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Gilda: Inteligência Artificial e Hiper-realidade

Maria. Metropolis. Fritz Lang. 1924

Aproxima-se a nona edição do Campeonato do Mundo de Futebol Feminino da FIFA, na Austrália e na Nova Zelândia, de 20 de julho a 20 de agosto. “Para apoiar a seleção da Argentina”, a Noblex, empresa multinacional de eletrónica, produziu um vídeo musical que estreou há um dia (10/07/2023).

“Hay que alentarte Selección es el nombre de la canción realizada con IA que se lanza junto a un videoclip exclusivo. En el video, Gilda invita a todo el pueblo argentino a alentar a la Selección Femenina de Fútbol, que este próximo 20 de julio comienza su participación en el Mundial 2023.

La letra del nuevo tema, así como la campaña integral, fue creada por la agencia creativa Gut Buenos Aires. Se trata de la primera campaña publicitaria realizada con Inteligencia Artificial que involucra aspectos como generación de la voz, creación de la canción con una nueva letra, licenciada y validada integralmente durante todo proceso por parte de los autores y el sello discográfico.

El desarrollo de la voz de Gilda en Inteligencia Artificial se hizo en un proceso en etapas. La primera, fue acceder al material original, el cual se limpió para lograr un enfoque moderno. Luego se utilizó la tecnología del sistema Retrieval-based-Voice-Conversion (RVC) que permitió sintetizar la voz original, tomando referencias de tonos y emocionalidad. El software fue entrenado en la nube con minuciosidad hasta obtener la mejor versión posible (…)

En una segunda etapa, para crear la nueva versión de la canción, se trabajó en cuatro iteraciones para lograr la mejor forma. Finalmente, se combinó con la banda sonora -que es la versión original- como si fuese una voz más dentro de la mezcla.

Para producir esta campaña, Noblex adquirió los derechos autorales y de recreación de la voz de Gilda con IA, de la mano del sello discográfico Leader Music, quien proveyó las pistas con la voz original de la cantante para alimentar la inteligencia artificial y facilitó el material fílmico de archivo para realizar la difusión de la canción” (https://www.adlatina.com/publicidad/preestreno-gut-buenos-aires-noblex-y-gilda-alientan-a-las-futbolistas-argentinas).

Gilda (Miriam Alejandra Bianchi; 1961-1996), cantora e compositora de cumbias, foi e permanece um ícone da Argentina.

“Gilda morreu em 7 de setembro de 1996, em um trágico acidente durante uma turnê pelo país para promover seu último e mais bem sucedido álbum, Corazón valiente (…) Junto com ela, sua mãe, sua filha, três de seus músicos e o motorista do ônibus morreram quando um caminhão cruzou o canteiro central da estrada e bateu de frente com seu ônibus de turismo no km 129 da Rodovia Nacional 12, na Província de Entre Ríos (…) Pouco depois de sua morte, seus fãs começaram a creditar milagres a ela, alguns até a chamando de santa” [https://pt.wikipedia.org/wiki/Gilda_(cantora)].

Com recurso à Inteligência Artificial, a empresa Noblex e a agência Gut Buenos Aires, se não ousam o milagre de ressuscitar Gilda, conseguem apresenta-la, encená-la, a cantar, voz e imagem, numa iniciativa de apoio à seleção feminina da Argentina. O real desvanece-se perante o mais real que o real (o híper-real, segundo Jean Baudrillard, simulação mais verdadeira que a verdade).

A Inteligência Artificial e a Hiper-realidade, não obstante o alarido atual em torno da primeira, não são fenómenos de última hora, já têm algumas barbas. Por enquanto, não sei o que justifica mais atenção e cuidado: se as falácias da Hiper-realidade ou as ameaças da Inteligência Artificial. Para complicar, podem, como no caso do anúncio Hay que alentarte Selección, entrelaçar-se e reforçar-se mutuamente.

Marca: Noblex ft Gilda. Título: Hay que alentarte Selección. Agência: Gut Buenos Aires. Redação: Camila Castro. Direção de arte: Florencia Espínola. Argentina, 10 de julho de 2023

Segue um vídeo musical de Gilda: Paisaje (En Vivo en Fantástico Bailable, 1994).

Gilda. Paisaje. En Vivo en Fantástico Bailable, 1994.

Todos diferentes, todos iguais

Túmulo de Sethi 1º. Vale dos Reis, oeste de Tebas. Detalhe do teto astronômico da Câmara Mortuária

Por que motivo, nas cidades por onde passamos, nos empenhamos a escolher doze postais diferentes – quando são destinados a doze pessoas diferentes? (Sacha Guitry. Pensées, maximes et anedoctes, 1ª ed. 1985, Le Cherche Midi, 2007, p. 117)

Vulgarizado pela Benetton, o mote “todos diferentes, todos iguais” conquistou a publicidade e o espaço público. Os anúncios passam a apostar na diversidade das figuras convocadas em dimensões tais como o género, a idade, a raça, a posição social ou os padrões estéticos. Cada anúncio oferece um cardápio identitário. Em vez de bens cujo consumo se deseja, imagens a cuja adesão se incentiva. Num dispositivo pós-pavloviano, a projeção e a identificação tendem a sobrepor-se à salivação. Confrontado com tantas e tão díspares figuras, em alguma o espetador se reconhecerá (e doutras se de demarcará).

Marca: United Colours of Benetton. Título: ‘You can be everything’. Fall-Winter 2022 Campaign

“Todos diferentes, todos iguais” constitui uma equação complexa a alcançar. Tudo menos dada de antemão. Suscetível de várias formulações, a tónica pode ser colocada mais próxima de um ou do outro lado: unir mais do que separa ou separar mais do que une.

Nas últimas décadas, o polo da diferença tem adquirido atratividade. Por vezes, em demasia, reduzindo-se as posições, paradoxalmente, a mais do mesmo, a um coro monofónico, pouco aberto e nada tolerante. Nesta di-visão exacerbada do mundo, cada qual vale por si, “sem fazer parte” de uma comunidade orgânica. Esfuma-se o fundo comum, bem como a interdependência e, a fortiori, o sentimento de união e partilha. Em suma, um mosaico estilhaçado a espelhar uma realidade fragmentada à beira do caos. Alguns anúncios proporcionam este efeito. sugerem esta impressão. Os protagonistas sucedem-se sem laços nem nexo. É certo que, à falta de mais, a própria marca, envolvente, assegura a junção, mas como uma espécie de interruptor que acende uma constelação babélica de clichés e flashes.

Esta aposta na diferença parece amiga das liberdades, das autonomias e das identidades. Os processos sociais revelam-se, porém, propensos a perversidades capazes de inverter o sentido das promessas, por mais óbvio que se manifeste. As coletividades inorgânicas, babélicas, carecem de alguma entidade, porventura providencial, que as cimente e acaba por se lhes sobrepor senão impor. Exterior ou estranha, quando não avessa, às diferenças, esta totalização tende a namorar o totalitarismo, tornando-se pouco “amiga das liberdades, das autonomias e das identidades”. Não se trata de uma fatalidade a agitar como um espantalho mas de um risco a não menosprezar.

Albrecht Dürer. Cristo entre os Doutores. Pormenor. 1506.

Convém admitir que boa parte dos anúncios publicitários visa conciliar diferença e igualdade. Encenam a interdependência na e pela diferença sobre um fundo de igualdade e universalismo. Os protagonistas não só se sucedem como dialogam e interagem de uma forma natural e compensadora. Assumida como mediação, a marca, mais do que mero interruptor, funciona, agora, como traço-de-união. O “pluri” e o “multi” abrem-se ao “inter” e ao “trans”. Recentes, os anúncios The Feeling of Good Times, da Heineken, e New Zealand runs on fibre, da Chorus, representam dois casos exemplares.

Marca: Chorus. Título: New Zealand runs on fibre. Agência: Saatchi & Saatchi New Zealand. Direção: The Bobbsey Twins From Homicide. Nova Zelândia, junho 2023
Marca: Heineken. Título: The Feeling of Good Times. Agência: Le Pub / Publicis Italy. Itália, junho 2023

As novas sereias. Encantos de espantar

Numa atmosfera eivada de exotismo e exuberância, os sentidos almofadados entregam-se ao ecrã das surpresas programadas (Albertino Gonçalves, instalação “cápsulas de emoções”, exposição Vertigens do Barroco, Mosteiro de Tibães, 2007)

Estiveram abertas até ao dia 10 de março as candidaturas para o concurso New York Festivals Advertising Awards, organizado em parceria com a BCW (Burson Cohn & Wolfe, empresa multinacional de relações públicas e comunicação, com sede em Nova York). A “chamada” desafia os candidatos a exibir algo nunca antes visto (“Show Us Something We Haven’t Seen”), capaz de impressionar e contrariar a saturação dos nova-iorquinos e dos profissionais de publicidade. Algo, ao mesmo tempo, espantoso e memorável.

“A New York Festivals (NYF) desenvolve, desde 1957, a nível mundial, uma atividade que convoca o espírito de rutura e de vanguarda caraterístico da cidade (…) A campanha de promoção reúne fotógrafos da cidade de Nova York cujas imagens expressam a vibração urbana de NYC e projetam uma luz reveladora da agitação e da atitude invulgares que alicerçam a excelência criativa em NYC” (Scott Rose, presidente, New York Festivals Competitions).

A campanha de promoção do festival é composta por três posters e um vídeo.

Anunciante: New York Festivals Advertising Awards. Título: Show us something we haven’t seen. Agência: BCW (Burson Cohn & Wolfe). Direção: Henry DaCosta. USA, fevereiro 2023

“Como nunca ninguém viu” é o título de um artigo que publiquei em 2011 (in Moisés de Lemos Martins et alii, Imagem e Pensamento, Coimbra, Grácio Ed., pp. 139-165). Corresponde à conferência “A construção do impossível: o espaço nos anúncios publicitários”, apresentada no Congresso Internacional de Ciências da Comunicação, em Braga, em setembro de 2009.

 “‘Ver como ninguém viu’, porventura mais do que ver “o nunca visto”, eis a tentação ou, melhor, a proposta que percorre a publicidade atual” (Como nunca ninguém viu, p. 142).

O texto procura argumentar e ilustrar esta intuição. O vídeo “A construção do impossível”, com duração de 20 minutos, acrescenta uma seleção de anúncios ilustrativos. Segue uma primeira versão do texto, não paginada mas com imagens a cores (a versão editada, com imagens a preto e branco, está acessível no seguinte endereço do livro: https://hdl.handle.net/1822/29165), bem como o vídeo complementar. Constam entre os meus trabalhos preferidos, concebidos, aliás, durante um período de deriva da desmotivação da cidade académica para a exploração de trilhos menos consagrados. Menos pontos no currículo e mais realização pessoal. A criação do blogue Tendências do Imaginário, em 2011, constitui um marco e um bom exemplo.

A aposta no assombro, especialmente no nunca visto, cruza-se com duas tendências que atravessam a publicidade. A difícil captação da atenção e influência dos públicos justifica duas rotações: dos produtos para as marcas e do desejo para a adesão. À distinção invejável sobrepõem-se a identificação projetada e a estranheza fácil de entranhar. O foco desliza, assim, por exemplo, do belo e do funcional para o surpreendente e o insólito, que tocam, impregnam e envolvem. Uma espécie de rotinização ou homeopatia do anómalo.

Albertino Gonçalves. A Construção do Impossível. Conferência no Congresso Internacional de Ciências da Comunicação (Braga, setembro 2009)