Vacinas do Pensamento
Entrevista a Álvaro Domingues
Importa imaginar para conhecer. Descolar da realidade para a descobrir. Desviar-se do rigor ruminante da “ciência normal” (Thomas S. Kuhn). E namorar a filosofia, as letras, as artes… Resgatar, até, o senso comum. Trata-se de uma opção que tem a virtude de franquear outras janelas para outros mundos, os “mundos da vida”. Sem eclipsar nem o “coeficiente humanístico” (Florian Znaniecki) nem a “dimensão acústica” (Marshall McLuhan) da experiência social. Quantos sociólogos podem rivalizar, por exemplo, com Marcel Proust ou Thomas Mann no retrato da ritualização quotidiana ou com Francisco de Goya na figuração do poder?

Álvaro Domingues assume-o. Instado por Diniz Cayolla Ribeiro a selecionar algumas obras chave para o entendimento da realidade contemporânea, convoca Todos os Nomes (1997), de José Saramago, Os Transparentes (2012), de Ondjaki, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1945), de Orlando Ribeiro, e a poesia de Rui Lage. Dois romancistas, um poeta e um geógrafo, o mais literário e criativo dos cientistas sociais portugueses.
O Álvaro, excelente conversador, é um provocador inspirador e sedutor. Também um excelente parceiro de percurso. Inquieto e atento, mas ancorado num fundo seguro e sereno, lembra um todo-o-terreno com suspensão Rolls-Royce a palpitar paisagens adormecidas. É um explorador, um cúmulo de “serendipidade”, um rastreador de fenómenos “inesperados, anómalos e estratégicos” (Robert K. Merton). Não hesita em tentar os limites! No rio, não bastam as águas pasmadas da pesqueira, deixa-se levar pelas correntes revoltas; na praia, escala falésias escarpadas; e na serra, não há tojal que o demova. Quem não ousar acompanhá-lo, que se entretenha à espera. O Álvaro é assim! Sente-se na sua pele tanto só como acompanhado, tanto a idealizar como a concretizar.
Entretanto, a vida continua e a sabedoria já não é o que era. Desafina, senta-se cada vez menos nos coros e nos cadeirais institucionais. “Pelo sonho é que vamos (…) Chegamos? Não Chegamos? – Partimos. Vamos. Somos” (Sebastião da Gama, Sonho, in Pelo Sonho é que Vamos, 1953).
As novas sereias. Encantos de espantar

Numa atmosfera eivada de exotismo e exuberância, os sentidos almofadados entregam-se ao ecrã das surpresas programadas (Albertino Gonçalves, instalação “cápsulas de emoções”, exposição Vertigens do Barroco, Mosteiro de Tibães, 2007)
Estiveram abertas até ao dia 10 de março as candidaturas para o concurso New York Festivals Advertising Awards, organizado em parceria com a BCW (Burson Cohn & Wolfe, empresa multinacional de relações públicas e comunicação, com sede em Nova York). A “chamada” desafia os candidatos a exibir algo nunca antes visto (“Show Us Something We Haven’t Seen”), capaz de impressionar e contrariar a saturação dos nova-iorquinos e dos profissionais de publicidade. Algo, ao mesmo tempo, espantoso e memorável.


“A New York Festivals (NYF) desenvolve, desde 1957, a nível mundial, uma atividade que convoca o espírito de rutura e de vanguarda caraterístico da cidade (…) A campanha de promoção reúne fotógrafos da cidade de Nova York cujas imagens expressam a vibração urbana de NYC e projetam uma luz reveladora da agitação e da atitude invulgares que alicerçam a excelência criativa em NYC” (Scott Rose, presidente, New York Festivals Competitions).
A campanha de promoção do festival é composta por três posters e um vídeo.
“Como nunca ninguém viu” é o título de um artigo que publiquei em 2011 (in Moisés de Lemos Martins et alii, Imagem e Pensamento, Coimbra, Grácio Ed., pp. 139-165). Corresponde à conferência “A construção do impossível: o espaço nos anúncios publicitários”, apresentada no Congresso Internacional de Ciências da Comunicação, em Braga, em setembro de 2009.
“‘Ver como ninguém viu’, porventura mais do que ver “o nunca visto”, eis a tentação ou, melhor, a proposta que percorre a publicidade atual” (Como nunca ninguém viu, p. 142).
O texto procura argumentar e ilustrar esta intuição. O vídeo “A construção do impossível”, com duração de 20 minutos, acrescenta uma seleção de anúncios ilustrativos. Segue uma primeira versão do texto, não paginada mas com imagens a cores (a versão editada, com imagens a preto e branco, está acessível no seguinte endereço do livro: https://hdl.handle.net/1822/29165), bem como o vídeo complementar. Constam entre os meus trabalhos preferidos, concebidos, aliás, durante um período de deriva da desmotivação da cidade académica para a exploração de trilhos menos consagrados. Menos pontos no currículo e mais realização pessoal. A criação do blogue Tendências do Imaginário, em 2011, constitui um marco e um bom exemplo.
A aposta no assombro, especialmente no nunca visto, cruza-se com duas tendências que atravessam a publicidade. A difícil captação da atenção e influência dos públicos justifica duas rotações: dos produtos para as marcas e do desejo para a adesão. À distinção invejável sobrepõem-se a identificação projetada e a estranheza fácil de entranhar. O foco desliza, assim, por exemplo, do belo e do funcional para o surpreendente e o insólito, que tocam, impregnam e envolvem. Uma espécie de rotinização ou homeopatia do anómalo.
Reencontro biobibliográfico
Albertino Gonçalves

Deparei-me hoje, inesperadamente, online, com o artigo “La emigración portuguesa hacia Francia en la sigunda mitad del siglo XX: breve caracterización”, publicado, em coautoria com José Cunha Machado, na revista Migraciones y Exilios (3-2002, pp. 117-137). Tinha-lhe perdido o rasto, a tal ponto que, aquando do registo no currículo do CIENCIAVITAE, nem sequer lhe soube indicar a paginação. Um lapso obtuso, à luz dos cânones académicos, visto tratar-se de um contributo internacional. Não interessa! Agradeço esta surpresa uma partilha recente do seu tradutor: Benito Bermejo. Tamanha é a satisfação, que entendo partilhar o texto. Um motivo adicional impele. Volvidos vinte anos, retomo o tema da emigração. Na verdade, após um prolongado e quase absoluto retiro, estou a regressar a quase tudo.
Estou a estudar, com o Américo Rodrigues, as migrações em Castro Laboreiro até aos anos trinta do século passado, no âmbito do programa de investigação e intervenção Quem somos os que aqui estamos? Trata-se de uma iniciativa, inaugurada em 2016, associada ao MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, promovido pela AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual e pelo Município de Melgaço. À equipa, composta também por Álvaro Domingues, Daniel Maciel, João Gigante, Carlos Eduardo Viana e Rui Ramos, cumpre dedicar-se, cada biénio, sucessivamente, a um agrupamento de freguesias do concelho. Após Parada do Monte e Cubalhão, primeiro, e Prado e Remoães, em seguida, estamos a concluir a União das Freguesias de Castro Laboreiro e Parada do Monte. De cada “caderno de encargos” constam a publicação de dois livros com imagens e textos, um com fotografias produzidas pela equipa, o outro com fotografias recolhidas junto da população, a promoção de duas exposições e a organização de vários encontros científicos e culturais. Já foram editados os livros Pedra e Pele (2018), Festa (2018), Quem fica (2019) e Uma Paisagem Dita Casa (2022). Um dos livros teima em permanecer no prelo. O mais recente, dedicado à freguesia de Lamas de Mouro, inclui o capítulo “A ave, o casal e a lápide: as esculturas da porta da igreja de São João Baptista de Lamas de Mouro”, uma boa ilustração da forma de investigação e comunicação que tenho vindo a adotar. Permito-me disponibilizá-lo também no Margens.

Albertino Gonçalves
Natural de Melgaço, doutorado em Sociologia, investigador do Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, autor de Imagens e Clivagens: Os residentes face aos emigrantes (1996), Métodos e Técnicas de Investigação Social (1998), A Romaria da Srª da Agonia. Vida e Memória da Cidade de Viana (2000, c. Moisés de Lemos Martins & Helena Pires), As Asas do Diploma: a inserção profissional dos licenciados pela Universidade do Minho (2001), Da Universidade para o Mundo do Trabalho: Desafios para um Diálogo (2001, c. Leandro S. Almeida, Rosa Vasconcelos & Susana Caires), Dar vida às letras: promoção do livro e da leitura (2007, c. Fernanda Leopoldina Viana & Maria de Lourdes Dionísio), Vertigens do Barroco em Jerónimo Baía e na Actualidade (2007, c. Aida Mata, Ângela Ferreira & Luís da Silva Pereira), Perspectivas de Desenvolvimento do Município de Monção (2008, c. José Cunha Machado, Miguel Bandeira & Victor Rodrigues), Vertigens: para uma sociologia da perversidade (2009), A idade de ouro do postal ilustrado em Viana do Castelo (2010), Guimarães 2012: capital europeia da cultura: impactos económicos e sociais: relatório intercalar (2012, c. Rui Vieira de Castro, Fernando Alexandre et alii), Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura: impactos económicos e sociais: relatório final (2013, c. Rui Vieira de Castro, José Cunha Machado et alii).
Atribulações das almas

Ontem e hoje, dias 13 e 14 de janeiro, estive em Castro Laboreiro. Fui apanhar frio! De regresso a Braga, ainda em terras da Galiza, deixei-me dormitar a imaginar que o Jeep, com o ar condicionado ligado, à medida que me afastava da aragem gélida do planalto, me aproximava de um calor muito quente, o bafo das bordas do inferno. Acudiram-me dois artigos que redigi há mais de sete anos, intitulados A Caminho do Inferno e O Último Suspiro. Retomo-os com uma ou outra revisão insignificante.
Filhos de Gutenberg, pensamos, equivocados, que o poder da imagem só se afirmou verdadeiramente com o advento da “idade da reprodutibilidade técnica”. Ainda cismamos, aliás, que o que realmente importa se alinha pelo alfabeto. Neste texto, o protagonismo volta a caber às iluminuras medievais: imagens de almas de defuntos rumo ao inferno, seja durante ou após o momento da morte. Relativamente raras, estas imagens constituem uma chave de acesso ao imaginário do cristianismo, ao nosso próprio imaginário.

Omar Calabrese chama a atenção para a “irrepresentabilidade da morte”, a impossibilidade de “representar precisamente a passagem entre a vida e a morte” (Calabrese, Omar, Como se lê uma obra de arte, 1997, Lisboa, Edições 70, p. 88). Pois, a Idade Média tardia e o início da Modernidade concentraram-se em atos e instantes tais como a visita, o toque ou o beijo da morte ou, aquele que mais foca o presente artigo, o último suspiro, a exalação da alma que se despede do corpo. Não direi última viagem porque existe a crença de as almas poderem não ter repouso e até regressar do além (ver Exorcismos).

Muitas almas não têm salvação. Condenadas, sem indulgência, são esperadas pelos demónios que as transportam para a boca do inferno (figuras 2 a 3). Há, porém, almas cuja salvação ainda não está decidida. São motivo de disputa entre anjos e demónios (figuras 4 a 6). Um reparo: se os anjos e os demónios lutam pelas almas dos moribundos, então a salvação não depende exclusivamente do comportamento neste mundo, da vida terrena, nem está adiada para o Juízo Final. Há margem para resgate durante a passagem, eventualidade que inspira as ars moriendi, livros que ensinam a enfrentar a morte, ou purificação no outro mundo, neste caso são almas polémicas, talhadas para o recém-inventado purgatório, o terceiro lugar do além (Goff, Jacques Le, 1981, La Naissance du Purgatoire, Paris, Gallimard).



As almas são representadas sob a forma de crianças ou, em alguns casos, como miniaturas do morto. Há almas benditas, conduzidas por anjos, num tecido branco, para o céu. Nestes casos, o morto, lendário ou real, pode manter-se apostrofado, identificado, ser alguém até no outro mundo. Na figura 7, o morto é Rolando, pretenso sobrinho do Imperador Carlos Magno, herói do romance La Chanson de Roland. Numa versão do século XII (Pseudo-Turpin), o arcebispo Turpin tem uma visão: o rei Marsiliun é transportado por demónios e a alma de Rolando por anjos (Merwin, W. S., 2001, Song of Roland, New York / Toronto, Modern Library Paperback Edition, p. XIV).

No rolo mortuário da figura 8, a pessoa morta é Lucy, fundadora e primeira prioresa do convento beneditino de Castle Hedingham, em Essex. Na imagem central, Lucy é elevada por dois anjos. Na parte superior, aparecem Cristo e Nossa Senhora com o Menino. O rolo mortuário, mandado fazer pela sucessora, foi enviado a 122 entidades religiosas. A intenção e a mensagem são inequívocas. Há poucos santos na terra, mas, provavelmente, também não abundam no Céu.

Estas representações da passagem para o outro mundo persistem nos séculos seguintes. No Mosteiro de Tibães, em Braga, existe um azulejo com a morte de São Bento. Vê-se o santo morto, de pé, e a ascensão da alma numa espécie de “tapete voador” rodeado por anjos. O tapete é um pormenor que intriga, mas convenha-se que, para subir ao céu, a diferença entre um “lençol” e um “tapete” não é intransponível.


As iluminuras das figuras 9 e das, ambas com monges, são surpreendentes. Os anjos não estão a levar as almas, réplicas dos mortos, para o céu. Estão a restituir as almas ao monge Saint-Pierre de Cologne e ao monge afogado, de Besançon (França), estão a devolver a vida a “não mortos” (Omar Calabrese). Que a “passagem entre a vida e a morte” é reversível sempre o soube a Igreja. As almas do monge Saint-Pierre e do monge afogado não vão para o céu, nem para o inferno, nem para o purgatório. Nem sequer vão, vêm! Transitam em sentido inverso.
São histórias de outras eras. O inferno, entretanto, mudou; outrora, confinava-se ao outro mundo, agora faz parte deste. O inferno está no meio de nós. Quanto aos não mortos e ao trânsito inverso, encontraram guarida nos novas arenas do imaginário: nos filmes, na televisão, nos videojogos e nas redes sociais. O desamparo face à morte, e face à vida para além da morte, não desapareceu.
Nas imagens da morte, os demónios mostram-se sôfregos e irrequietos. É plausível que a maioria das almas se destine ao inferno. Mas o diabo é insaciável. Os demónios não param de disputar almas, de as transportar e de as infernizar. Andam atarefados numa azáfama interminável. As imagens do inferno condizem: uma turbulência tórrida em que as almas sofrem e os demónios trabalham. Os infernos de Herrad von Landsberg e do Missal de Raoul du Fou propiciam um bom exemplo: os diabos torturam, carregam, empurram, grelham, fritam, cozem e comem as almas danadas.

As representações do Juízo final encenam o paraíso, o purgatório e o inferno. Por exemplo, Juízo Final de Jan Van Eick (c. 1430-1440; figura 13), Giotto (1306), de Jan Van Eick (c. 1430–1440; figura 14)) e da Catedral Vank (séc. XVII; figura 15) evidenciam o que sabemos desde a catequese. O céu, em cima, o inferno, em baixo; o purgatório à direita de Cristo, o inferno à esquerda; o céu com cores claras, o inferno com cores carregadas com predomínio do vermelho… E, sobretudo, no inferno, um movimento vertiginoso; no céu, ordem, repetição, placidez. Ao inferno, coube-lhe o mesmo que a Adão e Eva, o trabalho; ao paraíso, “o descanso eterno”! Se existe pecado mortal que os demónios não cometem é o da preguiça. O inferno assemelha-se a um formigueiro inflamado e acelerado.



O Taymouth Hours é um livro de horas datado de 1325-40. Retenho algumas iluminuras alusivas às atividades dos demónios . Não existissem autênticas bandas desenhadas no século IX, nomeadamente com episódios da Bíblia, diria que o Taymouth Hours antecipa o género. Dedicados e despachados, os demónios carregam os condenados para a boca do inferno. No interior, o ambiente é febril. As tarefas nunca acabam. Acumulam-se. Uma vez terminados, os suplícios têm que ser recomeçados. A never ending pain!
Segue uma galeria com gravuras recortadas das margens do livro de Horas de Taymouth. Depositado na British Library (Yates Thompson MS 13), pode ser integralmente visualizado no seguinte endereço: https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=yates_thompson_ms_13_fs001r
Galeria com gravuras das margens do livro de Horas de Taymouth. 1325-1335. British Library. Yates Thompson MS 13.

























Mais para entretenimento próprio do que para proveito alheio, montei um pequeno vídeo em que estas gravuras do livro de Horas de Taymouth são acompanhadas por um excerto do álbum Heaven and Hell, do Vangelis. Segue o resultado.
Tesouros visuais. O livro de salmos de Luttrell

Margens conhecerá momentos mais ou menos curtos de hibernação ou pousio. É uma tentação recheá-los ou entrecortá-los com apontamentos singelos, em jeito de entremez ou corta-sabores, mais apostados nas imagens, dignas de ser vistas, do que nas palavras, breves e leves. Pingos esporádicos entre artigos de autor.
Prestam-se a este desígnio algumas compilações de iluminuras que, para aproveitamento ou por horror do vazio, preenchem as margens e os espaços entre parágrafos dos livros de oração medievais. Algo difíceis de encontrar, proporcionam uma surpresa fabulosa.

Saltério de Luttrel, Inglaterra ca. 1325-1340. British Library, Add 42130, fol. 153r.jpg British Library copyright
O livro de salmos de Luttrel, um dos livros de oração mais antigos e célebres, guardado na British Library (Add. MS 42130), é composto por 309 páginas (350 x 245mm) em pergaminho, ilustradas por uma sequência apreciável de imagens sagradas, monstros híbridos e cenas da vida quotidiana. Criado provavelmente entre 1325 e 1335 na diocese de Lincoln por encomenda de Sir Geoffrey Luttrell (1276 –1345), de Irnham, o texto foi escrito por um copista e as iluminuras foram desenhadas por pelo menos cinco artistas diferentes.
Procedemos, morosa e pacientemente, à montagem, em forma de caderno, de trinta páginas do saltério de Luttrell. O resultado espelha-se na apresentação de diapositivos (PowerPoint) disponibilizada para descarga a que acresce uma galeria de imagens com atividades da vida quotidiana. É um gosto partilhá-las. É possível o acesso à digitalização integral do saltério de Luttrell no seguinte endereço da British Library: https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=add_ms_42130_fs001ar

Para download (13,6 MB) do referido caderno (apresentação com imagens e música) de 30 páginas do livro de salmos de Luttrel, carregar na imagem precedente ou no seguinte link (a apresentação está programada, com sincronização com o som, deixe correr as imagens sem fazer cliques):




















Os bons nómadas
Esser Jorge Silva
Dos nómadas fica-nos o romantismo de Bruce Chatwin (1940-1989). Repete-se aqui a história que, de tantas vezes escrita e rescrita, fixou a lenda do antigo porteiro da leiloeira Sotheby’s transformado primeiro em especialista do impressionismo, seguindo-se o cargo de diretor da referida leiloeira. Anos depois de abandonar um curso de arqueologia e de se dedicar à narrativa numa coluna sobre arte no Sunday Times, Chatwin desapareceu deixando na sua secretária uma célebre nota: “fui para a Patagónia”. Na verdade cumpria um dos seus desejos muito íntimos na descoberta de locais de tal modo possuídos pelo desinteresse ao ponto de apenas fugitivos, foragidos, apátridas, ladrões e assassinos por lá se acercarem. Além de tentar saber sobre brontossauros, almejava uma vida longe numa casa “baixa, feita de troncos com um telhado também de madeira e bem calafetada contra as tempestades; lenha a arder na lareira, as paredes cobertas com os melhores livros, um lugar onde viver quando o resto do mundo fosse pelos ares” naqueles dias em que se instalara uma dita guerra fria.


Figura 1 – Na Patagónia de Bruce Chatwin e Patagónia Express de Luís Sepúlveda onde o chileno relata o encontro com o inglês.
Por ali andou anotando conversas, olhares, paisagens, flores, fauna, flora, lendas e histórias com sucessivas personagens que se revezavam em entradas de cena provindas de recantos cheios de non sense, como se fossem produto de mágicas saídas de onde a imaginação não alcança. Anotava as andanças nuns pequenos caderninhos pretos muito jeitosos, de capa dura e tamanho gracioso, até se cruzar certa noite com uma outra alma perdida na inquietude, um ex-segurança ali exilado, que no dia 11 de setembro de 1973 se havia salvo à vigésima quinta hora do Palácio La Moneda, em Santiago, no exato momento em que as balas perfuravam o corpo do seu presidente Salvador Allende. Nos caderninhos pretos, o “inglês nómada porque não podia ser outra coisa”, colhia dados para o seu futuro memorável “In Patagónia” (1977, editado em Portugal pela Quetzal Editores). Enquanto isso, Luís Sepúlveda (1949-2020), o “chileno exilado porque não podia deixar de ser outra coisa”, entrava no nono ano vagamundeando entre o Rio Negro e Ushuaia à espera de autorização para entrar na Alemanha. Destas deambulações nasceria “Patagónia Express” (1995, editado em Portugal pela Porto Editora) cujo primeiro capítulo “apontamentos de uma viagem a lado nenhum” revela, sem despudor, o aqui e agora depositário do espírito nómada.
Chatwin anda por ali subindo e descendo as Terras de Fogo carregado de Moleskines, esses caderninhos pretos cujos utilizadores passados, desde Van Gogh, Celine, Picasso ou Hemingway, parecem tê-los certificado de altar de sabedoria. Ao oferecer alguns a Sepúlveda recomendou-lhe a numeração das páginas e a indicação de uma recompensa e um endereço para contacto em caso de perda. E o chileno, um marxista com todo o tempo livre nos intervalos da procura da cabana de Butch Cassidy e Sundance Kid, dois famosos assaltantes de bancos que por ali se deixaram morrer, decidiu rezar em escrita a façanha fetichista dos possuidores de um Moleskine fazendo destes caderninhos outrora raros e maravilhosos, não um objeto auxiliar de produção cultural, mas uma artefacto cultivado com o adubo do capital, vendido a preço mais caro do que qualquer produto literário ou artístico que ali se possa meter.
O nomadismo, seja a promessa dos Moleskines ou o sentido do destino pária de Sepúlveda ou a errância de Chatwin, estava dominado pela viagem e pela descoberta, ainda que esta saísse do ângulo mais obtuso de um olhar. Ao nómada interessava pouco ou nada o destino. Deslocava-se para captar e desaparecer levando consigo o sentido, os sons, as cores, os hábitos, a diferença, as particularidades, as contradições, as idiossincrasias, deixando de si uma leve brisa de esquecimento. Em “The Songline” (1987, editado em Portugal com o título “Cântico Nómada” pela Quetzal Editores), Chatwin é arrastado para uma introspeção quase sagrada. Na imensa planície australiana, deixa-se envolver pelos sons aborígenes locais para questionar até que ponto a linguagem não começou pela necessidade poética do canto para marcar o espaço e afugentar os predadores. É uma hipótese. A dúvida abraça o nómada, mesmo quando o seu espírito é convocado. No póstumo “What Am I Doing Here” (1989, coleção de textos publicados em Portugal com o “O que faço eu aqui” pela Quetzal Editores) o nómada desespera com a incompreensível falta de sentido da sua passagem pela geografia. A pergunta é a mais sincera cedência do nómada à ausência de objetivo no seu errar acidental por trilhos desconhecidos a caminho de nenhures, talvez a ilha da utopia.
Por oposição ao que atualmente é apresentado do nomadismo, Sepúlveda e Chatwin eram nómadas analógicos. Os novos nómadas são “digitais”. Não levam a capa dura do Moleskine, nem precisam de numerar páginas ou oferecer recompensas pela perda das notas do campo. Os nómadas digitais são muito concretos na crença de que tudo fica na cloud, esse infinito e invisível depósito de tudo que apesar de voar acima das consciências se afirma o mais seguro dos armazéns. Rezam as notícias que há agora uma caneta com Moleskine a propósito, capaz de digitalizar os rabiscos do nómada. A smart pen é um desses utensílios que realiza o milagre da transformação do “nómada analógico” em “nómada digital”.

Contrariamente aos nómadas analógicos, os nómadas digitais não existem para perpetuar memórias, captar sentidos do lugar, compreender especificidades da geografia, entender personagens. Destinam-se a registos digitais, ato que não acolhe a poesia do lugar que os alberga. Não vão atrás da mágica humana na realização do filme da existência. Pelo contrário, procuram a fórmula algorítmica que embebeda a mente humana. A fantasia imaginária, matéria prima dos andarilhos, dá lugar a um certo fantástico virtual da realidade de sofá.
Enquanto os nómadas analógicos passavam despercebidos, os nómadas digitais são disputados pelos Estados como uma nova mercadoria. Diria Karl Marx que há fetichismo aqui. Verdadeiros nómadas tinham valor intrínseco, autoral e com autoridade inscrita nos seus corpos. Nómadas digitais são reconhecidos por um tipo de valor externo e subordinado ao valor de troca do seu produto que lhes escapa para uma qualquer multinacional. São uma forma fácil de registar exportações de serviços e fazer entrar capitais. Por todo o mundo se produz legislação para acolher os novos nómadas. Já não é nómada quem quer ser mas quem o Estado determina. Como é fácil de perceber, não há delicadeza nem afeição nas leis que recebem o nómada digital. Nesta contradição nómada, o original que voava livre sobre a realidade, caminha agora cauteloso sob regras, leis e diretivas.

Os velhos nómadas eram-no e ponto final. Nem eles sabiam que o queriam ser. No final da jornada podiam assim ser categorizados, não por estatuto mas por falta dele. Os novos nómadas só o podem ser com autorização. Almeja-se dos nómadas digitais que gostem muito da terra, apreciem o sol e a praia, os baixos preços dos restaurantes e os bons profissionais de limpezas sempre prontos a limpar o pó e a arrumar a casa. A grande esperança passa por se transformar os nómadas digitais em normais habitantes digitais e assim, de uma assentada, melhorar a estatística e a literacia digital do país. A diferença é que tanto Sepúlveda como Chatwin perceberam o nomadismo como “Anatomy of Restlessness” (1997, editado em Portugal com o título “Anatomia da Errância” pela Quetzal Editores). A inquietação não só dominava todos os sentidos do nómada analógico como convocava o seu espírito de partida permanente. A utopia de aportar num melhor lugar desfiava o devir e convocava a errância. Mas os nómadas digitais não podem perceber a errância porque, como diria Simmel, estão mais próximos da forma do mercador do que da forma do viandante.

Esser Jorge Silva, doutorado em Estudos de Comunicação, Professor Adjunto no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (IPCA), é autor de Histórias de Guimarães (1999), O Que Fica no Coração (Org. 2012), Teleférico da Penha – Imaginário e Tealidade / Biografia do primeiro teleférico construído em Portugal (2014), Tempo Livre Guimarães / 20 anos – História de uma Estratégia Municipal para o Desporto (2019) e Nascimento da Unidade Vimaranense (2021).
Comentários Recentes