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Vacinas do Pensamento

Entrevista a Álvaro Domingues

Importa imaginar para conhecer. Descolar da realidade para a descobrir. Desviar-se do rigor ruminante da “ciência normal” (Thomas S. Kuhn). E namorar a filosofia, as letras, as artes… Resgatar, até, o senso comum. Trata-se de uma opção que tem a virtude de franquear outras janelas para outros mundos, os “mundos da vida”. Sem eclipsar nem o “coeficiente humanístico” (Florian Znaniecki) nem a “dimensão acústica” (Marshall McLuhan) da experiência social. Quantos sociólogos podem rivalizar, por exemplo, com Marcel Proust ou Thomas Mann no retrato da ritualização quotidiana ou com Francisco de Goya na figuração do poder?

Álvaro Domingues assume-o. Instado por Diniz Cayolla Ribeiro a selecionar algumas obras chave para o entendimento da realidade contemporânea, convoca Todos os Nomes (1997), de José Saramago, Os Transparentes (2012), de Ondjaki, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1945), de Orlando Ribeiro, e a poesia de Rui Lage. Dois romancistas, um poeta e um geógrafo, o mais literário e criativo dos cientistas sociais portugueses.

O Álvaro, excelente conversador, é um provocador inspirador e sedutor. Também um excelente parceiro de percurso. Inquieto e atento, mas ancorado num fundo seguro e sereno, lembra um todo-o-terreno com suspensão Rolls-Royce a palpitar paisagens adormecidas. É um explorador, um cúmulo de “serendipidade”, um rastreador de fenómenos “inesperados, anómalos e estratégicos” (Robert K. Merton). Não hesita em tentar os limites! No rio, não bastam as águas pasmadas da pesqueira, deixa-se levar pelas correntes revoltas; na praia, escala falésias escarpadas; e na serra, não há tojal que o demova. Quem não ousar acompanhá-lo, que se entretenha à espera. O Álvaro é assim! Sente-se na sua pele tanto só como acompanhado, tanto a idealizar como a concretizar.

Entretanto, a vida continua e a sabedoria já não é o que era. Desafina, senta-se cada vez menos nos coros e nos cadeirais institucionais. “Pelo sonho é que vamos (…) Chegamos? Não Chegamos? – Partimos. Vamos. Somos” (Sebastião da Gama, Sonho, in Pelo Sonho é que Vamos, 1953).

As Vacinas do Pensamento de Álvaro Domingues. Entrevista a Álvaro Domingues por Diniz Cayolla Ribeiro. Janeiro 2021

Lição de Jubilação do Professor Doutor Moisés Martins

É particularmente grato ao Margens partilhar o vídeo com a Lição de Jubilação do Professor Doutor Moisés Martins e a homenagem que a acompanhou, na Universidade do Minho, no dia 6 de março de 2023.

Lição de Jubilação do Professor Doutor Moisés Martins. Universidade do Minho. 6 de março de 2023

As novas sereias. Encantos de espantar

Numa atmosfera eivada de exotismo e exuberância, os sentidos almofadados entregam-se ao ecrã das surpresas programadas (Albertino Gonçalves, instalação “cápsulas de emoções”, exposição Vertigens do Barroco, Mosteiro de Tibães, 2007)

Estiveram abertas até ao dia 10 de março as candidaturas para o concurso New York Festivals Advertising Awards, organizado em parceria com a BCW (Burson Cohn & Wolfe, empresa multinacional de relações públicas e comunicação, com sede em Nova York). A “chamada” desafia os candidatos a exibir algo nunca antes visto (“Show Us Something We Haven’t Seen”), capaz de impressionar e contrariar a saturação dos nova-iorquinos e dos profissionais de publicidade. Algo, ao mesmo tempo, espantoso e memorável.

“A New York Festivals (NYF) desenvolve, desde 1957, a nível mundial, uma atividade que convoca o espírito de rutura e de vanguarda caraterístico da cidade (…) A campanha de promoção reúne fotógrafos da cidade de Nova York cujas imagens expressam a vibração urbana de NYC e projetam uma luz reveladora da agitação e da atitude invulgares que alicerçam a excelência criativa em NYC” (Scott Rose, presidente, New York Festivals Competitions).

A campanha de promoção do festival é composta por três posters e um vídeo.

Anunciante: New York Festivals Advertising Awards. Título: Show us something we haven’t seen. Agência: BCW (Burson Cohn & Wolfe). Direção: Henry DaCosta. USA, fevereiro 2023

“Como nunca ninguém viu” é o título de um artigo que publiquei em 2011 (in Moisés de Lemos Martins et alii, Imagem e Pensamento, Coimbra, Grácio Ed., pp. 139-165). Corresponde à conferência “A construção do impossível: o espaço nos anúncios publicitários”, apresentada no Congresso Internacional de Ciências da Comunicação, em Braga, em setembro de 2009.

 “‘Ver como ninguém viu’, porventura mais do que ver “o nunca visto”, eis a tentação ou, melhor, a proposta que percorre a publicidade atual” (Como nunca ninguém viu, p. 142).

O texto procura argumentar e ilustrar esta intuição. O vídeo “A construção do impossível”, com duração de 20 minutos, acrescenta uma seleção de anúncios ilustrativos. Segue uma primeira versão do texto, não paginada mas com imagens a cores (a versão editada, com imagens a preto e branco, está acessível no seguinte endereço do livro: https://hdl.handle.net/1822/29165), bem como o vídeo complementar. Constam entre os meus trabalhos preferidos, concebidos, aliás, durante um período de deriva da desmotivação da cidade académica para a exploração de trilhos menos consagrados. Menos pontos no currículo e mais realização pessoal. A criação do blogue Tendências do Imaginário, em 2011, constitui um marco e um bom exemplo.

A aposta no assombro, especialmente no nunca visto, cruza-se com duas tendências que atravessam a publicidade. A difícil captação da atenção e influência dos públicos justifica duas rotações: dos produtos para as marcas e do desejo para a adesão. À distinção invejável sobrepõem-se a identificação projetada e a estranheza fácil de entranhar. O foco desliza, assim, por exemplo, do belo e do funcional para o surpreendente e o insólito, que tocam, impregnam e envolvem. Uma espécie de rotinização ou homeopatia do anómalo.

Albertino Gonçalves. A Construção do Impossível. Conferência no Congresso Internacional de Ciências da Comunicação (Braga, setembro 2009)

Reencontro biobibliográfico

Albertino Gonçalves

Quem fica. Fotografia de João Gigante. 2019

Deparei-me hoje, inesperadamente, online, com o artigo “La emigración portuguesa hacia Francia en la sigunda mitad del siglo XX: breve caracterización”, publicado, em coautoria com José Cunha Machado, na revista Migraciones y Exilios (3-2002, pp. 117-137). Tinha-lhe perdido o rasto, a tal ponto que, aquando do registo no currículo do CIENCIAVITAE, nem sequer lhe soube indicar a paginação. Um lapso obtuso, à luz dos cânones académicos, visto tratar-se de um contributo internacional. Não interessa! Agradeço esta surpresa uma partilha recente do seu tradutor: Benito Bermejo. Tamanha é a satisfação, que entendo partilhar o texto. Um motivo adicional impele. Volvidos vinte anos, retomo o tema da emigração. Na verdade, após um prolongado e quase absoluto retiro, estou a regressar a quase tudo.

Estou a estudar, com o Américo Rodrigues, as migrações em Castro Laboreiro até aos anos trinta do século passado, no âmbito do programa de investigação e intervenção Quem somos os que aqui estamos? Trata-se de uma iniciativa, inaugurada em 2016, associada ao MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, promovido pela AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual e pelo Município de Melgaço. À equipa, composta também por Álvaro Domingues, Daniel Maciel, João Gigante, Carlos Eduardo Viana e Rui Ramos, cumpre dedicar-se, cada biénio, sucessivamente, a um agrupamento de freguesias do concelho. Após Parada do Monte e Cubalhão, primeiro, e Prado e Remoães, em seguida, estamos a concluir a União das Freguesias de Castro Laboreiro e Parada do Monte. De cada “caderno de encargos” constam a publicação de dois livros com imagens e textos, um com fotografias produzidas pela equipa, o outro com fotografias recolhidas junto da população, a promoção de duas exposições e a organização de vários encontros científicos e culturais. Já foram editados os livros Pedra e Pele (2018), Festa (2018), Quem fica (2019) e Uma Paisagem Dita Casa (2022). Um dos livros teima em permanecer no prelo. O mais recente, dedicado à freguesia de Lamas de Mouro, inclui o capítulo “A ave, o casal e a lápide: as esculturas da porta da igreja de São João Baptista de Lamas de Mouro”, uma boa ilustração da forma de investigação e comunicação que tenho vindo a adotar. Permito-me disponibilizá-lo também no Margens.

Salto. Fotografia de João Gigante. 2016

Albertino Gonçalves

Natural de Melgaço, doutorado em Sociologia, investigador do Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, autor de Imagens e Clivagens: Os residentes face aos emigrantes (1996), Métodos e Técnicas de Investigação Social (1998), A Romaria da Srª da Agonia. Vida e Memória da Cidade de Viana (2000, c. Moisés de Lemos Martins & Helena Pires), As Asas do Diploma: a inserção profissional dos licenciados pela Universidade do Minho (2001), Da Universidade para o Mundo do Trabalho: Desafios para um Diálogo (2001, c. Leandro S. Almeida, Rosa Vasconcelos & Susana Caires), Dar vida às letras: promoção do livro e da leitura (2007, c. Fernanda Leopoldina Viana & Maria de Lourdes Dionísio), Vertigens do Barroco em Jerónimo Baía e na Actualidade (2007, c. Aida Mata, Ângela Ferreira & Luís da Silva Pereira), Perspectivas de Desenvolvimento do Município de Monção (2008, c. José Cunha Machado, Miguel Bandeira & Victor Rodrigues), Vertigens: para uma sociologia da perversidade (2009), A idade de ouro do postal ilustrado em Viana do Castelo (2010), Guimarães 2012: capital europeia da cultura: impactos económicos e sociais: relatório intercalar (2012, c. Rui Vieira de Castro, Fernando Alexandre et alii), Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura: impactos económicos e sociais: relatório final (2013, c. Rui Vieira de Castro, José Cunha Machado et alii).

Vestir os nus em vésperas do carnaval

No próximo dia 18, sábado, às 17 horas, apresento a conferência “Vestir os Nus. Censura e Destruição da Arte”, no auditório do museu arqueológico D. Diogo de Sousa, em Braga. Seguir-se-á, às 18 horas, noutra sala, com direito a bebida quente, uma mesa redonda sobre a censura na atualidade, com participação de vários amigos. Junto, como convite., o cartaz. Vai ser um encontro agradável e, estou em crer, compensador. Venha! E traga outro amigo, também.

Grandville: Disfarces e Metamorfoses

O inverno vai rigoroso. Nem sequer o blog Margens escapa aos rigores do frio. Congeladas as sementes, não brotam rebentos. Resta re-colher flores secas adormecidas em vasos pretéritos. Para eludir a falha e iludir a vista.

01. J. J. Grandville, Une promenade dans le ciel. Le Magasin pittoresque. 1847.

J. J. Grandville, Une promenade dans le ciel. Le Magasin pittoresque. 1847.

Jean-Jacques Grandville (1803-1847) é um ilustrador e caricaturista francês da primeira metade do século XIX. Adquiriu fama com as suas metamorfoses envolvendo homens, animais, vegetais e objectos.

11. J.J. Grandeville. Jongleur des univers. J. J. Grandville, O Malabarista de Planetas. Un autre monde. 1844

Conhecido como o “avô do surrealismo”, Grandville convoca o maneirismo, nomeadamente Giovanni Battista Braccelli e Lorenz Stoer (ver figuras 07 e 12). Algumas gravuras antecipam M.C. Escher (ver figuras 1, 7, 8, 9 e 19). Os Queen recorreram aos desenhos de Grandville para as capas do álbum Innuendo (1991) e respectivos singles (figuras 11 a 14.1).

11.1. Queen. Innuendo.

11.1. Queen. Innuendo.

Exceptuando as figuras 1 e 10, ambas de 1847, todas as imagens deste artigo foram extraídas directamente do livro Un Autre Monde, publicado em 1844. Grandville ilustrou vários livros, tais como as Fábulas, de La Fontaine, o Don Quixote, de Cervantes, as Viagens de Gulliver, de Swift, ou Robinson Crusoe, de Daniel Defoe.

Segue a música Innuendo, dos Queen (1991) e uma galeria com imagens de Grandville e do álbum Innuendo, dos Queen.

Queen. Innuendo. Innuendo. 1991

Galeria de imagens: J.J. Grandville e Innuendo dos Queen:

Atribulações das almas

01. Apocalypse. Flandres ca. 1313 (Bibliothèque Nationale de France)

Ontem e hoje, dias 13 e 14 de janeiro, estive em Castro Laboreiro. Fui apanhar frio! De regresso a Braga, ainda em terras da Galiza, deixei-me dormitar a imaginar que o Jeep, com o ar condicionado ligado, à medida que me afastava da aragem gélida do planalto, me aproximava de um calor muito quente, o bafo das bordas do inferno. Acudiram-me dois artigos que redigi há mais de sete anos, intitulados A Caminho do Inferno e O Último Suspiro. Retomo-os com uma ou outra revisão insignificante.

Filhos de Gutenberg, pensamos, equivocados, que o poder da imagem só se afirmou verdadeiramente com o advento da “idade da reprodutibilidade técnica”. Ainda cismamos, aliás, que o que realmente importa se alinha pelo alfabeto. Neste texto, o protagonismo volta a caber às iluminuras medievais: imagens de almas de defuntos rumo ao inferno, seja durante ou após o momento da morte. Relativamente raras, estas imagens constituem uma chave de acesso ao imaginário do cristianismo, ao nosso próprio imaginário.

02. Diabo leva presa por uma corda a alma de um amante. Matfre Ermengaud. Breviari d’Amor. França. Início do séc. XIV

Omar Calabrese chama a atenção para a “irrepresentabilidade da morte”, a impossibilidade de “representar precisamente a passagem entre a vida e a morte” (Calabrese, Omar, Como se lê uma obra de arte, 1997, Lisboa, Edições 70, p. 88). Pois, a Idade Média tardia e o início da Modernidade concentraram-se em atos e instantes tais como a visita, o toque ou o beijo da morte ou, aquele que mais foca o presente artigo, o último suspiro, a exalação da alma que se despede do corpo. Não direi última viagem porque existe a crença de as almas poderem não ter repouso e até regressar do além (ver Exorcismos).

03. Diabo recebe a alma de um rei. França, c. 1475-1525 © The British Library

Muitas almas não têm salvação. Condenadas, sem indulgência, são esperadas pelos demónios que as transportam para a boca do inferno (figuras 2 a 3). Há, porém, almas cuja salvação ainda não está decidida. São motivo de disputa entre anjos e demónios (figuras 4 a 6). Um reparo: se os anjos e os demónios lutam pelas almas dos moribundos, então a salvação não depende exclusivamente do comportamento neste mundo, da vida terrena, nem está adiada para o Juízo Final. Há margem para resgate durante a passagem, eventualidade que inspira as ars moriendi, livros que ensinam a enfrentar a morte, ou purificação no outro mundo, neste caso são almas polémicas, talhadas para o recém-inventado purgatório, o terceiro lugar do além (Goff, Jacques Le, 1981, La Naissance du Purgatoire, Paris, Gallimard).

As almas são representadas sob a forma de crianças ou, em alguns casos, como miniaturas do morto. Há almas benditas, conduzidas por anjos, num tecido branco, para o céu. Nestes casos, o morto, lendário ou real, pode manter-se apostrofado, identificado, ser alguém até no outro mundo. Na figura 7, o morto é Rolando, pretenso sobrinho do Imperador Carlos Magno, herói do romance La Chanson de Roland. Numa versão do século XII (Pseudo-Turpin), o arcebispo Turpin tem uma visão: o rei Marsiliun é transportado por demónios e a alma de Rolando por anjos (Merwin, W. S., 2001, Song of Roland, New York / Toronto, Modern Library Paperback Edition, p. XIV).

07. A alma de Rolando transportada por anjos. Grandes Chroniques de France . BNF Fr 10135, fol. 144r Séc. XIV.

No rolo mortuário da figura 8, a pessoa morta é Lucy, fundadora e primeira prioresa do convento beneditino de Castle Hedingham, em Essex. Na imagem central, Lucy é elevada por dois anjos. Na parte superior, aparecem Cristo e Nossa Senhora com o Menino. O rolo mortuário, mandado fazer pela sucessora, foi enviado a 122 entidades religiosas. A intenção e a mensagem são inequívocas. Há poucos santos na terra, mas, provavelmente, também não abundam no Céu.

08. Rolo mortuário de Lucy, fundadora e primeira prioresa do convento beneditino de Castle Hedingham. Essex. C 1225-1230

Estas representações da passagem para o outro mundo persistem nos séculos seguintes. No Mosteiro de Tibães, em Braga, existe um azulejo com a morte de São Bento. Vê-se o santo morto, de pé, e a ascensão da alma numa espécie de “tapete voador” rodeado por anjos. O tapete é um pormenor que intriga, mas convenha-se que, para subir ao céu, a diferença entre um “lençol” e um “tapete” não é intransponível.

09. Anjo devolve a alma ao monge de Saint-Pierre de Cologne, Miracles de Notre Dame, Besançon, BM, ms. 0551, f. 047v. Séc. XIII.
10. Anjo devolve alma de monge afogado. Besançon, Bibliothèque municipale, Ms. 551 f. 077v

As iluminuras das figuras 9 e das, ambas com monges, são surpreendentes. Os anjos não estão a levar as almas, réplicas dos mortos, para o céu. Estão a restituir as almas ao monge Saint-Pierre de Cologne e ao monge afogado, de Besançon (França), estão a devolver a vida a “não mortos” (Omar Calabrese). Que a “passagem entre a vida e a morte” é reversível sempre o soube a Igreja. As almas do monge Saint-Pierre e do monge afogado não vão para o céu, nem para o inferno, nem para o purgatório. Nem sequer vão, vêm! Transitam em sentido inverso.

São histórias de outras eras. O inferno, entretanto, mudou; outrora, confinava-se ao outro mundo, agora faz parte deste. O inferno está no meio de nós. Quanto aos não mortos e ao trânsito inverso, encontraram guarida nos novas arenas do imaginário: nos filmes, na televisão, nos videojogos e nas redes sociais. O desamparo face à morte, e face à vida para além da morte, não desapareceu.

11. Herrad von Landsberg, O inferno. Hortus Deliciarum, 1180

Nas imagens da morte, os demónios mostram-se sôfregos e irrequietos. É plausível que a maioria das almas se destine ao inferno. Mas o diabo é insaciável. Os demónios não param de disputar almas, de as transportar e de as infernizar. Andam atarefados numa azáfama interminável. As imagens do inferno condizem: uma turbulência tórrida em que as almas sofrem e os demónios trabalham. Os infernos de Herrad von Landsberg e do Missal de Raoul du Fou propiciam um bom exemplo: os diabos torturam, carregam, empurram, grelham, fritam, cozem e comem as almas danadas.

12. Caldeirões do inferno. Missal de Raoul du Fou, Normandia, ca. 1479-1511

As representações do Juízo final encenam o paraíso, o purgatório e o inferno. Por exemplo, Juízo Final de Jan Van Eick (c. 1430-1440; figura 13), Giotto (1306), de Jan Van Eick (c. 1430–1440; figura 14)) e da Catedral Vank (séc. XVII; figura 15) evidenciam o que sabemos desde a catequese. O céu, em cima, o inferno, em baixo; o purgatório à direita de Cristo, o inferno à esquerda; o céu com cores claras, o inferno com cores carregadas com predomínio do vermelho… E, sobretudo, no inferno, um movimento vertiginoso; no céu, ordem, repetição, placidez. Ao inferno, coube-lhe o mesmo que a Adão e Eva, o trabalho; ao paraíso, “o descanso eterno”! Se existe pecado mortal que os demónios não cometem é o da preguiça. O inferno assemelha-se a um formigueiro inflamado e acelerado.

Taymouth Hours é um livro de horas datado de 1325-40. Retenho algumas iluminuras alusivas às atividades dos demónios . Não existissem autênticas bandas desenhadas no século IX, nomeadamente com episódios da Bíblia, diria que o Taymouth Hours antecipa o género. Dedicados e despachados, os demónios carregam os condenados para a boca do inferno. No interior, o ambiente é febril. As tarefas nunca acabam. Acumulam-se. Uma vez terminados, os suplícios têm que ser recomeçados. A never ending pain!

Segue uma galeria com gravuras recortadas das margens do livro de Horas de Taymouth. Depositado na British Library (Yates Thompson MS 13), pode ser integralmente visualizado no seguinte endereço: https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=yates_thompson_ms_13_fs001r

Galeria com gravuras das margens do livro de Horas de Taymouth. 1325-1335. British Library. Yates Thompson MS 13.

Mais para entretenimento próprio do que para proveito alheio, montei um pequeno vídeo em que estas gravuras do livro de Horas de Taymouth são acompanhadas por um excerto do álbum Heaven and Hell, do Vangelis. Segue o resultado.

Atribulações das Almas. Gravuras do livro Horas de Taymouth acompanhadas com um excerto do álbum Heaven and Hell, do Vangelis

Tesouros visuais. O livro de salmos de Luttrell

Margens conhecerá momentos mais ou menos curtos de hibernação ou pousio. É uma tentação recheá-los ou entrecortá-los com apontamentos singelos, em jeito de entremez ou corta-sabores, mais apostados nas imagens, dignas de ser vistas, do que nas palavras, breves e leves. Pingos esporádicos entre artigos de autor.

Prestam-se a este desígnio algumas compilações de iluminuras que, para aproveitamento ou por horror do vazio, preenchem as margens e os espaços entre parágrafos dos livros de oração medievais. Algo difíceis de encontrar, proporcionam uma surpresa fabulosa.


Saltério de Luttrel, Inglaterra ca. 1325-1340. British Library, Add 42130, fol. 153r.jpg British Library copyright

O livro de salmos de Luttrel, um dos livros de oração mais antigos e célebres, guardado na British Library (Add. MS 42130), é composto por 309 páginas (350 x 245mm) em pergaminho, ilustradas por uma sequência apreciável de imagens sagradas, monstros híbridos e cenas da vida quotidiana. Criado provavelmente entre 1325 e 1335 na diocese de Lincoln por encomenda de Sir Geoffrey Luttrell (1276 –1345), de Irnham, o texto foi escrito por um copista e as iluminuras foram desenhadas por pelo menos cinco artistas diferentes.

Procedemos, morosa e pacientemente, à montagem, em forma de caderno, de trinta páginas do saltério de Luttrell. O resultado espelha-se na apresentação de diapositivos (PowerPoint) disponibilizada para descarga a que acresce uma galeria de imagens com atividades da vida quotidiana. É um gosto partilhá-las. É possível o acesso à digitalização integral do saltério de Luttrell no seguinte endereço da British Library: https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=add_ms_42130_fs001ar

Para download (13,6 MB) do referido caderno (apresentação com imagens e música) de 30 páginas do livro de salmos de Luttrel, carregar na imagem precedente ou no seguinte link (a apresentação está programada, com sincronização com o som, deixe correr as imagens sem fazer cliques):

Os bons nómadas

Esser Jorge Silva

Dos nómadas fica-nos o romantismo de Bruce Chatwin (1940-1989). Repete-se aqui a história que, de tantas vezes escrita e rescrita, fixou a lenda do antigo porteiro da leiloeira Sotheby’s transformado primeiro em especialista do impressionismo, seguindo-se o cargo de diretor da referida leiloeira. Anos depois de abandonar um curso de arqueologia e de se dedicar à narrativa numa coluna sobre arte no Sunday Times, Chatwin desapareceu deixando na sua secretária uma célebre nota: “fui para a Patagónia”. Na verdade cumpria um dos seus desejos muito íntimos na descoberta de locais de tal modo possuídos pelo desinteresse ao ponto de apenas fugitivos, foragidos, apátridas, ladrões e assassinos por lá se acercarem. Além de tentar saber sobre brontossauros, almejava uma vida longe numa casa “baixa, feita de troncos com um telhado também de madeira e bem calafetada contra as tempestades; lenha a arder na lareira, as paredes cobertas com os melhores livros, um lugar onde viver quando o resto do mundo fosse pelos ares” naqueles dias em que se instalara uma dita guerra fria.

Figura 1 – Na Patagónia de Bruce Chatwin e Patagónia Express de Luís Sepúlveda onde o chileno relata o encontro com o inglês.

Por ali andou anotando conversas, olhares, paisagens, flores, fauna, flora, lendas e histórias com sucessivas personagens que se revezavam em entradas de cena provindas de recantos cheios de non sense, como se fossem produto de mágicas saídas de onde a imaginação não alcança. Anotava as andanças nuns pequenos caderninhos pretos muito jeitosos, de capa dura e tamanho gracioso, até se cruzar certa noite com uma outra alma perdida na inquietude, um ex-segurança ali exilado, que no dia 11 de setembro de 1973 se havia salvo à vigésima quinta hora do Palácio La Moneda, em Santiago, no exato momento em que as balas perfuravam o corpo do seu presidente Salvador Allende. Nos caderninhos pretos, o “inglês nómada porque não podia ser outra coisa”, colhia dados para o seu futuro memorável “In Patagónia” (1977, editado em Portugal pela Quetzal Editores). Enquanto isso, Luís Sepúlveda (1949-2020), o “chileno exilado porque não podia deixar de ser outra coisa”, entrava no nono ano vagamundeando entre o Rio Negro e Ushuaia à espera de autorização para entrar na Alemanha. Destas deambulações nasceria “Patagónia Express” (1995, editado em Portugal pela Porto Editora) cujo primeiro capítulo “apontamentos de uma viagem a lado nenhum” revela, sem despudor, o aqui e agora depositário do espírito nómada.

Chatwin anda por ali subindo e descendo as Terras de Fogo carregado de Moleskines, esses caderninhos pretos cujos utilizadores passados, desde Van Gogh, Celine, Picasso ou Hemingway, parecem tê-los certificado de altar de sabedoria. Ao oferecer alguns a Sepúlveda  recomendou-lhe a numeração das páginas e a indicação de uma recompensa e um endereço para contacto em caso de perda. E o chileno, um marxista com todo o tempo livre nos intervalos da procura da cabana de Butch Cassidy e Sundance Kid, dois famosos assaltantes de bancos que por ali se deixaram morrer, decidiu rezar em escrita a façanha fetichista dos possuidores de um Moleskine fazendo destes caderninhos outrora raros e maravilhosos, não um objeto auxiliar de produção cultural, mas uma artefacto cultivado com o adubo do capital, vendido a preço mais caro do que qualquer produto literário ou artístico que ali se possa meter.

Figura 2 – Moleskines de Bruce Chatwin.

O nomadismo, seja a promessa dos Moleskines ou o sentido do destino pária de Sepúlveda ou a errância de Chatwin, estava dominado pela viagem e pela descoberta, ainda que esta saísse do ângulo mais obtuso de um olhar. Ao nómada interessava pouco ou nada o destino. Deslocava-se para captar e desaparecer levando consigo o sentido, os sons, as cores, os hábitos, a diferença, as particularidades, as contradições, as idiossincrasias, deixando de si uma leve brisa de esquecimento. Em “The Songline” (1987, editado em Portugal com o título “Cântico Nómada” pela Quetzal Editores), Chatwin é arrastado para uma introspeção quase sagrada. Na imensa planície australiana, deixa-se envolver pelos sons aborígenes locais para questionar até que ponto a linguagem não começou pela necessidade poética do canto para marcar o espaço e afugentar os predadores. É uma hipótese. A dúvida abraça o nómada, mesmo quando o seu espírito é convocado. No póstumo “What Am I Doing Here” (1989, coleção de textos publicados em Portugal com o “O que faço eu aqui” pela Quetzal Editores) o nómada desespera com a incompreensível falta de sentido da sua passagem pela geografia. A pergunta é a mais sincera cedência do nómada à ausência de objetivo no seu errar acidental por trilhos desconhecidos a caminho de nenhures, talvez a ilha da utopia.

Figura 3 – The Songlines (Cântico Nómada): quase-ficção ao serviço da antropologia.

Por oposição ao que atualmente é apresentado do nomadismo, Sepúlveda e Chatwin eram nómadas analógicos. Os novos nómadas são “digitais”. Não levam a capa dura do Moleskine, nem precisam de numerar páginas ou oferecer recompensas pela perda das notas do campo. Os nómadas digitais são muito concretos na crença de que tudo fica na cloud, esse infinito e invisível depósito de tudo que apesar de voar acima das consciências se afirma o mais seguro dos armazéns. Rezam as notícias que há agora uma caneta com Moleskine a propósito, capaz de digitalizar os rabiscos do nómada. A smart pen é um desses utensílios que realiza o milagre da transformação do “nómada analógico” em “nómada digital”. 

Figura 4 – A smart pen na transformação do analógico em digital

Contrariamente aos nómadas analógicos, os nómadas digitais não existem para perpetuar memórias, captar sentidos do lugar, compreender especificidades da geografia, entender personagens. Destinam-se a registos digitais, ato que não acolhe a poesia do lugar que os alberga. Não vão atrás da mágica humana na realização do filme da existência. Pelo contrário, procuram a fórmula algorítmica que embebeda a mente humana. A fantasia imaginária, matéria prima dos andarilhos, dá lugar a um certo fantástico virtual da realidade de sofá.

Enquanto os nómadas analógicos passavam despercebidos, os nómadas digitais são disputados pelos Estados como uma nova mercadoria. Diria Karl Marx que há fetichismo aqui. Verdadeiros nómadas tinham valor intrínseco, autoral e com autoridade inscrita nos seus corpos. Nómadas digitais são reconhecidos por um tipo de valor externo e subordinado ao valor de troca do seu produto que lhes escapa para uma qualquer multinacional. São uma forma fácil de registar exportações de serviços e fazer entrar capitais. Por todo o mundo se produz legislação para acolher os novos nómadas. Já não é nómada quem quer ser mas quem o Estado determina. Como é fácil de perceber, não há delicadeza nem afeição nas leis que recebem o nómada digital. Nesta contradição nómada, o original que voava livre sobre a realidade, caminha agora cauteloso sob regras, leis e diretivas.  

Figura 5 – Representação típica do nómada digital na Internet: sentado ao pé da água, mergulhado num ecrã

Os velhos nómadas eram-no e ponto final. Nem eles sabiam que o queriam ser. No final da jornada podiam assim ser categorizados, não por estatuto mas por falta dele. Os novos nómadas só o podem ser com autorização. Almeja-se dos nómadas digitais que gostem muito da terra, apreciem o sol e a praia, os baixos preços dos restaurantes e os bons profissionais de limpezas sempre prontos a limpar o pó e a arrumar a casa. A grande esperança passa por se transformar os nómadas digitais em normais habitantes digitais e assim, de uma assentada, melhorar a estatística e a literacia digital do país. A diferença é que tanto Sepúlveda como Chatwin perceberam o nomadismo como “Anatomy of Restlessness” (1997, editado em Portugal com o título “Anatomia da Errância” pela Quetzal Editores). A inquietação não só dominava todos os sentidos do nómada analógico como convocava o seu espírito de partida permanente. A utopia de aportar num melhor lugar desfiava o devir e convocava a errância. Mas os nómadas digitais não podem perceber a errância porque, como diria Simmel, estão mais próximos da forma do mercador do que da forma do viandante.  

Esser Jorge Silva, doutorado em Estudos de Comunicação, Professor Adjunto no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (IPCA), é autor de Histórias de Guimarães (1999), O Que Fica no Coração (Org. 2012), Teleférico da Penha – Imaginário e Tealidade / Biografia do primeiro teleférico construído em Portugal (2014), Tempo Livre Guimarães / 20 anos – História de uma Estratégia Municipal para o Desporto (2019) e Nascimento da Unidade Vimaranense (2021).

Santuário da Boa Morte, Correlhã, Ponte de Lima

Eduardo Pires de Oliveira

Corro este Minho onde vivo porque sou minhoto. E porque, mais importante ainda, tenho um imenso prazer em nele viver. Vejo o verde, bebo o verde, umas vezes tinto quando a comida é menos verde, bebo o branco quando o prato me apresenta alimentos que pedem esse verde.

Subo montes ou sigo rios sempre no prazer de conhecer mais e mais este meu, este nosso Minho. Minho que muitas vezes vai além Minho, penetra na Galiza, na mesma geologia, na mesma orologia, no mesmo milho, no mesmo alvarinho, no mesmo povo, no mesmo Labrego, tão bem tratado no celebrado Catecismo, já velho de quase século e meio, de 1889.

As lutas pelo poder foram as mesmas, ora em Santiago onde um Geraldes, um bispo com graves, grandes apetências de operador turístico, descobriu e logo vendeu a toda a Europa um corpo de um S. Tiago que atraiu todos os peregrinos que descobriram no túmulo de imediato criado um contraponto ao desejo cada vez mais impossível de uma ida a Jerusalém.

Ora, em Braga cujos cónegos viram logo que os rendimentos da peregrinação se iriam perder, esses homens quiseram atalhar a sua mais do que possível perda imediata e logo descobriram no Próximo Oriente um Santiago, este Interciso, que fizeram colocar em lugar nobre, numa capela da cabeceira da sua Catedral. Mas ou porque um santo era “maior”, era mais apelativo que o outro, ou porque o vendedor de sonhos e de desejos era melhor do que os outros, o Tiago “galego” ganhou ao “bracarense”, apesar de Braga ser naqueles tempos Primaz das Hespanhas e Santiago não. E o Tiago de Braga logo desapareceu, não no passar da fímbria dos tempos, mas sim derrotado por um marketing mais inteligente, muito mais bem montado.

Sonhos e vendas que têm, para mim, um dos exemplos mais simples e mais difuso nas celebradas fitinhas do Senhor do Bonfim que todos os jovens utilizam, quase sempre não sabendo o porquê de o fazer, usando-as porque sim. Um dia, saboreando um acarajé – depois de provar um abará que não me atraiu tanto, talvez por ser mais “macio” – acompanhado das inevitáveis cervejas para retemperar a garganta, perguntei a uma Amiga baiana, a Maria Helena Flexor, que sabia tudo ou quase sobre aquela sua nova cidade (tinha nascido em São Paulo, um dia fora para Salvador) onde vivia há já demasiados anos, o porquê daquelas fitinhas que cingiam os pulsos, e o que mais me interessava, a sua origem.

A resposta foi negativa, não sabia, era uma tradição, que um dia (qual?, quando?) tivera início. Um dia.

Estava então eu longe de saber que aquelas fitinhas poderiam ter origem quiçá neste meu amado Minho, num dos santuários menos falados deste Minho que tem tantos santuários, e que para mim é um dos mais espectaculares, embora pouco mais seja do que uma capela de finais de Seiscentos que a partir de meados do século XX tentou ter um parque à maneira do Bom Jesus do Monte, com uma escadaria, um laguinho, coretos e, desde há alguns, poucos anos, um soberbo parque de merendas, com mesas e mesas a perder de vista mas que mesmo assim não são em número suficiente para receber os ranchos de comensais que não sei se vão ali à Correlhã (Ponte de Lima), pela Senhora da Boa Morte, ou porque sabem que há uma sombra que os acaricia e mesas sem fim onde podem colocar os seus fartos e sempre apetitosos farnéis.

Lembro-me do primeiro dia em que lá fui, numa visita guiada durante um congresso mundial havido em Braga, ideia do já falecido Amigo Luís Moura Sobral (natural de Viseu, fizera o secundário em Braga, a licenciatura e o doutoramento em Lovaina, acabara como professor de História de Arte no Canadá, em Montreal) congresso em que se iria debater a Gesamtkunstwerk, a Obra de Arte Total. Corria o ano de 1995.

Eu estava no meio de um mundo de pessoas oriundas de todo o mundo, do Chile à Polónia, da Checoslováquia ao Perú, Perú cujo representante era curiosamente checo… Brasileiros sem par, quase tantos quanto os portugueses, a par de franceses, alemães, italianos, ingleses e de outros tantos mais países.

A ideia da ida lá era a de ver/sentir o espanto, a dor, um lamento. O que parafraseando Jonh Steinbeck, as primeiras palavras do seu livro mais interessante dos tempos iniciais, o Bairro da Lata, espanto, dor, lamento poderiam exactamente significar a mesma palavra espanto, grito ou maravilha. Ou noutras palavras, as que me parecem mais correctas, um valentíssimo murro nos queixos. Sim, um valentíssimo murro nos queixos! Já lá iremos.

No meio de uma encosta em que algumas lendas se cruzam com vestígios de mineração do tempo dos romanos e com um topónimo sem dúvida belo – monte da Nó –, situa-se uma capela voltada à bela veiga do rio Lima e de onde outrora se podiam ver os contrafortes do Soajo ou os arredores de Viana e um pouco mais longe o azul das águas do Atlântico. Uns dirão, sítio privilegiado. Eu tão somente direi, Minho.

Uma capela grande iniciada em 1695, muito estranhamente com três naves – à maneira das catedrais e de outras igrejas grandes como a matriz da vila, de Ponte de Lima – com um tecto neogótico em madeira, algo que foi corrente naqueles anos na Ribeira Lima, da década de 1720 ou 1730, e que surgiu muito antes do neogótico inglês, portanto, ou do de algumas capelas laterais da celebrada igreja de São Francisco, do Porto. Uma capela grande, dizia, a que o povo, curiosamente, chama mosteiro, embora nunca ali tenha havido qualquer vestígio de vivências de frades ou de freiras; como também chamam mosteiro à igreja velha de São Bento da Porta Aberta!

Uma capela onde se entra e perante o que os nossos olhos veem logo nos vêm à memória as estranhíssimas palavras de Pinho Leal – ou de quem para ele escreveu sobre este lugar:

Entra-se na capela e tem-se medo. Repito: Entra-se na capela e tem-se medo!!!

Eu não tive medo naquele ano de 1995, naquela minha primeira visita, porque tínhamos ido em dois autocarros apinhados de gente, umas 80 pessoas. Mas muito recentemente, num dia em que estava a falar com a Presidente da Junta de Freguesia, entrou no seu gabinete um colega de outra freguesia próxima para lhe pedir o livro acabado de sair, no mês anterior, sobre o santuário. E ao ver a foto que preenche a capa, ele disse logo: quando em miúdos vínhamos à Senhora, eu tinha sempre medo ao entrar na igreja. Só o senhor, perguntei-lhe eu. Não, respondeu, todos os rapazes, todos os que vínhamos. E acrescentou, aqueles santos metiam-me medo. Um medo dos diabos!

Aqueles santos metem medo! Eu já tinha ficado intrigado com estas palavras que tinha lido no estudo que Flávio Gonçalves publicara em 1977 na revista “Bracara Augusta”.

Não tive medo. E não tive apenas porque estava ali no meio de muita gente uns de conhecimento recente, outros velhos amigos. Não tive medo porque o meu olhar, a minha atitude foi sobretudo de um imenso, de um infinito espanto.

Espanto por ver uma capela de três naves num sítio tão ermo. Espanto por ver numa mesma capela um tratamento duplo ao mistério da morte, no masculino e no feminino, algo que não conheço em nenhum outro local deste país.

A morte de Cristo no piso térreo, patente num excelente conjunto de imagens lavradas de forma clássica por uma mão excelente em que tanto ficamos presos às expressões fortemente dolorosas – mas com o seu quê de tradicionais – de Maria e das santas mulheres que a acompanham, de Nicodemos e de José de Arimateia.

Ou a morte, perdão, o Trânsito, de Maria, no andar superior, uma Maria deitada, rodeada, em semicírculo, pelos apóstolos do seu Filho, no conjunto mais expressionista da História de Arte portuguesa, mas expressionista de 1719 e não daquela corrente que surgiu entre nós nos finais da década de 1920 e na de 1930.

(Lembro-me bem da vez que lá levei o pintor surrealista Cruzeiro Seixas e lhe disse que iria ver uma obra expressionista de 1719 e sem par na nossa arte. Ele olhou-me, melhor, mediu-me longamente de cima a baixo e os seus olhos, que não enganavam ninguém, chamaram-me louco. Depois de uma viagem sem palavras, ao chegarmos a Braga, na esplanada onde bebíamos uma água talvez para refrescar emoções demasiado fortes, disse-me: afinal não estava louco… tinha razão no que me disse; nunca vi, nunca verei nada igual!)

Como disse, as imagens dos apóstolos estão em semicírculo. Mas para o conjunto ser mais expressivo umas, as das pontas, estão ajoelhadas sobre terra, perdão, sobre a madeira. As outras, estão colocadas em plintos que vão crescendo conforme nos vamos aproximando das figuras centrais. É impossível fazer-se uma mais expressiva colocação de actores, encontrar um sentido, maior teatralidade. Até porque as imagens, todas as imagens, todas com um tamanho maior do que o da realidade, só expressam um sentimento, um terrível sentimento, dor. Pouco antes tinham perdido o seu chefe, Cristo, agora iam ficar sem a outra figura chave do seu grupo, daquele grupo que expressava ideias revolucionárias, mas de uma forma doce, Maria.

Naqueles homens não havia um centímetro quadrado do seu ser, dos seus braços, dos seus dedos, dos seus olhos, das suas bocas que não exprimisse um horror infindo, uma dor infinda por mais esta perda irremediável que estava quase para acontecer. Perda, dor que se veem na torção dos seus corpos, numa quase dança, dança de movimentos parados, suspensos, em que a torsão dos corpos se conjuga perfeitamente com o movimento das mãos, o rito das bocas, o carregado dos olhos, o encrespado dos cabelos…

Prefiro, porém, repetir aqui o que já escrevi noutro local:

Globalmente, podemos dizer que há uma forte diferença entre as cabeças e os corpos. Apesar de terem de ser apresentadas com medidas superiores ao natural – como era corrente na época nos grupos dos passos –, apesar de terem que ostentar um rito duríssimo que a pintura minuciosa dos dentes amplia, há aqui cabeças bastante boas, dignas mesmo de um bom mestre. Estão neste caso a de São Pedro, com um ar profundamente pensativo, como que duvidando do que ali estava a acontecer, a de São Mateus, a de São João, e a de São Simão.

Os corpos apenas interessavam pelo aspecto gigantesco que davam às imagens ou pelo quanto poderiam ajudar a transmitir uma mensagem ainda mais expressiva. Daí a torção incrível do corpo de São Paulo, quase em forma de X, com o braço direito muito levantado, com o modelado das vestes desse braço a sugerir uma maior vitalidade ao gesto prolongado até ao infinito pelos finíssimos dedos e o ondulado ostensivamente grosseiro dos cabelos, a chamar a atenção não para a sua cabeça, mas para a direcção do olhar.

Olhar que atinge o ponto maior de contrição em São Tomé, que quase parece estar mais arrependido do seu gesto de dúvida do que propriamente da morte do seu Mestre! Aqui são os olhos, estrategicamente colocados em planos diferentes, o olho direito semicerrado, o juntar dos cabelos no início da cana do nariz e um pouco caídos sobre o lado direito, o que ajuda à sensação daquele olho estar contrito. Os cabelos não são ondulantes como os de Paulo, nem poderiam ser porque aqui tudo se passa ao contrário. Nesta imagem, o sentimento não se dirige para o alto, mas para o chão, ou seja, para dentro de si mesmo. Essa a razão por que a barba, embora revolta, está mais vertical. As mãos crispadas sobre si não transmitem apenas a dor que o trespassa ou algum resto de dúvida sobre os motivos que o levaram a ter aquela atitude de descrença. As mãos, porque colocadas num registo horizontal, são aparentemente um elemento um pouco dissonante; mas a verdade é que harmonizam todas aquelas linhas de forte tensão e não deixam que a figura se esvaia, quase parecendo que o seu olhar, que a sua dor, se concentra nelas.

O discípulo querido, São João, que fecha o conjunto do lado oposto ao de Pedro, tem uma cabeça de grande finura; semi-ajoelhado, tem um olhar perdido de dor. São Simão está em posição quase oficiante. Mais do que pela sua calvície, é notado pela sua cabeça sisuda e pela mão esquerda, muito nervosa; o seu corpo e roupagem apresentam uma qualidade de tratamento que não tem qualquer paralelo com os demais.

A imagem de São Tiago Maior aproxima-se muito da de Santo André, com o mesmo sentido de mãos, mas com um olhar mais frontal. São Bartolomeu é, entre as figuras de carácter mais popular, a que é apresentada com maior naturalidade. A sua cabeça faz lembrar imenso a de Nicodemos, do grupo da Lamentação de Cristo. É talvez a figura que se encontra em pior estado de conservação, com uma lona pintada a esconder a madeira fortemente corroída do braço esquerdo.

Santo André recebeu uma cabeça disforme que amplifica a incidência do seu olhar veemente e muito dolorido, mas dissonante do gesticular das mãos. São Tiago Menor tem uma cabeça em tudo semelhante à de Santo André, mas o seu olhar está muito mais cheio de dor, não querendo encarar a dura realidade que se abateu sobre ele e os seus companheiros.

São Filipe parece estar a tentar chamar os seus companheiros com gestos muito amplos. O seu corpo muito esguio é contrabalançado pela ampla aba da mão esquerda e pelos fortíssimos panejamentos que se cruzam em forma de X na zona da cintura, quase que segurando a sua figura extremamente esguia.

Grosso modo, os corpos são fortes, modulados apenas grosseiramente, no que ajudam ao espectáculo que ali estava em cena, a transmitir uma maior tensão, um terror mais veemente.

Os rostos são afilados, em forma de V, com barbas fortes e cabelos em cachos. Mas as roupagens têm interessantes modulações, foram desenhadas com cuidado, com um saber que nem todos teriam capacidade de igualar. As peças valem cada uma por si, mas o conjunto é de uma grandiosidade única, aterradora, apesar de terem saído de diferentes mãos.

(O Santuário de Nossa Senhora da Boa Morte. Correlhã – Ponte de Lima. Ponte de Lima. Câmara Municipal. 2021)

E não posso deixar de trazer aqui a lembrança da memória da conversa que tive naquele ano de 1995 com os dois colegas do Museu Nacional de Escultura, sintomaticamente situado não na capital Madrid, mas sim em Valladolid, a 190 quilómetros de distância: nós não temos nada igual. Nós não temos nada igual. Isto não tem paralelo!

E tudo isto, ambas estas mortes, no masculino e no feminino, estão colocadas numa estrutura que também é sem paralelo em Portugal, não num retábulo, mas sim numa espécie de dossel em que o Cristo morto está no piso térreo e a Maria preparada para o Trânsito está no tabuleiro superior, coberta por um céu ovalado repleto de nuvens e de anjos, lavrado em 1719 por um entalhador bracarense, Francisco Pereira de Castro.

Outras palavras que não as minhas de homem maravilhado com este local podem ser colhidas noutras mão, agora as escritas por Vítor Serrão no seu blog, dedicadas ao livro que saiu em 2021, a 30 de Julho, no dia da romaria, romaria que nesse ano foi amordaçada pela pandemia, o que de maneira impediu que a capela estivesse cheia:

Fundado em 1695, o Santuário da Senhora da Boa Morte na Correlhã, em sítio altaneiro de sabor hierofânico na encosta da Serra da Nó, dominante sobre a veiga do Lima, guarda um dos mais impactantes conjuntos de escultura devocional portuguesa do século XVIII. A obra, já aliás destacada na sua força artística em estudos de Ernesto de Sousa (1973) e de Flávio Gonçalves (1977) — ambos muito relevantes, devo dizer, para rever as reservas juvenis de tantos, como eu, face à escultura e talha barrocas… — impõe visita demorada por causa desse acervo de imaginária que, em contexto de Barroco rural, surge dotado de tal força expressiva…

Neste livro em que se assentam novos saberes (e que em qualquer ‘certificação de méritos científicos’ que fosse justa, isenta e objectivas estaria sempre em lugar de destaque), Eduardo Pires de Oliveira afirma que a escultura do Santuário tem forçosamente de «figurar definitivamente na lista das mais estranhas e excepcionais peças do Barroco português e, como tal, em todos os manuais de História de Arte Portuguesa».

O que se sabe hoje a partir dos saberes aduzidos por este livro sobre a arte do santuário atesta a importância do caríssimo retábulo entalhado em 1719 pelo mestre bracarense Francisco Pereira de Castro — retábulo este que é sobretudo um grande dossel abrigando o grupo escultórico da Morte da Virgem –, a policromia e estofo das esculturas dos Apóstolos, em 1722, por João Coelho de Araújo e João Fagundes, a obra dos altares colaterais feitos em 1741 por outro entalhador famoso de Braga, Jacinto da Silva, uma intervenção do pintor Manuel Furtado de Mendonça no grupo da ‘Deposição no Túmulo‘, entre outras referências.

Persiste o mistério de quem era este prodigioso MESTRE IMAGINÁRIO, assim citado, sem nomeação expressa, nas contas do Santuário, e que já Ernesto de Sousa, extasiado pela cabeça de São Pedro e certos ‘orientalismos’ de lavor nessa e em outras figuras do apostolado, chegou a comparar como um antecedente do genial António Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que atingirá mais tarde em Congonhas do Campo (Minas Gerais) o áspide do ‘pathos’ escultórico do Barroco… Aliás, Eduardo Pires Oliveira aventa os nomes de Marceliano de Araújo, de Braga, e Manuel Gomes, de Arcos de Valdevez, como escultores coetâneos deste mestre da Correlhã e, também, sublimes lavrantes da madeira, mas as diferenças de estilo parecem consideráveis — pelo que este mistério vai prosseguir, sem que daí decorra nenhuma menorização das esculturas do Santuário da Boa Morte, às quais o anonimato nada retira de sublime.

Escrevi eu logo no início deste texto: Sonhos e vendas que têm, para mim, um dos exemplos mais simples e mais difuso nas celebradas fitinhas do Senhor do Bonfim que todos os jovens utilizam, quase sempre não sabendo o porquê, usando-as porque sim.

Fitinhas que, quem sabe (?), poderão ter tido início aqui neste santuário da Boa Morte pois sabe-se da grande ligação que desde o século XVI o Minho tinha com o Nordeste brasileiro (Viana do Castelo era, naqueles tempos, o porto privilegiado na recepção do açúcar que vinha do recôncavo baiano). Salvador que foi um dos portos de chegada, no séc. XVIII, para o infindo número de minhotos que procuravam aceder ao eldorado brasileiro, Minas Gerais, onde procuravam a hipótese de uma vida melhor do que no seu Minho natal nunca em dia algum poderiam ter.

Fitinhas que já desde o ano económico de 1720/1721 eram, com autorização da confraria residente na capela, colocadas à venda (mas desde quando?) nas tendas dos vendedores ambulantes que estadeavam no terreiro nos dias da romaria de Nossa Senhora da Boa Morte… Vejam-se alguns textos extraídos dos livros velhos da Confraria:

… por vir notícia da mesa que os tendeiros traziam a vender medidas com o título de Nossa Senhora da Boa Morte para as venderem ocultamente estando esta Irmandade desde o tempo de sua erecção na posse antiquíssima de só ela as mandar fazer e vender para ajuda e veneração da mesma Senhora,

porém, sem embargo de que se deitou bando por ordem do juiz ordinário deste Couto a requerimento dos oficiais desta Irmandade para que os ditos tendeiros nenhum vendessem as ditas medidas com a pena de se lhe tomarem e embargarem, ponderando eles oficiais também já terem feito gastos com as

ditas medidas e não serem sabedores mais cedo da dita proibição, e por virem a esta mesa suplicar que ao menos por esta vez se lhes concedesse licença para as venderem e que nunca mais tornariam em outros anos, por esta vez se lhes concedesse licença para as venderem e que nunca mais tornariam em outros anos a vendê-las, com efeito se lhes concedeu licença por esta vez somente…

[Arquivo Municipal. Ponte de Lima – Livro de actas da Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, Correlhã, Ponte de Lima. 1754-1799], fls. 5v-6. Acta da sessão da Mesa de 25 de Julho de 1758]

ou

D para se comprar 1$000 réis de fitas para medidas de Nossa Senhora (1720/1721)

…………………..

Renderam as fitas que se venderam na igreja 1$900 (1733-1734)

…………………..

Despesa com as fitas para as medidas que se deram na romagem a quem trazia as esmolas e para se venderem mais 6$130 (1749-1750) [Arquivo Municipal. Ponte de Lima – Livro das contas da receita e da despesa da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, 1719 (14 de Julho) – 1750 / 1751, fls. 9-10v; 74-75v; 85-87v]

Espero que o leitor não se fique apenas por este texto, só desejo que as palavras e as imagens o seduzam e queira ir ali à Correlhã pois só assim poderá emergir na real, na extraordinária singularidade de todo este conjunto único, e sobretudo nas emoções que aquele grupo de homens sem par provocam, que metem medo a quem entra.

Homens que gostaria bem de um dia os ver num espaço muito amplo, muito negro, com uma coreografia de luzes sabiamente a eles dirigidas, de forma a ainda mais realçar o bailado de todos os sentimentos que exprimem.

Oxalá um dia o sonho possa ser vida.

Fotografias de Amândio Sousa Vieira