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CiNEMAS

Foi recentemente lançada pela AO NORTE a CiNEMAS, uma revista eletrónica dedicada à reflexão crítica em torno do cinema, da escola e do cineclubismo. Com tiragem semestral, e acompanhando as atividades da Associação AO NORTE. CiNEMAS tem a direção de Daniel Maciel e, na Comissão Editorial, contou com a colaboração de Gláucia Davino e Teresa Norton Dias.

Do editorial deste primeiro número, respigamos um excerto:

“(…) É neste espírito de aprendência que lançámos a publicação que se segue, produzida a partir de contribuições de gente que de alguma forma se vai cruzando com a AO NORTE e nos presenteia com reflexões, questões, projectos, e experiências várias. A edição 1 da CINEMAS condensa assim uma multiplicidade de perspectivas, tonalidades de análise e temas, texturas sensoriais, abrindo-nos a curiosidade em várias frentes e motivando-nos para o movimento de aprendência que provocou a organização dos Encontros de Cinema de Viana, das várias actividades da AO NORTE e dos cineclubes em geral, assim como o lançamento desta mesma publicação. Permitamo-nos este acto existencial, talvez egoísta, mas não sendo por isso menos edificante, de procurarmos o questionamento que alimenta esta aprendizagem activa”.

https://www.ao-norte.com/cinemas.php

A PEDRA-MÃE DO CONVENTO DE MAFRA E DE JOSÉ SARAMAGO E AS COLUNAS DA IGREJA DO SANTUÁRIO DO BOM JESUS DO MONTE

2. AS DIFICULDADES SENTIDAS PARA AS LEVANTAR

Vimos já no jornal do mês passado as desventuras porque passaram os mesários da Irmandade do Bom Jesus do Monte para que a sua igreja fosse a mais bela, a mais digna de ser notada entre as muitas igrejas belas da cidade de Braga.

Vimos as dificuldades que os caminheiros tiveram para trazer as colunas da fachada de uma distância que não ia além de uns dois, no máximo três quilómetros.

Sentimos o cheiro intenso do suor de homens e bois, a chiadeira das rodas dos carros queixando-se do peso excessivo das pedras.

Soubemos da admiração da cidade, estivemos também na berma do caminho a incentivar bois e homens, a dar-lhes malgas de vinho e cuias de água.

Mas…

Mas o problema não estava totalmente resolvido: as colunas não serviriam de nada estendidas no chão! O templo não ficaria completo se as não tivesse!

Havia então que resolver o problema. Que fazer?

Teria sido mais simples se os mestres de pedraria tivessem estado em Lisboa no momento em que foi içada a estátua equestre do rei D. José, se conhecessem as máquinas e apetrechos que foram utilizados.

Claro que o problema não era o mesmo; mas não deixava de haver algum paralelismo.

Que fazer? Como é que haveriam de ser içadas?

Acredito bem que os mesários e o mestre responsável dormiram mal durante alguns dias. Até porque não queriam cortar as colunas.

Essa seria a situação mais fácil, mas era de todo descabida. Então para que é que tinha havido tão ingente esforço para as trazer inteiras?

Claro está que também não as queriam ver furadas, também não fazia sentido…

Depois de muito matutar, depois da mesa da irmandade ter ficado em grande consternação, pois se tinha cansado em procurar dos professores de arquitectura, curiosos, e mestres pedreiros, conduzindo estes ao Santuário, o mestre responsável pelos trabalhos, António José Lopes, descobriu a almejada forma para as colocar no sítio em que todos as queriam ver.

Deveria ser feita uma espécie de prisão de madeira

que prendesse a coluna no meio, toda chapeada, e com quatro argolões nos quatro lados, e nas costas da mesma se devia furar para meter uma torno de ferro que a não deixasse correr acima, e para não correr a dita imprensa pela face da coluna, devia atar-se uma cadeira pela cinta e viesse prender a outro torno de ferro que devia estar quase no fim das costas da mesma, e para maior segurança e prumo, devia levar na cabeça um ferro da grossura de um braço, que se enterrasse pela mesma três palmos abaixo, cujo segurasse pelas costas dela outro torno, e deste ferro devia pender o melhor calabre, e melhor roda, e dos quatro argolões outros quatro calabres e quatro rodas ou sarilhos que deviam puxar com igualdade,

A mesa da irmandade aceitou de imediato

a dita ideia e mandou se aprontasse tudo o necessário debaixo da inspecção do dito mestre.

No dia 2 de Julho tentou-se levantar a primeira. E, sorte dos deuses [ou do Bom Jesus do Monte], a coluna foi levantada!

A segunda foi içada passados dois dias. E fez-se então um pequeno espaço de espera, talvez para reflectir e reforçar os cabos que tinham sido utilizados.

E então no dia 9, como que mostrando que o problema até nem era assim tão difícil, levantaram as outras duas! O génio do homem tinha mais uma vez vencido.

O templo do Bom Jesus do Monte poderia ufanar-se de ter umas colunas tão possantes e tão belas!

A pedra onde foram arrancadas não teria razão para se lamentar – se o pudesse fazer – porque as suas “filhas” estavam ali a receber a admiração de todos!

Deixemos aqui, de novo, as descrições que retiramos do livro das actas. Lembramos só que é o mesmo volume que já demos a conhecer no texto anterior, nos fólios imediatamente sequentes

Termo em que se faz menção do ajuste das quatro colunas e paga dele por se acharem já as ditas colunas no santuário juntas a obra, e resolução que houve para se fazerem os aprestes para se levantarem e se mandou pagar ao mestre pedreiro o cabo que se lhe consumiu, na primeira condução das colunas …

Mais se propôs era necessário fazerem-se alguns aprestes para o levantamento das colunas, bem assim eram um calabre bem grosso, e seguro, para poder sustentar o excessivo peso das referidas colunas, e também uma roda, e varas, e como estava presente o nosso mestre da obra, e disse que na Páscoa, ou antes dela pretendia se levantassem as ditas colunas; por essa razão se deu faculdade aos nossos companheiros… para que cuide nos ditos aprestes com toda a segurança e equidade. Foi mais proposto pelo dito mestre pedreiro que se lhe consumira um cabo na condução da primeira coluna, e que valia 6$500 réis, e ponderado por esta mesa o dito prejuízo convieram em que se lhe pagasse…

e

Também foi proposto que o nosso mestre da obra António José Lopes tinha achado uma ideia ou modo para se prenderem e segurarem as colunas perpendicularmente quando se levantassem que por estarem já lavradas e se lhe não deixarem uns morros ou cabeças que sustentassem as cadeias e calabres para se subirem tinha posto esta mesa em grande consternação, pois se tinha cansado em procurar dos professores de arquitectura, curiosos, e mestres pedreiros, conduzindo estes ao Santuário, alguma ideia, que não (à margem: fosse a de serem furadas) pela fronteira se com efeito depois de um devoto e curioso ter feito um modelo em pau dando algumas ideias de prisão, que se não acharam suficientes pelo enorme peso delas, ultimamente disse o nosso mestre se devia fazer uma imprensa de pau que prendesse a coluna no meio, toda chapeada, e com quatro argolões nos quatro lados, e nas costas da mesma se devia furar para meter uma torno de ferro que a não deixasse correr acima, e para não correr a dita imprensa pela face da coluna, devia atar-se uma cadeira pela cinta e viesse prender a outro torno de ferro que devia estar quase no fim das costas da mesma, e para maior segurança e prumo, devia levar na cabeça um ferro da grossura de um braço, que se enterrasse pela mesma três palmos abaixo, cujo cadilhace (sic) pelas costas dela outro torno, e deste ferro devia pender o melhor calabre, e melhor roda, e dos quatro argolões outros quatro calabres e quatro rodas ou sarilhos que deviam puxar com igualdade, e logo esta mesa abraçou a dita ideia e mandou se aprontasse tudo o necessário debaixo da inspecção do dito mestre,…

E, finalmente,

… aí se lembrou que como se tinham levantado as colunas pelo modo supra, a primeira no dia 2 do corrente mês e a segunda no dia 4 do dito, e a terceira e quarta coluna foram levantadas ambas em um dia que foram 9 do corrente mês de Julho, e atendendo esta mesa ao excessivo trabalho que teve o nosso mestre pedreiro em cogitar os meios, e ideia, e engenho para elas se levantarem, a felicidade que houve que causou admiração a todo o povo que se juntou, pois não sucedeu a oficial algum o menor perigo, e por isso houve um alvoroço, e alegria, e grande contentamento em todo o povo, e em atenção ferido a respeito do dito mestre pedreiro, e pequeno salário que se lhe dá se mandaram dar de alvíssaras 6$400 réis, que se lhe levarão em conta ao nosso tesoureiro … nas que der por assim se vencer nesta Mesa.

Não me acredito que José Saramago tenha, alguma vez, conhecido estes textos. Mas também me não custa muito a crer que haja outros semelhantes quer na Biblioteca de Mafra, quer em outro qualquer arquivo público.

O “Memorial do Convento” não é só um romance fabuloso pelo excepcional poder de enfabulação do seu autor. É, também, uma das obras mais admiráveis pela verdade histórica que encerra.

Tenho a certeza que José Saramago fez um trabalho de pesquisa muito profundo porque os seus ambientes não são falsos no que respeita á História. Claro que são recriações de situações possíveis; mas estas recriações só foram feitas após muitas e muitas horas de leitura, de cansar os olhos em livros e livros sobre D. João V, sobre o século XVIII português, sobre o Homem barroco. Seria bem interessante que ele nos dissesse um dia não só quais foram as suas fontes de inspiração mas, também, quais foram as suas fontes de informação.

E o leitor gostou daqueles velhos textos? Ou achou que foi História a mais? Quererá dar-nos o prazer de nos comunicar a sua opinião? Muito obrigado.

Eduardo Pires de Oliveira

09/10/1787

Mais se mandou fazer menção neste livro de que já se achava junto a obra do novo templo a arquitrave ou padieira que se há de sustentar nas duas colunas que estão dos lados entre a porta do templo em que leva a descrição, cuja padieira saiu do mesmo penedo, que deu as quatro colunas, a que vulgarmente chamavam o Penedo Negro, sito na Chã de Felgueiras, freguesia de S. Bento de Donim, e tem de comprido vinte e dois palmos, e quatro de largo, e foi conduzido no mesmo carro das colunas, e levou dois dias a dita condução, que foram os dias 2 e 3 de Agosto deste presente ano

Arq. Bom Jesus Monte. 3º Livro dos Termos e acórdãos. 1786-1809, fol. 20-20v

A PEDRA-MÃE DO CONVENTO DE MAFRA E DE JOSÉ SARAMAGO E AS COLUNAS DA IGREJA DO SANTUÁRIO DO BOM JESUS DO MONTE

1. AS DIFICULDADES DO TRANSPORTE

Aprendi muito novo uma velha máxima latina: a de que nada há de novo neste mundo (nihil est novi sub terrae).

Nunca me preocupei em confirmar este aforismo. Mas um dia, já lá vão quase duas décadas, ao ler o maravilhoso livro que é o “Memorial do Convento” do nosso Prémio Nobel, José Saramago, pensei que haveria alguma coisa nova neste mundo, criada pelo génio literário deste nosso escritor.

Refiro-me à prodigiosa descrição que ele faz da vinda da Pedra-Mãe, desde as profundezas da pedreira onde foi extraída, a quilómetros do local onde o convento estava a ser levantado, até ao local para onde era destinada.

Fiquei de tal maneira encantado com estas palavras que tive o cuidado, de imediato de as reler, antes de avançar na leitura do romance; e, de vez em quando, não resisto e volto a procurá-las.

Perdoem-me todos os amantes desta obra prima absoluta que é o “Memorial do Convento”, perdoem-me os amantes dessa força mágica de mulher que é a Blimunda, mas as páginas que mais me encantaram foram aquelas em que homens e bois arrostaram com força a natureza para transformar um belo e monstruoso pedaço de pedra no pormenor fundamental dessa obra prima da nossa arte joanina que é o convento de Mafra.

Não exagero ao dizer que não foram só os homens que conduziam o imenso carro e que não foram só os bois que o puxavam que suaram de tanto esforço.

As palavras de Saramago são de tal forma contagiantes que, quando dei conta de mim, estava a meter a mão ao bolso à procura de um lenço para limpar a testa; e, passados mais alguns minutos, sei que fui ao frigorífico buscar uma cerveja, que a minha garganta também estava muito seca!

Sempre me questionei, portanto, se, acaso, esta descrição não seria uma coisa nova, em absoluto. Se assim fosse o velho aforismo cairia, embora em glória.

Há alguns anos, no decurso desta investigação e deste prazer desmedido que é o de querer conhecer tudo sobre a velha Braga barroca, tive oportunidade de publicar a tese de mestrado de uma “velha” Amiga, uma “minhota” de Minas Gerais, Mónica Massaro.

[Digo “minhota” porque ela é de Minas e nunca em local algum me sinto tanto em casa como lá: são as velhas casas, é o sacromonte de Congonhas, é a talha das suas igrejas, a utilização da couve-galega… tudo me faz lembrar este velho Minho].

 E encontrei então uma descrição interessantíssima sobre um problema grave que afectava os mesários da Irmandade do Bom Jesus do Monte, aqui junto a esta cidade de Braga. É que o projecto que o engenheiro Carlos Amarante concebera para a nova igreja incluía quatro colunas de dimensões colossais.

A resolução deste problema não era nada simples. Até porque se não restringia a uma só questão. Eram antes três, cada qual o mais complicado:

  • onde encontrar uma pedra de qualidade com tal dimensão;
  • como seria possível trazer da pedreira até à igreja as quatro colunas colossais;
  • e como, por fim, seria possível colocá-las no local para onde estavam destinadas.

Depois de longos trabalhos e pesquisas, depois de terem sido percorridos todas os campos e montes das redondezas, de terem sido inquiridos todos os mestres pedreiros e curiosos das aldeias vizinhas, apareceu, finalmente, a almejada pedra. A Mesa da Irmandade do Bom Jesus do Monte exultou tanto com a novidade que, para nossa sorte, teve o cuidado de expressar a sua satisfação, por mais do que uma vez, no livro de actas que então estava em uso. Eis as palavras que nos legaram:

Termo de Mesa pelo qual consta aparecera um penedo, que pela sua grandeza, e comprimento dava as quatro colunas do frontispício da nova igreja e se tinham já cortado duas, e se fizera um carro para as conduzir, e se pusera o dia 21 do corrente para a dita condução

Aos 21 dias do mês de Agosto de mil setecentos e oitenta e seis anos… foi proposto, que como se tinha procurado um penedo que houvesse de dar as quatro colunas para o frontispício da nova Igreja, que pela sua grandeza, era dificultoso o achar-se, pois se tinha assentado uniformemente deviam ser inteiras, para maior formosura, e grandeza da mesma obra, cujas colunas, segundo a arte, deviam ter cada uma vinte e cinco palmos de comprido, e largura proporcionada à mesma altura e comprimento; com efeito, depois de uma esquisita diligência, e trabalho, apareceu um penedo no monte chamado, a Chã de Felgueiras (à margem: vulgo o Penedo Negro), na freguesia de S. Bento de Donim, do qual penedo se tem já separado duas famosas pedras, que tem vinte e oito ou trinta palmos de comprido, e em quadro por cada lado quatro palmos; e como para a referida grandeza e monstro de pedra era necessário carro proporcionado, e igualmente seguro, se tinha mandado já fazer; e para a condução das ditas colunas, prometeu por seu zelo e devoção o Rev. Bernardo Francisco de Sá, vigário da igreja de S. Vítor desta cidade, aprontar todas as juntas de bois necessárias e o mais que lhe inspirar o seu zelo e devoção; e se tem assentado ser a condução de uma das referidas colunas no dia 21 do corrente mês; e por este termo se dá faculdade ao nosso tesoureiro para concorrer com o necessário para o jantar dos condutores…

Nos fólios seguintes, e dois dias mais tarde, foram acrescentadas mais estas palavras:

Aos 23 dias do mês de Agosto de mil setecentos e oitenta e seis anos… se ponderou o sucesso que tinha acontecido na condução da primeira coluna, porque foram vinte e duas juntas de bois, e todos os aprestes necessários de manufacturas de carpintaria, pedraria e lavoura; porém, como a pedra é de uma grandeza tão extraordinária que se assenta tem para cima de 120 quintais de peso e finalmente causou suma admiração e pasmo a todas as pessoas que concorreram desta cidade e aldeias vizinhas, e ainda aquelas, que têm visto na capital do reino as maiores obras, e pelo sumo peso e grandeza, se não pôde conduzir mais que em até a entrada da freguesia de Sobreposta, e por causa de se enterrara as rodas do carro não pôde continuar mais, e novamente querendo esta mesa dar novas providências para a referida condução, por consultas de inteligentes pessoas, uniforme se assentou se fizesse uma máquina, que um devoto queria fazer e experimentar, e tendo efeito se continuasse a condução da referida coluna com a brevidade possível, e havendo bom sucesso, logo se continuasse a quebrar as outras duas que faltavam, para se aprontarem enquanto os caminhos estavam secos.

E ainda estas:

Aos 15 dias do mês de Janeiro de mil setecentos e oitenta e sete anos… foi proposto… sobre a condução das colunas do novo templo pelas justas causas que nele se ponderaram se fizera com efeito o dito ajuste com António José da Silva morador na rua do Souto desta cidade, e José de Barros carpinteiro da freguesia de S. Pedro d’Este e por convenção que entre estes houve, veio a ficar tão somente o dito António José da Silva com a dita obrigação in solidum, cujo ajuste se fez pela quantia de 382$000 réis, de que se lavrou assinado, que fica na secretaria, e por se achar satisfeita a dita condução, e estar paga por nosso irmão tesoureiro …  como se mostra das pagas copiadas, digo lançadas no mesmo assinado pelo dito… se determinou e resolveu, se lhe houvesse por abonada, e levasse em conta a dita parcela por se ter tudo feito e tratado pelas resoluções desta mesa, tendo-se experimentado, e sendo pública a toda esta cidade a grande utilidade que houve naquele ajuste.

Para o leitor não pensar que esta descrição também é da minha imaginação – e bem gostaria eu de ter tal capacidade – aqui lhe deixo a indicação do local e do livro onde se guardam estas preciosas palavras: Arquivo da Irmandade do Bom Jesus Monte, Livro dos Termos e Acórdãos (1786-1809), fólios 3v-4v e 4v-5v.

Já vai longo este texto. Tenho que me ficar por aqui. Prometo que para o próximo jornal continuarei. Dar-lhe-ei então a conhecer as dificuldades que houve em colocar as colunas na fachada da igreja.

Obrigado pela sua paciência. E obrigado a si, José Saramago, por me ter sugerido este texto.

Eduardo Pires de Oliveira

Curso – Recuperação do Mosteiro de Tibães: A Preservação. A Salvaguarda. A Proteção. A Revitalização

Informações:
Local: Sala das Cavalariças do Mosteiro de Tibães.
Datas: 4 e 18 de março das 10.00 às 18.00 horas.
Número de participantes: máximo 30.
Preço do almoço na Hospedaria do Mosteiro: 20€
Organização: Associação Grupo de Amigos do Mosteiro de Tibães

Palmira

Diana Gonçalves

SINOPSIS CORTA
La vida que transcurre lentamente, repetitiva. Un cuerpo cansado pero a la vez resistente. Y del otro lado de la cámara, la tentativa de encontrar ese instante fugaz que nos revele algo más de la vida. De la observación a la construcción con el propio personaje. Palmira es el retrato de varios encuentros y testigo del proceso y evolución de ese retrato.

SINOPSIS
Palmira, conocida por la mayoría como la abuela de Galicia, fue una de las protagonistas de mi primer documental, Mulleres da Raia. La búsqueda en ese momento era otra, pero desde el día que la vi a través de la ventana, sentí la necesidad de volver para filmarla.
Y así lo hice. Un año después encontré el motivo y el espacio para hacerlo. Palmira es el resultado de 5 años de encuentros promovidos por el laboratorio de creación “El retrato filmado” (Play-doc, Festival Internacional de Documentales de Tui), que dio origen a varios retratos filmados en diferentes momentos y editado en una única pieza años después.
Palmira es el encuentro entre una mujer centenaria y una aprendiz documentalista que a lo largo de los años y durante unos días se reencuentran para construir su retrato. ¿Pero cuál? ¿El de Palmira o el de la documentalista? Sin quererlo inicialmente, ambos.
La vida que transcurre lentamente, repetitiva. Un cuerpo cansado pero a la vez resistente. Y del otro lado de la cámara, la tentativa de encontrar ese instante fugaz que nos revele algo más de la vida. De la observación a la construcción con el propio personaje.
Palmira es el retrato de varios encuentros y testigo del proceso y evolución de ese retrato.

Palmira. Realização: Diana Gonçalves. Espanha. 2017

BIOFILMOGRAFÍA
DIANA GONÇALVES (1986)
Nace en Tui en 1986. Licenciada en Comunicación Audiovisual por la Universidade de Vigo (2008). Máster en Comunicación e Industrias Creativas por la Universidade de Santiago de Compostela (2013).

En 2009 produce y realiza su primer documental cinematográfico Mulleres da Raia, que ha recibido varios premios en diversos festivales nacionales e internacionales. En 2010 da sus primeros pasos en la realización televisiva colaborando con la productora Pórtico Audiovisuales en el programa Ben Falado para Televisión de Galicia.

Paralelamente, en el campo de la producción, colaboró con la Agencia Gallega de las Industrias Culturales (AGADIC) en el diseño y organización de varios encuentros del programa CREATIVA, promoviendo el intercambio cultural multidisciplinar entre España y Portugal.
Su trayectoria como productora continuó en el estudio de post-producción sonora cinematográfica Cinemar Films con presencia en mercados internacionales.
En 2010, coordinó la retrospectiva documental “Carlos Velo: Mirar al margen”, siendo programadora de Filminho (Festival de Cine Gallego y Portugués). Asimismo, promovió y desarrolló varios workshops itinerantes en varios centros escolares de Galicia y Norte de Portugal.
Entre 2009 y 2013, fue miembro del laboratorio documental “El Retrato Filmado”, dirigido por Marta Andreu. Más tarde recupera el material y la pieza resultante, Palmira, es su segundo trabajo documental.
Actualmente, combina su faceta de documentalista con su actividad en el mundo de la empresa centrada en el marketing y la comunicación corporativa.

Para mais informação, aconselha-se a consulta da seguinte brochura (5 páginas).

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Albertino Gonçalves

A meus avós galegos Pura e Avelino

“E retratos, retratos espetaculares (…) Rembrandt não compreendia apenas os seus ricos clientes e a imagem que pretendiam projetar de si mesmos, ele também foi um manipulador virtuoso da pintura. Ninguém enxergou melhor a topografia das pálpebras da meia-idade, a oleosidade de um próspero nariz, a lacrimosa membrana vítrea dos olhos, a reluzente tensão de uma testa puxada para trás numa touca de linho. Observe o retrato de uma mulher com 83 anos na Galeria Nacional de Londres. Observe o tecido translúcido da touca alada, as bordas pintadas com uma única pincelada. Observe as suas sobrancelhas e as pálpebras caídas, feitas com pinceladas picantes, a melancolia levemente desfocada, o temperamento de vulnerabilidade pungente, o conjunto a suavizar a face de uma velha raposa, com a certeza ansiosa de que não demorará muito a encontrar o grande contador do céu. Não é, portanto, apenas um pintor, mas um psicólogo da condição humana, não concorda? Em que consiste a obra dos outros grandes vultos, Velásquez, Rubens, Van Dyck? Pintar máscaras, o olhar estudado de princesas e papas. Conhecem de antemão, muito bem, a máscara do dia: decisão marcial, preocupação majestosa, melancolia pensativa. Mas Rembrandt vê por detrás da pose e é isso que contribui para que os seus retratos nos toquem como os de mais ninguém. Podemos ver as pessoas a exibir as suas faces ao mundo. Mas isso não as diminui, antes lhes acrescenta simpatia” (Simon Schama. Rembrandt. Power of Art 3/8. BBC. 2006).

As sequências do filme Palmira, de Diana Gonçalves, recordam-me os retratos de Rembrandt. Entranham-se para além da aparência sem desnudar ou vulgarizar a pessoa.

 Palmira convida-nos a acompanhar o quotidiano de uma persona mayor solitária no entardecer da vida. Sem sombra de intrusão ou indiscrição, respira cumplicidade, humildade e respeito. Como quem bate a uma porta aberta. Entra-se, sem máscaras nem tipificações, surpreendendo a naturalidade do banal. Com empatia. Cada sequência oferece-se como uma janela, mas em sentido contrário do habitual: de fora para dentro, do exterior para o interior, com o devido resguardo e recato. Colhidas anos a fio com extremo cuidado, com uma câmara que sente mais do que regista, estas imagens dedicadas à intimidade de uma mulher centenária resultam raras, muito raras. E preciosas. Este filme de Diana Gonçalves é uma dádiva antropológica, uma aproximação ao humano que teima a escapar ao nosso olhar normal: o demasiado humano.

Reencontro biobibliográfico

Albertino Gonçalves

Quem fica. Fotografia de João Gigante. 2019

Deparei-me hoje, inesperadamente, online, com o artigo “La emigración portuguesa hacia Francia en la sigunda mitad del siglo XX: breve caracterización”, publicado, em coautoria com José Cunha Machado, na revista Migraciones y Exilios (3-2002, pp. 117-137). Tinha-lhe perdido o rasto, a tal ponto que, aquando do registo no currículo do CIENCIAVITAE, nem sequer lhe soube indicar a paginação. Um lapso obtuso, à luz dos cânones académicos, visto tratar-se de um contributo internacional. Não interessa! Agradeço esta surpresa uma partilha recente do seu tradutor: Benito Bermejo. Tamanha é a satisfação, que entendo partilhar o texto. Um motivo adicional impele. Volvidos vinte anos, retomo o tema da emigração. Na verdade, após um prolongado e quase absoluto retiro, estou a regressar a quase tudo.

Estou a estudar, com o Américo Rodrigues, as migrações em Castro Laboreiro até aos anos trinta do século passado, no âmbito do programa de investigação e intervenção Quem somos os que aqui estamos? Trata-se de uma iniciativa, inaugurada em 2016, associada ao MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, promovido pela AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual e pelo Município de Melgaço. À equipa, composta também por Álvaro Domingues, Daniel Maciel, João Gigante, Carlos Eduardo Viana e Rui Ramos, cumpre dedicar-se, cada biénio, sucessivamente, a um agrupamento de freguesias do concelho. Após Parada do Monte e Cubalhão, primeiro, e Prado e Remoães, em seguida, estamos a concluir a União das Freguesias de Castro Laboreiro e Parada do Monte. De cada “caderno de encargos” constam a publicação de dois livros com imagens e textos, um com fotografias produzidas pela equipa, o outro com fotografias recolhidas junto da população, a promoção de duas exposições e a organização de vários encontros científicos e culturais. Já foram editados os livros Pedra e Pele (2018), Festa (2018), Quem fica (2019) e Uma Paisagem Dita Casa (2022). Um dos livros teima em permanecer no prelo. O mais recente, dedicado à freguesia de Lamas de Mouro, inclui o capítulo “A ave, o casal e a lápide: as esculturas da porta da igreja de São João Baptista de Lamas de Mouro”, uma boa ilustração da forma de investigação e comunicação que tenho vindo a adotar. Permito-me disponibilizá-lo também no Margens.

Salto. Fotografia de João Gigante. 2016

Albertino Gonçalves

Natural de Melgaço, doutorado em Sociologia, investigador do Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, autor de Imagens e Clivagens: Os residentes face aos emigrantes (1996), Métodos e Técnicas de Investigação Social (1998), A Romaria da Srª da Agonia. Vida e Memória da Cidade de Viana (2000, c. Moisés de Lemos Martins & Helena Pires), As Asas do Diploma: a inserção profissional dos licenciados pela Universidade do Minho (2001), Da Universidade para o Mundo do Trabalho: Desafios para um Diálogo (2001, c. Leandro S. Almeida, Rosa Vasconcelos & Susana Caires), Dar vida às letras: promoção do livro e da leitura (2007, c. Fernanda Leopoldina Viana & Maria de Lourdes Dionísio), Vertigens do Barroco em Jerónimo Baía e na Actualidade (2007, c. Aida Mata, Ângela Ferreira & Luís da Silva Pereira), Perspectivas de Desenvolvimento do Município de Monção (2008, c. José Cunha Machado, Miguel Bandeira & Victor Rodrigues), Vertigens: para uma sociologia da perversidade (2009), A idade de ouro do postal ilustrado em Viana do Castelo (2010), Guimarães 2012: capital europeia da cultura: impactos económicos e sociais: relatório intercalar (2012, c. Rui Vieira de Castro, Fernando Alexandre et alii), Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura: impactos económicos e sociais: relatório final (2013, c. Rui Vieira de Castro, José Cunha Machado et alii).

Vestir os nus em vésperas do carnaval

No próximo dia 18, sábado, às 17 horas, apresento a conferência “Vestir os Nus. Censura e Destruição da Arte”, no auditório do museu arqueológico D. Diogo de Sousa, em Braga. Seguir-se-á, às 18 horas, noutra sala, com direito a bebida quente, uma mesa redonda sobre a censura na atualidade, com participação de vários amigos. Junto, como convite., o cartaz. Vai ser um encontro agradável e, estou em crer, compensador. Venha! E traga outro amigo, também.

Um Passeio pelas margens da memória

Teresa Lima

A porta abre e fecha; separa. A ponte liga; une. A ponte e a porta unem e separam. A janela também intercala mundos, mas o movimento propende a operar-se num único sentido, de dentro para fora. O olhar capta o exterior. A partir destas metáforas, Georg Simmel escreveu um dos textos mais curtos e brilhantes da Sociologia (“Brücke und Tür”, Der Tag. Moderne illustrierte Zeitung, n° 683, 15.09.1909, p. 1-3). Pela janela, o sujeito costuma ainda penetrar no mundo sem nele intervir.

Espécie de moldura para um retrato realista, a janela de Alberti não deixa de assentar num ponto de vista, de configurar, precisamente, uma perspetiva. Olhar pela janela é um ato relativo carregado de subjetividade. Acresce que a janela pode funcionar como espelho, em particular quando a luz, o foco, incide sobre o observador. Reflexiva, a prospeção reverte, agora, para mundos interiores, eventualmente, para a introspeção. Nada impede o recurso a várias janelas propiciador de uma visão múltipla, “poligonal” (José Saramago). Somando estes traços, resulta tentador convocar as figuras do flâneur e da deambulação, ao sabor de uma morna lenta e caprichosa, porventura melancólica, filtrada por “janelas portáteis”.

Este breve apontamento inspira-se no artigo “Um Passeio pelas margens da memória”, de Teresa Lima, que, de janela em janela, convoca, em diálogo íntimo, memórias, obras e autores. Passeia-se não pelas ruas de Paris mas pelos atalhos da vida nos interstícios da alma. Um tango dialógico de excursões e incursões entrelaçadas. Afins, o blogue Margens e a Passeio, Plataforma de Arte e Cultura Urbana, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, são água da mesma fonte. O presente texto de Teresa Lima inaugura a expressão desta parceria. (Albertino Gonçalves)

A minha estreia na Passeio, plataforma de arte e cultura urbana do CECS/UMinho, deu-se com um texto sobre a infância, intitulado Subúrbio na cidade.

Não é que tenha sido intencional, mas pensando retrospetivamente, penso que não poderia haver entrada mais fiel ao espírito da deambulação, que se pretende imprimir a este projeto.

Para mim, como para Miguelim, cada partida é o reconhecimento de que o lugar da infância só é verdadeiramente bonito quando o perspetivamos à distância. Aviso, desde já, que Guimarães Rosa será, nas próximas linhas, uma referência próxima do obsessivo. Depois de ter lido Grande Sertão Veredas (um vaguear filosófico pelo sertão pessoal e físico), tive receio de nunca conseguir ler mais nenhum livro, por indiferença a tudo que não fosse aquela oralidade cheia de subtilezas. O vaguear reflexivo que aqui pretendo calcorrear começa num ponto de tensão entre o aconchego de um lugar familiar, o desejo de sair e o susto provocado por geografias estranhas. Vou apoiada por companheiros de viagem.

Logo de rajada, surgem-me em catadupa imagens e referências: a rua da meninice, que ainda hoje hesito em pisar, as cidades que nos fustigam com os seus excessos, o anonimato urbano que nos faz respirar, o cheiro reconfortante de uma esquina conhecida e a vida. A minha e a dos outros com quem me tenho cruzado. De modo que tenho uma vaga ideia, mas não sei ao certo onde este percurso sem destino pré-definido – para um blogue sobre cultura, arte e imaginário – me poderá levar. O sentido de orientação nunca foi o meu forte, por isso, embalada pelo contexto das margens, confio na intuição como uma boa bússola para percorrer os caminhos da memória.

Peço licença para introduzir o conceito de biografia, a pessoa humana nos lajedos que trilha. Porque somos, antes de tudo, um corpo, que (se correr como o esperado) se desenvolve embalado por outros corpos, que são faróis no caminho. Falando nisto, adoro o romantismo dos faróis no meio da escuridão. Como gosto de barcos à deriva. O cheiro a óleo dos barcos, as amarras que se libertam no cais e a paisagem ao longe, fazendo-nos duvidar se é a vida que caminha por si só, como num travelling infinito, se somos nós que caminhamos por ela. E água que lava tudo. Sozinha, em Braga, há três décadas, deixei-me interpelar pelo granito das ruas, mudos edifícios que me olhavam sem delicadeza. Voltava sempre para o horizonte marítimo, ao fim-de-semana, como que para um balão de oxigénio.

Em Braga, havia uma janela na qual me debruçava (qual varandim de um barco) para observar o movimento da vizinhança. Sei, hoje, que a janela é uma justa metáfora da forma como encaramos a vida. Uma moldura concetual, um filtro. Porque a verdade (ao contrário do que cheguei a acreditar) nunca é um destapar do pano. “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os factos”. (“O Espelho”, Primeiras Estórias). Como numa janela, observo as interseções dos lugares, não esperando nada, que é a mais completa forma de comprometimento e intervenção. Uno a ideia da janela a Manoel de Oliveira. Apreender uma vida através dos documentos produzidos no decurso de uma atividade, isto é, dar sentido a essa organicidade documental, é iniciar uma jornada a que nunca se encontra o fim, não há nada de universal e exato numa vida. Como num passeio, experienciei, neste projeto, o medo de encarar o desconhecido, a responsabilidade de calcorrear os caminhos corretos, a necessidade de despir todos os contextos, todas as ideias pré-concebidas, para aceitar o que o percurso nos propõe. A partir daqui, sou encaminhada, como num navio à deriva, para o filme Je rentre à la maison/Vou para casa.

O imprescindível turbilhão do exterior, que nos empurra, cedo ou tarde, para um regresso ao quente do útero. Que é uma casa onde não precisamos de fabricar nada, nem observar, quase nem respirar. É possível que vivamos em espiral e não em linha reta. O útero é como que uma caverna onde recarregamos baterias. Mas o redemoinho experimentado por um mergulho no mar, onde por momentos perdemos a noção espacial ou temporal, é, para mim, mais do que um desejo, uma inevitabilidade.

Assim sendo, sigo viagem e confesso-me numa encruzilhada. Mas é necessário ler as indecisões dos caminhos, “o diabo no meio do remoinho”. Miguelim adulto é Miguel em “O Buriti”, só percebi isso numa terceira leitura recente. De modo que Miguel, depois de viajado, procura um lugar-casa, que é o corpo de uma mulher que conhece superficialmente e por quem se apaixonou. É, também, um regresso ao útero, mas renovado. Não para morrer já, como com Michel Picolli, em Je Rentre à la Maison, mas para renascer. Uma espécie de olhar ao espelho ou a chegada de alguém que esperávamos, sem o sabermos conscientemente. Neste emaranhado paisagístico em forma de texto, olho as notas que tirei previamente. Escolho, para este pedaço de caminho, Guinga e a canção Meu Pai. Porque nos fala da infância, do que se espera que as ruas do subúrbio carioca respondam, perante a busca incessante de um autor pelo seu pai. Um cruzamento entre uma história de vida pessoal e um espaço público comum, carregado de memórias e desejos individuais. Voltamos à ideia do espelho, que é, claro está, um nunca completo processo identitário.

Por fim e ainda, uma outra janela. Neste caso, um outro filme, do realizador Edgar Pêra. A Janela (Marialva Mix) pode ser um olhar acelerado sobre o quotidiano de um típico bairro lisboeta. Ou uma espera numa janela, onde tudo passa e nunca se sabe bem se o que vemos a acontecer é resultado da nossa cabeça ou a realidade. Seja lá o que isso for. Uma vez mais, público e privado, particular e universal. Caminhos múltiplos, verdades e inverdades, espelhos que são o que queremos ver, sintonias e aversões. Prossigamos o Passeio.

Teresa Lima

Bolseira de investigação na Passeio- plataforma de arte e cultura urbana, é doutoranda de Ciências de Comunicação na UMinho, com uma tese que relaciona a biografia e a comunicação, a partir da história de vida do realizador Edgar Pêra. Com um percurso profissional que começou no jornalismo, enveredou, mais tarde, pelas Ciências da Informação, tendo participado no tratamento do arquivo Manoel de Oliveira, atualmente depositado na Casa do Cinema, na Fundação de Serralves.

A simulação da moral (do blogue Tendências do Imaginário)

Albertino Gonçalves

Giovanni Buonconsiglio. Aristóteles e Fílis. Circa 1500-1515.

«Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube» (Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, 1523).

Manifestam-se cada vez mais frequentes os anúncios que aderem ao formato patente no anúncio russo Born Inclusive, da Naked Heart Foundation. Creio que se inspiram, por um lado, na sofisticação (quase) laboratorial da psicologia experimental e, por outro, na vulgaridade mediática dos “apanhados”. Não duvido que sejam eficientes e convincentes, mas comportam uma característica que me provoca algum ceticismo e renitência. Encenam situações ideais que tendem a afastar o ruído ambiente, as intromissões, eventualmente imprevisíveis, dos efeitos “parasitas”, por outras palavas, da contingência das variáveis e dos fatores que os sábios apelidam “espúrios”. Arrefecem a efervescência da vida, propendem a pintar o mundo a preto e branco: o certo e o errado, o bom e o mau… Uma simplificação sedutora. Convoco a máxima do sofista Protágoras, “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”, e o pensamento de Pascal, a medida do homem é turbulenta, incerta e infinita. Lutar por um mundo melhor não significa caricatura-lo e descolori-lo. A redução maniqueísta e monocromática não me parece uma perspetiva apropriada, não é uma promessa auspiciosa.

Demasiado cínico? Estou em crer que mais vale cínico do que estúpido. “O indivíduo estúpido é o tipo de indivíduo mais perigoso”; “o indivíduo estúpido é mais perigoso do que o bandido; ” “É estúpido aquele que desencadeia um prejuízo para outro indivíduo ou para um grupo de outros indivíduos, embora não tire ele mesmo nenhum benefício e eventualmente até inflija prejuízo a si próprio” (Carlo Cipolla, Allegro ma non tropo, 1988).

Anunciante: Naked Heart Foundation. Título: Born Inclusive. Agência: Marvelous. Direção: Maksim Kolyshev. Rússia, março 2020.

Este comentário é, de algum modo, injusto para com o anúncio de sensibilização Born Inclusive, da Naked Heart Foundation. Trata-se de um exemplar de marketing e publicidade e como tal deve ser avaliado. Carece ser encarado à luz da linguagem do marketing e da publicidade e não de outra linguagem, por exemplo, a linguagem externa da filosofia e da sociologia. Neste sentido, este comentário apresenta-se como uma crítica “bárbara”, uma violência simbólica, na aceção de Pierre Bourdieu. Cai na falácia de impor um sistema de relevâncias, estranho, a outro sistema de relevâncias, original, francamente distinto. Do ponto de vista do marketing e da publicidade, este anúncio, criativo, consistente, pedagógico e eficaz, resulta excelente. Acerta no alvo: a predisposição para a discriminação não nasce connosco, é fruto da socialização primária, da endoculturação. Um pressuposto que vai de encontro a Rousseau (“A natureza faz o homem feliz e bom, mas (…) a sociedade degenera-o e o torna-o miserável”: Dialogues, 1772-1776) e a Durkheim (“A sociedade encontra-se portanto, a cada nova geração, na presença de uma tábua quase rasa sobre a qual é necessário construir a novo custo”: Éducation et sociologie, 1922).

Hieronymus Bosch. Removing the Stone of Stupidity. Detail. 1475-1480.

Acontece que um anúncio, para além de orbitar na esfera do marketing e da publicidade, não deixa de ser um fenómeno social. É composto por raízes (contexto), caule (suportes), ramos (redes e canais), folhas (ações) e sementes (efeitos) sociais. Não se pode escusar a uma leitura filosófica e sociológica, por mais corrosiva e cínica que seja. No que me respeita, não me inibo de ler nas entrelinhas de quaisquer modalidades de comunicação, principalmente aquelas que se são grávidas de consequências, quando não de efeitos perversos subliminares que não passam pelo crivo da consciência e do raciocínio avisados e oportunos.

André Soares. Tantas perguntas sem resposta!

Eduardo Pires de Oliveira

Sente-se o perpassar de várias tendências artísticas, um diálogo contínuo de pedras, madeiras e ouro, estuques e espaços.
Não admira o espanto dos visitantes. Nada nele é estranho, é natural. As pedras e as madeiras são como os homens, têm vida, sofrem alterações, vão-se adaptando ao momento que estão a viver.
As peças, os riscos, os ornatos não têm uma função, o criador é livre de os usar conforme o momento ou o espaço em que se encontrar
A obra de André Soares “viveu” múltiplos momentos, sempre diferentes, sempre ao correr do acaso, sempre com imensa sabedoria.

Da mesma forma que durante o colóquio Barroco e a Modernidade, em que um dia falando na sala contígua aquela onde está a obra mais espectacular de André Soares, a capela dos Monges, em que nessa sala deixamos fluir o pensamento, em que as palavras surgiram ao acaso, umas vindas da memória, sobretudo do que conheço da arte do grande Mestre, e outras das peças que existem naquele espaço, também aqui, neste texto, as ideias correrão de forma livre, embora mantendo sempre como referência a figura e a obra de André Soares.

Por essa razão, será profundamente coloquial, não terá notas de rodapé. Mas será, claro, devedor aos vários estudos que Robert Smith e eu próprio já lhe dedicamos.

Comecemos, então.

Aos poucos vai-se conhecendo melhor a personalidade artística de André Soares. E o que não é menos importante, aos poucos vai-se também caracterizando o meio em que viveu, a cidade de Braga e a região do Minho. Falta ainda um estudo sobre a personalidade artística do homem que foi mais importante na sua carreira, o arcebispo D. José de Bragança e, o que não é menos importante, falta saber que obras de arte é que existiam nas casas das famílias nobres existentes na cidade e na região. Só tendo uma ampla perspectiva da vida do arcebispo e de como funcionava a nobreza bracarense se poderá conhecer com a devida extensão este homem, o criador, André Soares. É que não me parece que o povo de então possa entrar neste ambiente, embora a ele tivesse acesso, mas apenas como usufrutuário, nos templos, ao ver os retábulos e todo um enorme conjunto de obras de arte que eram utilizadas no culto.

01 Assinatura de André Soares

Como é que seria fisicamente André Soares? Um homem alto? Ou seria baixo? Alto, entenda-se, para o que era corrente na época em que o homem tinha, seguramente, uma estatura mais baixa que o actual, entre 1,70 e 1,75 metros.

De que cor é que seriam os seus olhos? E como é que se vestia, ele que chegou a aceitar como pagamento uns tecidos. Será que esta indicação nos permite pensar que seria vaidoso? A verdade é que poderia ser porque do pouco que se conhece ele não precisou de trabalhar para viver. Exemplo:  depois de perder uma imensidão enorme de dinheiro num empréstimo que fez em 1758 aos Jesuítas – que no ano seguinte foram expulsos do país, o que inviabilizou o pagamento desse empréstimo – teve capacidade para continuar a adquirir terras para juntar ao vínculo da irmã, Apolónia.

Mas seria vaidoso? E se, acaso, gostava de roupas será que também quereria vê-las adornadas com algumas joias? Sabemos que havia pelo menos um tipo de tecido, o crepe, de que deveria gostar, pois o último pagamento que recebeu em vida foi precisamente neste tecido, não quis aceitar um pagamento de 13$800 réis, antes preferiu que lhe fossem dados trinta covados de crepe e forro que se lhe deu em agradecimento da factura do dito risco por não querer levar por elle dinheiro! E seria um tecido feito em Guimarães? (É que este pagamento foi feito por uma confraria daquela cidade, a dos Santos Passos, pelo projecto de arquitectura da sua nova igreja dos Santos Passos, precisamente a última obra de André). Ou seria um tecido estrangeiro? É provável.

02 Igreja dos Santos Passos, Guimarães

E o que é que comeria? O minhoto não tinha por costume comer peixe, e o bracarense não deveria ser diferente embora existisse em Braga um Mercado de Peixe desde o século XVI, num mercado coberto que estava situado dentro de muralhas – na hoje praça Velha – e que, dois séculos mais tarde, foi mudado para fora de portas, para o actual campo das Hortas. Essa mudança deu origem a uma das maiores, senão a maior, insurreições levada a cabo por mulheres na Braga do século XVIII.

Sim, comeria carne, muita carne como se usava, quem tinha dinheiro para a comprar, claro. E a verdade é que conhecemos um outro pagamento, este em presuntos, nada menos que seis de uma vez só, que lhe foram mandados entregar pelos beneditinos de Tibães em agradecimento pelos riscos que fez para toda a talha que para lá desenhou em 1756, e que foi um mar de retábulos, sanefas grandes e pequenas, molduras de janelas e de janelões e púlpitos. Seis presuntos que valiam 4$800 réis, ou seja, o equivalente a 20 dias de trabalho de um mestre pedreiro da maior qualidade. E pena é que os restantes 22$400 réis que lhe foram pagos pelos beneditinos tenham sido descritos apenas como “mimos”, que hoje não possamos saber o que eram, pois sendo “mimos” seriam coisas que ele gostaria, de certeza. E isso permitir-nos-ia, talvez, conhecê-lo um pouco melhor. E porque é que tendo a família dinheiro bastante viveram numa casa bastante pequena?

03 Casa de André Soares R Visconde Pindela

Estas são algumas das muitas perguntas que gostaríamos de fazer a uma pessoa que tivesse vivido naquela época. Mas Braga só teve um memorialista de relevo, Inácio José Peixoto, que nas suas memórias particulares deixou escritas sobre André apenas estas palavras, palavras maravilhosas:

Na Arquitectura e Desenho depois de Andre Soares, ficou com os maiores creditos Carlos Jose Amarante… (PEIXOTO, Inácio José – Memórias particulares de… Braga: Arquivo Distrital de Braga, 1992, pág. 80).

São palavras que sendo magníficas para se compreender a sua capacidade criadora nada nos dizem sobre a sua vida. Sobre o Homem.

Mas talvez nos digam algo se a elas associarmos a belíssima, fantástica, cartela, a que deixou no Mappa de Braga Primas, de 1755 (?), que depois de passar para a mão dos seus herdeiros acabou em Lisboa, na Biblioteca da Ajuda, onde todos a podemos ver. Se nos fixarmos bem a olhá-la, se nos conseguirmos prender totalmente nela, nos seus arabescos, naquela imensa colecção de ornatos em sucessão, se nos abstrairmos de tudo que não sejam aqueles traços, conseguiremos ver um homem sereno, perdido, pois a mão que tem o “lápis” deixou de ser dele, pertence ao desenho que vai correndo pelo papel, vai deixando novelos e mais novelos.

O seu espírito voou de uma forma que embora muitas outras vezes mais tivesse desenhado e redesenhado outros novelos, só mais uma vez voltou a atingir aquela plenitude, no momento em que teve que desenhar a sua obra-prima, tanto de arquitectura como da arte do retábulo, a capela dos Monges, seguramente o seu testamento artístico, ou não tivesse sido concebida no penúltimo ano da sua vida, mas talvez ainda antes de ele saber que pouco mais tempo iria andar por cá.

06. Capela dos Monges

O lanternim é uma peça excepcional que mede peças a Borromini, Guarino Guarini, Bernini… a todos, mesmo numa listagem sem fim de arquitectos!

07 Lanternim. 08 Guarino Guarini, Bernini, Borromini e André Soares

Aquele retábulo da capela dos Monges é de uma arte fantástica, uma linha que também é curva e contracurva e que para ter mais relevo é, desde o arranque até mais de meio, feito com uma “linha dupla”, e que depois, na parte superior, continuará a ser curva e contracurva, mas agora em ângulo recto, quase parecendo um raio a descer dos céus em dia de tremenda trovoada, um desenho que poucos anos antes, do início dessa mesma década de 1760, usara ali a poucos metros, na fachada da igreja, dos Congregados, claro.

09 Retábulo da capela dos Monges

E esta vontade de repetir, seja na mesma peça, seja quando vai integrar outros desenhos, deixa-nos perplexos, ficamos a perguntar porque é que ele se repete. É que, por exemplo, o enrolamento que se vê no arranque deste retábulo do espaço mais íntimo dos oratorianos, esta capela dos “Monges” (“Monges” porque os oratorianos eram padres, não eram monges, com aspas, portanto) já se vira na sua primeira obra, também ao nível do chão, precisamente na porta do palácio que desenhara para o arcebispo D. José de Bragança; e também naquela imensa “pata”, que é o que parecem as bases das colunas que sustentam aquela selva de ornatos – ou de líquenes? ou de algas? – que é a Casa de Fresco, hoje no parque do santuário do Bom Jesus do Monte. Que, se virmos bem, também tem início em um enrolamento.

10 Enrolamento no arranque do retábulo da capela dos Monges

E que continua em muitos outros lado, sendo que um deles pode estar disfarçado de ornato, na parte inferior, quase rente ao chão – claro! – na parte central da mesa de altar do imenso retábulo de Nossa Senhora do Rosário, em Viana do Castelo, na igreja do convento de S. Domingos. E que terminará neste pequeno retábulo desta capela dos Monges. De 1744 (?) a 1768, do palácio arcebispal a esta capela maravilhosa vão 24 anos, vai a vida de André Soares. E sempre este enrolamento serviu de início, de ponto de partida para uma obra maior.

Vinte e quatro anos em que André se desdobrará, em que ele dirá sim a todos os pedidos que lhe foram aparecendo, fossem obras que teriam que forçosamente ter um desenho simples, como é o caso do conjunto de talha que desenhou para a capela de S. Miguel-o-Anjo, uma das capelas mais simbólicas da cidade, porque era nela que os arcebispos despiam a roupa de viagem que traziam desde Lisboa e mudavam para os trajes mais ricos e cerimoniais. É que logo de seguida, daí a meia dúzia de metros, iriam pegar nas chaves de prata que numa bandeja do mesmo material a vereação da Câmara Municipal lhe entregaria antes de penetrar a Porta Nova, e entrar na sua cidade, na cidade de que eram Senhores: temporais e religiosos.

Apesar desta tremenda importância simbólica, a talha que foi desenhada para esta capela só pôde ser executada seis anos depois daqueles dias em que entregara os seus projectos aos responsáveis da confraria e que, mesmo sendo assim, mesmo tendo havido esta espera que poderemos considerar longa, teve de ser uma obra simples, que custou apenas 203$000 réis, o que parece ser muito dinheiro mas não é porque a obra é extensa, é o retábulo-mor, dois laterais, dois púlpitos, várias sanefas e duas portas, que tudo seria entalhado por um dos dois maiores entalhadores de Braga, Jacinto da Silva.

11 Mosteiro de Tibães

O que é notável é que exactamente naquele mesmo ano de 1756 André Soares tenha aceite desenhar um conjunto tão completo como é o “mar de talha” rococó que é a igreja do mosteiro de Tibães, em que os monges deveriam querer uma obra muito complexa, extremamente complexa, tanto que o valor da empreitada atingiu mais de seis contos de réis, talvez o maior valor alguma vez contratado em uma só empreitada de talha, em Portugal. E também é notável que nesse mesmo ano tenha aceite conceber uma obra tão simples como o foi a talha desta capela de São Miguel-o-Anjo. Duas obras tão contraditórias!!! Poderei enganar-me, mas fico a pensar que o que André queria era que lhe propusessem lugares onde pudesse aplicar a vontade que deveria ter em deixar correr o “lápis” sobre o papel, desenhar obras… e obras, e mais obras…

Essa é, talvez, a razão para a existência de obras que por vezes podem parecer muito díspares, como é o caso das janelas que desenhou em 1755 para a esquina do convento dos Congregados, entre o antigo campo de Santa Ana e a cangosta da Palha. Aquele cunhal, com seis janelas diferentes, quase parece um catálogo, quase parece que se estava a divertir enquanto imaginava novos desenhos para novas janelas. Em nenhum outro local da cidade, em nenhum tempo da História de Braga, vemos uma diversão como esta, em arquitectura, nem mesmo no cunhal da igreja de Santa Cruz.

12 Convento dos Congregados

E esta questão remete-nos de novo para qual seria a capacidade quer da cidade, quer dos seus criadores, entenderem obras deste calibre. Janelas que se destacam pelo volume das suas molduras, volto a dizer sem par na cidade, protegidas que estão por um “mar” de linhas na cornija, 25, algo que também não teve paralelo na cidade e no país.

13 Cornija da esquina do convento dos Congregados

[Curiosamente 25 linhas numa cornija, mais ainda que as que Francesco Borromini, o mago das linhas onduladas e desmultiplicadas e das cornijas, alguma vez usou!!!]

“Mar”, palavra que já utilizo pela segunda vez, a primeira a propósito da imensidão da sua talha na igreja de Tibães, agora aqui nos Congregados, –  onde obrigou os pedreiros a trabalhar a pedra com a mesma fluidez–, no topo do edifício, a caminho do céu…

“Mar” que é sinónimo de abundância, de volume. Volume que foi uma realidade na sua arte, uma constante. E que deveria deixá-lo muito, muito tenso.

Explico: um psicólogo que olhe a sua arte verá que tanto quanto o apego a ornatos vegetais ou a linhas curvas, o que há em André Soares é uma eterna tensão entre fortes volumes e uma imensa fluidez, entre o gosto do tardobarroco e o do rococó, dois estilos que embora se sucedam nada têm a ver entre si, quase apetece dizer que um, o barroco, são os blocos de rijo granito com que foram construídos os edifícios e o outro, o rococó, o ar e o céu em dia claro e com fragância de primavera que envolve esses mesmos edifícios… Se olharmos o retábulo da capela dos “Monges” veremos que ele é fluidez na maneira como a linha (várias vezes dupla) corre, seja a ondulante, em SSS, seja a recta, em contracurvas, linha que que corre com fluidez pela imensidão de espaços abertos, vazados – o que também pode ser entendido como um artifício porque sendo aquele espaço muitíssimo curto, os vazados permitem prolongar o ponto de fuga, fazer parecer que o espaço é um pouco maior.

14 Retábulo da capela dos Monges. Pormenores

Mas porque são vazados permitem-nos, também, sentir com mais força os volumes que tem, como igualmente sugerem as linhas ondulantes. Vazados que estão um pouco por todo o lado, em áreas umas vezes relativamente grandes e que outras vezes não são mais do que pequeníssimos pontos.

E semi-vazados, como que pequenas “grutas”, madeira que é fendida, com “buracos” profundos que, contudo, não a trespassam em toda a sua espessura, como aquela imensa “flor” que se projecta na extremidade do ático sobre o espaço da nave, com uma dimensão monumental, ou no motivo mais leve, mais discreto, na zona central, logo acima da mesa de altar, logo abaixo da abertura do camarim.

Ou mini-vazados, como são os “amendoins”, para utilizar aqui uma palavra que foi cara a Robert Smith e por ele inventada para o estudo da talha de André Soares, André Soares que sendo, tendo, sem dúvida, existido, não seria conhecido se não fosse aquele professor americano lhe ter dado visibilidade. “Amendoins”, pequenas marcas cavadas na madeira do retábulo e que têm uma função em tudo semelhante ao estofado da escultura, faz-nos parecer que a obra tem mais volume!

As contradições foram uma constante em André. A maior foi a dos gostos que imprimiu às duas maiores disciplinas a que se dedicou, a arquitectura e a talha. Como já afirmei noutros textos, depois de uma obra em que o barroco joanino está muito presente, precisamente a primeira, o palácio do arcebispo, logo embarca no delírio da linha, primeiro a do ornato, depois a linha curva.

15 Casa da Câmara

A partir de 1753 prescinde, na arquitectura, do ornato, risca a Casa da Câmara de Braga, quase parecendo que queria fazer uma catarse, esquecer a peça, a Casa de Fresco, que no ano anterior desenhara para os jardins do palácio do seu arcebispo.

16 Casa de Fresco

Depois, continuará com a linha curva, mas por razões que desconhecemos irá colocar em cada uma das suas obras um arremedo de um ornato assimétrico, sendo a peça mais interessante a belíssima fonte que está no adro do Bom Jesus do Monte, logo acima da entrada do elevador, o ornato está a envolver o pequeno bico por onde corre a água, ornato que tem um desenho muito… fluido. É leve o desenho desta fonte, cheia de vazados, que lhe dão uma leveza que contraria o material em que foi feito, o rijo granito, desenho que, se reflectirmos um pouco, veremos que vai preparar o que década e meia mais tarde seria utilizado no retábulo da capela dos Monges.

17 Fonte no Bom Jesus do Monte

Na talha estaria mais próximo dos gostos do rococó. Mais do que a forma, é a enorme profusão de ornatos que se torna notada. Do mesmo jeito que há a parábola sobre o menino contar as areias do mar, pode dizer-se o mesmo sobre a extrema dificuldade em saber quantos foram os ornatos que André utilizou na talha da igreja de Tibães ou no altar de Nossa Senhora do Rosário, em Viana do Castelo, tal a profusão com que “enxameiam” aqueles retábulos, sanefas e molduras. Ornatos que se “colam” a uma arquitectura poderosa, que a transformam, quase diria que a transgridem ao querer escondê-la.

18 Retábulo de Nª Sª do Rosário. Igreja do Convento de S. Domingos

E esse é outro cuidado que terá de estar bem presente sempre que quisermos olhar, entender as obras de André Soares: não havia limites no que fazia, não havia limites nos sentidos que os ornatos, que cada coisa poderia ter. Esse o maior dom dos grandes criadores, para eles não há limites, o que aqui se usou com um sentido, ali pode ter uma função diferente. A realidade não existe, não há uma forma definida, há o momento, o acaso do momento.

Mas estes acasos não impedem, naturalmente, que existam tendências. Uma, por exemplo, é a do desenho que dá aos elementos vegetais, entendendo-se aqui como elementos vegetais os caules e as flores, porque em outros momentos, sobretudo em meados da década de 1750, desenhou muitos ornatos que semelham algas. A partir de 1763, sobretudo a partir do retábulo da capela da Senhora da Agonia, André desenhou flores que deixaram de ser abertas, espessas, volumosas; são antes caules leves, torsos, que parecem velhos, corolas abertas com pétalas deitadas. Será que pressentia que o seu fim não andava longe?

19 Retábulo da Igreja de Nª Sª da Agonia

Podemos escrever palavras como as que vão acima, dizer que praticou um determinado tipo de desenho. Mas mais do que tudo o que nos deve interessar é o tentar perceber o que é que levou André Soares a fazer esse desenho. O mais importante quando se estuda um artista é precisamente isso, perceber o porquê de cada gesto, aqui porque é que desenhou flores, porque é que as flores tinham este desenho e não aquele, porque…

E em André Soares tudo tem um início. Ele não teve uma formação escolar, não frequentou uma escola de arquitectura ou de engenharia, ou de design para se abalançar na arte do retábulo. A sua escola, acredito, foi, tão só, uma curiosidade imensa, foi o ver o que tinha sido feito noutros locais e, depois, reinterpretar. Vejam-se os grandes C que percorrem a sua talha, seja na forma apenas de C, seja em C + C, um colado ao outro, um com o desenho normal, outro com desenho inverso. E com este duplo C, um normal em cima de outro inverso, encontramos outra forma igualmente bela, um S, forma que tem um sentido barroco ainda mais latente, o que em André Soares talvez não tenha sido fruto do acaso.

É um C que pode ser usado como elemento decorativo ou que, associado, pode servir para moldar as paredes laterais de sacrários, como, por exemplo – e mais uma vez – o da capela dos Monges. Mas também são C e S que, por vezes, têm a parte terminal florida pelo que não sabemos se começou aí o seu gosto por flores. C com pontas floridas, uma ideia que vem de pinturas tardo-maneiristas, já de inícios do século XVIII, seja como as que ainda hoje se veem no belo tecto da nave da igreja da Misericórdia de Viana do Castelo, seja no que existiu na capela de S. Geraldo, na Sé de Braga, que os Monumentos Nacionais fizeram desaparecer na campanha de restituição da “pureza” românica da Sé de Braga, porque o antigo, o medieval, lhes merecia mais respeito que o barroco!!! Estas palavras não são minhas, são dos técnicos que serviram a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais nas décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960. Acreditamos que André Soares pode ter visto um destes tectos e, acaso, ter gostado. Terá sido assim?

Quem é que foi André Soares? Que vinho teria gostado mais de beber nas suas refeições, branco ou tinto? Ou palhete?

20 Arquivo da Capela de S. Miguel o Anjo

Embora a cidade e a região o admirasse, até onde é que a sua arte poderia ter ido se tivesse beneficiado de aprendizagem numa escola exigente, tivesse trabalhado para um público conhecedor, se tivesse a companhia de colegas tão bons quanto ele para dialogar, para questionar ou ser questionado?

Estas e tantas outras perguntas ficarão para sempre sem resposta. É que o seu assento de óbito, ao contrário de muitos outros, é seco, formal, inexpressivo, não nos nada adianta sobre os seus gostos, devoções, religiosidade, vida. Nada nos diz. Nada mesmo.

Mas também não faz mal. Talvez até tenha sido bom ser assim pois ficamos com o espaço aberto e o espirito livre para passear pelas suas linhas, pelas suas formas, pelos seus volumes e, dessa forma, poderemos deixar o nosso olhar e a nossa cabeça, o nosso sentir correr livremente pelas maravilhosas obras que nos legou.

Obrigado, ANDRÉ!

Eduardo Pires de Oliveira, doutorado em História de Arte, investigador integrado do ARTIS / Universidade de Lisboa, prémio José de Figueiredo 1993, da Academia Nacional de Belas Artes, é autor de Braga. Percursos e memórias de granito e ouro (1999), História da Associação Comercial de Braga (2000), Os alvores do Rococó em Guimarães e outros estudos sobre o barroco e o rococó do Minho (2003), Imagens da Ribeira Lima (2003), Estudos sobre André Soares, o rococó e o tardobarroco no Minho e no Norte de Portugal (2 vols. 2017/2018), Minho e Minas Gerais no séc. XVIII (2016), 18 olhares sobre André Soares (coord. 2019) e O Santuário de Nossa Senhora da Boa Morte, Ponte de Lima (2021).