegada, a braça, o pé quadrado… são medidas que os humanos (hoje, dir-se-ia, o homem, a mulher, a diversidade LGBT) inventaram a partir da sua própria concepção do mundo e do lugar central que aí pensavam ocupar. Leonardo da Vinci, inspirado no venerável Vitrúvio, desenhou essas medidas inscrevendo um macho adulto humano de pernas e braços abertos num círculo e num quadrado de idêntica área. As proporções dessa figura modelar ficaram fixadas num padrão matemático e respectivas regras geométricas. Do corpo humano ao universo, havia de caber tudo numa quadratura do círculo, numa medida universal que satisfizesse as pretensões mágicas da espécie em matéria de cogitações sobre-humanas muito úteis para esconder as misérias do mundo e dar espaço ao algoritmo.
Para além da bitola larga, há o metro e o quilómetro, a distância em anos-luz, as galáxias, o nano mícron e outras medidas da era tecnológica que em nada se relacionam com as medidas do corpo – o metro, a partir da de krípton 86, e o segundo, calculado a partir da radiação de césio 133. Sujeito a coima, o homem do Vitrúvio, fechou as pernas porque lhe está vedada a passagem para além da razão unidimensional da eficácia técnica, da racionalidade do mercado, da organização burocrática e do totalitarismo tecnocrata e tecno-lógico. A razão técnica transforma-se em mitologia, e, depois do paraíso e da idade de ouro, a natureza caminha para o pesadelo. É a bitola estreita do mundo, as pernas fechadas, o passo tolhido, o bloqueio. A horta é uma miragem para lá do terreno pedregoso. Em qualquer dissertação sobre jurisprudência, a coima pode ser discutida segundo variadas e refinadíssimas retóricas.

Literalmente, a necrópole é a cidade dos mortos, tal como os monumentos designavam sinais do passado, presenças da ausência dos que já não pertencem ao mundo dos vivos. Por isso é que a cidade dos mortos é monumental. O monumento funerário é um gesto de perpetuação da memória dos mortos. Por sua vez, os documentos correspondem sobretudo a registos escritos que contêm informações muito úteis para os historiadores. Na cultura erudita da Europa do séc. XIX, o termo monumento usava-se também para designar as grandes colecções de documentos. Em latim – a língua morta então preferida -, os Portvgaliae monvmenta historica iniciados por Alexandre Herculano, uma coletânea de textos da História de Portugal, são disso exemplo. Criticando versões fantasiosas da história, Henri Lefebvre escreveu que não há história sem documentos e se os factos históricos não foram registados em documentos escritos ou gravados, esses factos ter-se-ão perdido. Citando outro nome incontornável, Michel Foucault, pode ler-se: (…) o documento não é o feliz instrumento de uma história que seja, em si própria e com pleno direito, memória: a história é uma certa maneira de uma sociedade dar estatuto e elaboração a uma massa documental de que se não separa. Bibliotecas, arquivos e conservatórias são os grandes depositários desse rastreamento do passado que amanhã já terão arquivado coisas de hoje. Em tempos de digitalização acelerada, os arquivos marcham para o infinito.
Sobre isso, Saramago escreveu em Todos os Nomes: Do mesmo modo que todos os cemitérios deste ou de qualquer outro mundo, este começou por ser uma coisinha minúscula, uma parcela breve de terreno na periferia do que ainda era um embrião de cidade, virado para o ar livre das campinas, mas depois, com o andar dos tempos, como infelizmente tinha de ser, foi crescendo, crescendo, crescendo, até se tornar na necrópole imensa que é hoje. Ao princípio esteve todo murado ao redor, e, durante gerações, de cada vez que o aperto lá dentro começava a prejudicar tanto o alojamento ordenado dos mortos como a circulação prática dos vivos, fazia-se o mesmo que na Conservatória Geral, deitavam-se abaixo os muros e levantavam-se um pouco mais à frente. Nada como a boa literatura para nos explicar o mundo.
Deixando a visão geral do cemitério e caminhando pelo dédalo dos monumentos funerários em granito que são a arte já muito industrializada do saber dos marmoristas, encontramos o instante metafórico a que Saramago se refere acerca dos muros derruídos para que a conservatória ou o cemitério cresçam: ao fundo, intensamente iluminado pelo sol está o muro que cerca o cemitério; no primeiro plano, resolve-se o avanço do edifício, sobrepondo, desligando os planos. No meio das sepulturas, a coluna ajuda a perceber a grande dificuldade que as lajes de betão apresentam quando são forçadas a flutuar.

Virá um dia a banalização da cremação e tudo isto poderá tomar outros caminhos. A memória pública dos mortos traduzida em toneladas de pedra polida alinhada na necrópole, poderá esfumar-se em cinzas espalhadas ao vento, nos roseirais, no mar ou em pequenos sarcófagos guardados em casa. Outras versões mais elaboradas usarão fornos sofisticados onde se converterá a matéria carbónica dos cadáveres em pequenos cristais de diamante que se poderão usar como joias onde, fisicamente, os entes queridos permanecem e brilham para todo o sempre. Que seriam os vivos sem os mortos, sem os fantasmas, sem o menor traço da presença de quem já não está. Jean-Didier Urbain – O Arquipélago dos Mortos – lembra que o luto não é apenas um modo de aceitação da morte do outro, aquilo que é necessário integrar é a incerteza que provoca a sua ausência na vida -uma espécie de flutuação. É por essa razão que os lugares do luto são importantes – aqui jaz significa isso mesmo.
Este texto foi produzido no âmbito do projeto À Volta do Vale das Voltas – Programa Integrado de Dinamização Intercultural das Terras de Santa Maria
Autópsia de um crime com revolução em fundo
Luís Cunha

Revisitar o momento e acompanhar as circunstâncias em que Aldo Moro foi executado pelas Brigate Rosse (BR) em Itália leva-nos a olhar o passado como se este fosse um país estranho, para usar aqui uma formulação de uso corrente. É a essa viagem que nos convida Marc Bellocchio em Esterno Notte, uma série em seis episódios, recentemente disponibilizada numa plataforma de streaming. O espetador sabe que Aldo Moro foi executado, pelo que não é a incerteza do desfecho que nos leva a querer ver o episódio seguinte.
Tenho para mim que a virtude maior de Esterno Notte é a sobriedade quase documental com que nos leva a (re)visitar um tempo histórico recente e que, no entanto, nos parece estranhamente distante, como se não fosse parte do que somos hoje.
Naquele final da década de 70 vivia-se um tempo ainda incerto quanto ao rumo que o mundo haveria de tomar e que nos trouxe até aqui. Na verdade, usando a frieza analítica que a distância temporal nos permite, sabemos hoje que os dados estavam já lançados e que a grande viragem, aquela que levaria à substituição do consenso social-democrata pelo consenso neoliberal, iniciara já uma marcha irreversível. Podendo ser vista como um filme dividido em seis capítulos, a série Esterno Notte leva-nos a esse período agitado, concretamente a 1978 e aos dois meses que durou o sequestro de Aldo Moro. Recorde-se que o sequestrado foi uma das figuras maiores da política italiana do pós-guerra: primeiro-ministro em meados da década de 60, responsável por várias pastas em diferentes governos, era, à data dos acontecimentos, líder da Democracia Cristã e um dos principais defensores do entendimento político com o Partido Comunista Italiano, o famoso Compromisso Histórico. O ano de 1978 é um bom ponto de partida para percebermos um período que agora nos parece estranho, mas também, e sobretudo, para nos ajudar a perceber essa estranha dialética entre as escolhas que homens e mulheres concretos fazem a cada momento e essa indefinida mas poderosa força que desenha o ar do tempo e condiciona, às vezes de forma decisiva, o que se escolhe fazer.
A execução de Aldo Moro assinala, simultaneamente, o ponto de máxima notoriedade e de declínio de uma força política armada que foi responsável por dezenas de assassinatos em Itália. Fundadas em 1970, as BR podem ser vistas como produto de uma dobra histórica que ganhou visibilidade em maio de 68 em Paris, para depois assumir as variadíssimas expressões que durante décadas marcariam o espaço político da Europa Ocidental. A sua face mais radical revelou-se na criação de grupos políticos armados, descrentes das virtudes da democracia representativa e que se viam a si próprios como os agentes que operariam a verdadeira revolução, desígnio que justificava o sacrifício próprio e a punição dos que se lhes opunham. As suas ações estendem-se entre as décadas de 60 e 80, desenhando o que, cerca de meio século depois, nos parece um “país estrangeiro”, assustador pelos atos praticados mas também sedutor pela demonstração da força que há nas ideias e nos sonhos de mudança.

Espreitemos os atos, sem sair do tempo retratado na série. Poucos meses antes do sequestro de Moro vivera-se na República Federal Alemã o chamado Outono Alemão, marcado pelo assassinato, às mãos da Rote Armee Fraktion (RAF), vulgarmente conhecida como grupo Bader-Mainhof, de um Procurador-Geral e de duas ilustres figuras ligadas à banca e à indústria. Um ano antes, os Revolutionäre Zellen, em cooperação com a Frente Popular para a Libertação da Palestina, sequestrara e desviara para o Uganda um voo da Air France, dando continuidade a um foco de intervenções em nome da libertação da Palestina que começara pouco antes, com um ataque à sede onde reuniam os países produtores de petróleo. Também em Portugal, nesse mesmo ano de 1978, um agente da Polícia Judiciária é morto e dois outros feridos numa operação militar contra o Partido Revolucionário do Proletariado – Brigadas Revolucionárias (PRP-BR), estrutura criada em 1973 e que se extinguiria em 1980, com alguns dos seus membros a transferir-se para Projeto Global/FP25.

Muito diferentes entre si, estes e outros movimentos convergiam na legitimação da luta armada contra as estruturas de poder e figuras a elas associadas, embora divergissem, frequentemente, no matiz ideológico que os inspirava. Um cartaz do PRP-BR sintetiza a convergência: “A arma é o voto do povo”, proclama, acrescentando, “Não às eleições. Sim à Revolução Socialista”. Justificavam-se assim as ações armadas contra os símbolos e as figuras do poder, onde se incluem assaltos a bancos, sequestros ou assassinatos de figuras políticas ou ligadas à alta finança e indústria.
Em países como Itália e Alemanha foi igualmente importante o combate a figuras saídas diretamente do nazismo e do fascismo para a democracia do pós-guerra. No plano das ideias, eram muitas as subtilezas ideológicas evocadas na margem esquerda dos partidos comunistas europeus, onde todos estes movimentos se situavam, mas era usada uma palavra que efetivamente os unia: Revolução! Entrevistado pelo L’express a propósito dos acontecimentos de Maio de 68, Henri Lefebvre usara-a também de forma expressiva: “Julgo que os acontecimentos que se acabaram de desenrolar são o esboço da primeira revolução do século XX” [In A Revolta de Maio em França, Cadernos Dom Quixote, 11, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1968, p. 107]. Remetendo a revolução russa para o século XIX, Lefebvre à semelhança de outros intelectuais, como Sartre, sinalizava uma novidade com potencial para desenhar um novo tempo. Este não é o lugar para escalpelizar um esboço de desenho que nunca ganhou traço firme, mas onde se combinava a crítica ao centralismo democrático e à vanguarda dirigente com a projeção de uma frutuosa conciliação entre trabalhadores e estudantes, na tentativa de encontrar um sentido para um mundo que estava a mudar demasiado depressa e que, vemo-lo agora, não parou desde então de acelerar nessa mudança.

A estranheza, a ela volto, é a que resulta de hoje olharmos um tempo em que a ideia de Revolução não só fazia parte do quotidiano como transportava em si a abertura a uma imaginação política que não se continha na proclamação supostamente racional de que «Não há alternativa». Parece-nos distante e no entanto, vendo de outra forma, a eterna tensão entre a dúvida que nos constrange e a certeza que nos empurra para a ação são as de sempre. No episódio 4 de Esterno Notte há um episódio particularmente revelante no equilíbrio dramático da série e que remete para essa constante. Trata-se de um diálogo entre o casal de brigadistas ligados ao sequestro de Moro que vamos acompanhando desde o início da série. Ela desconfia da utilidade da estratégia política que está a ser seguida nas negociações associadas ao sequestro, afirmando que não bastam jogos daquele género para vencer e agitar as massas. Ele pergunta-lhe se acredita mesmo que conseguirão vencer e conquistar o poder. Percebemos que para ele não se coloca qualquer horizonte de vitória, “Che Guevara é o nosso herói e será o nosso fim”, afirma, e acrescenta “A minha verdadeira paixão não é a revolução mas a transgressão, rebelar-me contra as ordens, desobedecer”. É em nome destes objetivos limitados que ele se mostra disponível a sacrificar Moro, tal como sacrificou a sua vida pessoal. Este realismo colide com a crença da companheira na revolução, em nome da qual, como lhe recorda, abandonara uma filha e aceitara fazer um aborto. Toca-lhe ainda mais fundo quando lhe diz que em nome de uma revolução em que não acredita ele aceitara matar cinco pais de família, referindo-se aos guarda-costas que acompanhavam Aldo Moro na altura do sequestro.

Entre o ceticismo e o desencanto, este casal ficcionado por Bellocchio coloca-nos perante dilemas que não se encerraram com a extinção dos partidos e grupos que há cerca de 50 anos levaram a cabo centenas de atentados contra o sistema de poder. As perguntas permanecem: as mudanças conseguidas num quadro institucional são conquistas que nos servem ou distrações que nos afastam de transformações reais? Podemos nós falar e agir em nome de alguém que não nós próprios? Faz sentido combater o ar do tempo ou devemos deixar que ele nos leve? Sobra a convicção de que o passado é mesmo um país estranho e a certeza de que a estranheza que hoje sentimos ao ver Esterno Notte é equivalente à que sentirão os futuros espetadores de uma série que retrate algum episódio trágico dos nossos agitados dias, por exemplo a tomada dos símbolos de poder em Washington ou Brasília a que recentemente assistimos. Também ali há fé e convicção, febre e cegueira; homens e mulheres que acham que estão no centro da História e outros a que basta a adrenalina da transgressão. Comparação espúria, bem sei, apenas permitida em nome dessa estranha matéria que é o tempo e do incerto sentido que nele descobrimos.

Luís Cunha, professor da Universidade do Minho, doutorado em Antropologia, é autor de A nação nas malhas da sua identidade (1994), Memória social em Campo Maior (2006) e Vinte mil léguas de palavras (2017; Prémio Nacional do Conto Manuel da Fonseca 2016).
Os bons nómadas
Esser Jorge Silva
Dos nómadas fica-nos o romantismo de Bruce Chatwin (1940-1989). Repete-se aqui a história que, de tantas vezes escrita e rescrita, fixou a lenda do antigo porteiro da leiloeira Sotheby’s transformado primeiro em especialista do impressionismo, seguindo-se o cargo de diretor da referida leiloeira. Anos depois de abandonar um curso de arqueologia e de se dedicar à narrativa numa coluna sobre arte no Sunday Times, Chatwin desapareceu deixando na sua secretária uma célebre nota: “fui para a Patagónia”. Na verdade cumpria um dos seus desejos muito íntimos na descoberta de locais de tal modo possuídos pelo desinteresse ao ponto de apenas fugitivos, foragidos, apátridas, ladrões e assassinos por lá se acercarem. Além de tentar saber sobre brontossauros, almejava uma vida longe numa casa “baixa, feita de troncos com um telhado também de madeira e bem calafetada contra as tempestades; lenha a arder na lareira, as paredes cobertas com os melhores livros, um lugar onde viver quando o resto do mundo fosse pelos ares” naqueles dias em que se instalara uma dita guerra fria.


Figura 1 – Na Patagónia de Bruce Chatwin e Patagónia Express de Luís Sepúlveda onde o chileno relata o encontro com o inglês.
Por ali andou anotando conversas, olhares, paisagens, flores, fauna, flora, lendas e histórias com sucessivas personagens que se revezavam em entradas de cena provindas de recantos cheios de non sense, como se fossem produto de mágicas saídas de onde a imaginação não alcança. Anotava as andanças nuns pequenos caderninhos pretos muito jeitosos, de capa dura e tamanho gracioso, até se cruzar certa noite com uma outra alma perdida na inquietude, um ex-segurança ali exilado, que no dia 11 de setembro de 1973 se havia salvo à vigésima quinta hora do Palácio La Moneda, em Santiago, no exato momento em que as balas perfuravam o corpo do seu presidente Salvador Allende. Nos caderninhos pretos, o “inglês nómada porque não podia ser outra coisa”, colhia dados para o seu futuro memorável “In Patagónia” (1977, editado em Portugal pela Quetzal Editores). Enquanto isso, Luís Sepúlveda (1949-2020), o “chileno exilado porque não podia deixar de ser outra coisa”, entrava no nono ano vagamundeando entre o Rio Negro e Ushuaia à espera de autorização para entrar na Alemanha. Destas deambulações nasceria “Patagónia Express” (1995, editado em Portugal pela Porto Editora) cujo primeiro capítulo “apontamentos de uma viagem a lado nenhum” revela, sem despudor, o aqui e agora depositário do espírito nómada.
Chatwin anda por ali subindo e descendo as Terras de Fogo carregado de Moleskines, esses caderninhos pretos cujos utilizadores passados, desde Van Gogh, Celine, Picasso ou Hemingway, parecem tê-los certificado de altar de sabedoria. Ao oferecer alguns a Sepúlveda recomendou-lhe a numeração das páginas e a indicação de uma recompensa e um endereço para contacto em caso de perda. E o chileno, um marxista com todo o tempo livre nos intervalos da procura da cabana de Butch Cassidy e Sundance Kid, dois famosos assaltantes de bancos que por ali se deixaram morrer, decidiu rezar em escrita a façanha fetichista dos possuidores de um Moleskine fazendo destes caderninhos outrora raros e maravilhosos, não um objeto auxiliar de produção cultural, mas uma artefacto cultivado com o adubo do capital, vendido a preço mais caro do que qualquer produto literário ou artístico que ali se possa meter.
O nomadismo, seja a promessa dos Moleskines ou o sentido do destino pária de Sepúlveda ou a errância de Chatwin, estava dominado pela viagem e pela descoberta, ainda que esta saísse do ângulo mais obtuso de um olhar. Ao nómada interessava pouco ou nada o destino. Deslocava-se para captar e desaparecer levando consigo o sentido, os sons, as cores, os hábitos, a diferença, as particularidades, as contradições, as idiossincrasias, deixando de si uma leve brisa de esquecimento. Em “The Songline” (1987, editado em Portugal com o título “Cântico Nómada” pela Quetzal Editores), Chatwin é arrastado para uma introspeção quase sagrada. Na imensa planície australiana, deixa-se envolver pelos sons aborígenes locais para questionar até que ponto a linguagem não começou pela necessidade poética do canto para marcar o espaço e afugentar os predadores. É uma hipótese. A dúvida abraça o nómada, mesmo quando o seu espírito é convocado. No póstumo “What Am I Doing Here” (1989, coleção de textos publicados em Portugal com o “O que faço eu aqui” pela Quetzal Editores) o nómada desespera com a incompreensível falta de sentido da sua passagem pela geografia. A pergunta é a mais sincera cedência do nómada à ausência de objetivo no seu errar acidental por trilhos desconhecidos a caminho de nenhures, talvez a ilha da utopia.
Por oposição ao que atualmente é apresentado do nomadismo, Sepúlveda e Chatwin eram nómadas analógicos. Os novos nómadas são “digitais”. Não levam a capa dura do Moleskine, nem precisam de numerar páginas ou oferecer recompensas pela perda das notas do campo. Os nómadas digitais são muito concretos na crença de que tudo fica na cloud, esse infinito e invisível depósito de tudo que apesar de voar acima das consciências se afirma o mais seguro dos armazéns. Rezam as notícias que há agora uma caneta com Moleskine a propósito, capaz de digitalizar os rabiscos do nómada. A smart pen é um desses utensílios que realiza o milagre da transformação do “nómada analógico” em “nómada digital”.

Contrariamente aos nómadas analógicos, os nómadas digitais não existem para perpetuar memórias, captar sentidos do lugar, compreender especificidades da geografia, entender personagens. Destinam-se a registos digitais, ato que não acolhe a poesia do lugar que os alberga. Não vão atrás da mágica humana na realização do filme da existência. Pelo contrário, procuram a fórmula algorítmica que embebeda a mente humana. A fantasia imaginária, matéria prima dos andarilhos, dá lugar a um certo fantástico virtual da realidade de sofá.
Enquanto os nómadas analógicos passavam despercebidos, os nómadas digitais são disputados pelos Estados como uma nova mercadoria. Diria Karl Marx que há fetichismo aqui. Verdadeiros nómadas tinham valor intrínseco, autoral e com autoridade inscrita nos seus corpos. Nómadas digitais são reconhecidos por um tipo de valor externo e subordinado ao valor de troca do seu produto que lhes escapa para uma qualquer multinacional. São uma forma fácil de registar exportações de serviços e fazer entrar capitais. Por todo o mundo se produz legislação para acolher os novos nómadas. Já não é nómada quem quer ser mas quem o Estado determina. Como é fácil de perceber, não há delicadeza nem afeição nas leis que recebem o nómada digital. Nesta contradição nómada, o original que voava livre sobre a realidade, caminha agora cauteloso sob regras, leis e diretivas.

Os velhos nómadas eram-no e ponto final. Nem eles sabiam que o queriam ser. No final da jornada podiam assim ser categorizados, não por estatuto mas por falta dele. Os novos nómadas só o podem ser com autorização. Almeja-se dos nómadas digitais que gostem muito da terra, apreciem o sol e a praia, os baixos preços dos restaurantes e os bons profissionais de limpezas sempre prontos a limpar o pó e a arrumar a casa. A grande esperança passa por se transformar os nómadas digitais em normais habitantes digitais e assim, de uma assentada, melhorar a estatística e a literacia digital do país. A diferença é que tanto Sepúlveda como Chatwin perceberam o nomadismo como “Anatomy of Restlessness” (1997, editado em Portugal com o título “Anatomia da Errância” pela Quetzal Editores). A inquietação não só dominava todos os sentidos do nómada analógico como convocava o seu espírito de partida permanente. A utopia de aportar num melhor lugar desfiava o devir e convocava a errância. Mas os nómadas digitais não podem perceber a errância porque, como diria Simmel, estão mais próximos da forma do mercador do que da forma do viandante.

Esser Jorge Silva, doutorado em Estudos de Comunicação, Professor Adjunto no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (IPCA), é autor de Histórias de Guimarães (1999), O Que Fica no Coração (Org. 2012), Teleférico da Penha – Imaginário e Tealidade / Biografia do primeiro teleférico construído em Portugal (2014), Tempo Livre Guimarães / 20 anos – História de uma Estratégia Municipal para o Desporto (2019) e Nascimento da Unidade Vimaranense (2021).
Albert Camus: sinónimo de liberdade
Daniel Noversa

No meio desta algazarra, o escritor já não pode estar à espera de se manter afastado para prosseguir com as reflexões e imagens que lhe são caras. Até à data, mal ou bem, a abstenção foi sempre uma possibilidade na história. (…). A partir do momento em que a própria abstenção é considerada uma escolha, punida ou louvada como tal, o artista, quer queira quer não, está envolvido. Envolvido, parece-me neste caso um termo mais adequado do que comprometido. (…) / Criar, hoje em dia, significa criar perigosamente.
Albert Camus (1937-1958/2022, p. 260-262)
Faz hoje 63 anos. A 4 de Janeiro de 1960, morreria Albert Camus, homem do existencialismo francês, num trágico e inesperado acidente de viação, perto de Sens. Homem de causas e apaixonado pela vida e pela Arte. Um homem que viveu em liberdade e combateu pela liberdade dos outros. Por ter vivido perto, jamais será esquecido por todos aqueles que o admiram. Para esses, a sua obra aparece como uma agradável visita. É a pedra de toque a que voltamos sempre, para reaver riquezas de um pensamento lúcido e profundo e de grande elevação literária.
No seu discurso na entrega do Prémio Nobel da Literatura, em Estocolmo, a 10 de Dezembro de 1957, Camus advoga que os artistas não devem estar só comprometidos, mas também envolvidos com as tarefas difíceis da sua época.
Segundo ele, os artistas deveriam procurar compreendê-la invés de julgá-la. Dar armas em invés de lições. Estar, portanto, ao serviço dos que fazem a história. Mas ao lado daqueles que sofrem e são oprimidos. Camus acreditava que só em liberdade seriamos melhores e que a esperança residia nos artistas, por esses “milhões de solitários cujas acções e obras, dia a dia, negam as fronteiras e as mais vulgares ilusões da história, para fazer brilhar fugazmente a verdade sempre ameaçada que, sobre as suas dores e alegrias, cada um cria por si e para todos” (Camus, 1937-1958/2022, p. 279), recuperando-a, suscitando-a e reanimando-a no devir perpétuo da história.
A vocação dos artistas consistiria, na sua opinião, em combater a mentira e a servidão, resistindo e recusando a opressão, enfim, revoltar-se. Nas suas palavras, “a arte não é um prazer solitário. É um meio para comover o maior número possível de pessoas, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e alegrias comuns. Obriga, portanto, o artista a não se isolar; submete-o à verdade mais humilde e mais universal. (…) O artista forja-se nesse contínuo ir e vir entre si e os outros, a meio caminho entre a beleza sem a qual não pode passar e a comunidade da qual não se pode desligar. Razão pela qual os verdadeiros artistas não desprezam nada; obrigam-se a compreender em vez de julgar” (Camus, 1937-1958/2022, p. 256).
A liberdade consiste em poder escolher as suas cadeias, mas cada cadeia que se abre é um novo espaço de liberdade que se conquista. (Albertino Gonçalves)
Camus, A. (2022). Conferências e Discursos. Livros do Brasil.
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