A Inteligência Artificial e Seus Herdeiros

No universo dos videojogos, confesso-me um old school. Tenho uma máquina arcade em casa, com jogos das décadas de 80 e 90. Ainda prefiro a estética 2D. Mas é inegável o impacto do 3D, da inteligência artificial (AI) e do Machine Learning (ML) no desenvolvimento dos videojogos em particular, bem como na economia em geral. Só a título de exemplo, recordo que a partir de 2020, as receitas da indústria de videojogos ultrapassaram as indústrias do cinema e do desporto (1).
Um dos jogos que pratico com regularidade é o jogo de damas. Considero que a vida comum, a monótona e que nos envolve todos os dias, é mais parecida com um jogo de damas do que de xadrez. No xadrez há reis, rainhas, bispos, cavalaria, etc. Mas isso não se reflete na lógica de uma microssociologia, onde o plano vigente é o da proximidade entre peças, e onde as hierarquias e vantagens não são feitas de grandes poderes; antes de pequenos movimentos, de pequenas antecipações, de pequenas flexões para encaminhar o próximo a agir.
Habitualmente, jogo damas contra o computador. E ele usa machine learning (ML). E eu uso aprendizagem humana. É uma dança constante. No início de cada nível, perco. Depois uso essa espécie de ultra-instinto baseado na aprendizagem, e ganho. Subo de nível, e tudo recomeça: a máquina ganha até eu perceber como posso ganhar. E depois ganho eu. Subo de nível até ao topo. E no topo tenho, já, muita dificuldade em ganhar. Tenho que memorizar jogadas, sequências, usar muitas vezes o ‘undo’ para entender o sucedido. E só assim ganho, depois de muito treino.
Em fevereiro de 2023, um advogado robô vai defender um humano. Com um tipo de AI. Não se sabe ainda qual a sua base de dados, se apenas jurídica ou se complexa e capaz de misturar boas práticas humanas com aberturas legais. Veremos como se desenrola o processo (2).
Billy Corgan, vocalista dos Smashing Pumpkins, considera que o futuro da música será um domínio completo da AI. Se atualmente o eletrónico já domina na maioria dos processos musicais, no futuro a junção de eletrónico com AI será uma certeza. O rocker considera que o músico que dominar a produção musical com AI dificilmente terá rivais (3).
Já foram produzidas músicas em AI. Ao grupo dos 27, o projeto Lost Tapes aplicou um processo de produção completa de letra, música e voz de artistas que já não se encontram entre os vivos. Entre Jimi Hendrix, Amy Winehouse, entre outros, o projeto Lost Tapes também aplicou o processo aos Nirvana, ressuscitando Kurt Cobain e traços das suas capacidades de composição e interpretação. O resultado é muito bom, nas músicas You’re Going To Kill Me (Jimi Hendrix), Man I Know (Amy Winehouse) e Drowned in the sun (Nirvana).
Apesar das potencialidades infinitas, e de resultados muito bons, há ainda coisas que falham na AI. Acho que posso sintetizar essas falhas com o exemplo das damas e com a expressão ‘Somos mais do que as máquinas’, cantada por Gavin Rossdale (dos Bush).
Com as damas, reparo que o ML será sempre melhor do que eu porque o jogo é fechado. É apenas aquilo. As regras são simples e as possibilidades finitas. A ML do jogo pensa 3 a 4 jogadas à frente, com memória infalível. Se eu pensar em 5 à frente, ele aumenta para 6. E assim sucessivamente. Dificilmente terei hipótese dentro deste tipo de jogos.
Mas com a música, ou eventualmente com a decisão de um juiz, tudo será diferente. Estamos já em ambientes mais infinitos (mais na música do que na justiça, obviamente). Como refere Gavin Rossdale, ‘Somos mais do que máquinas porque sentimos’.
E sentir é algo que a AI, por mais engendrada com o ML, nunca conseguirá fazer. Quando o Kurt Cobain criou a Sappy, misturou o amor por uma tartaruga, as memórias do seu lar infantil meio distorcido, uma depressão profunda e uma adição poderosa às drogas. Não há AI que deste combinado retire o que quer que seja. Passem os anos que passarem. Como pode a AI criar a partir de fundos que não tem? De emoções que não conhece? De razões que não obedecem a qualquer lógica?
Mais: como pode uma máquina ler um texto de Franz Kafka e produzir um som tão obscuro quanto aquilo que é a reticência do pensamento kafkiano? A obscuridade que não está no texto, mas que reside na paisagem imaginária e comum de mentes que se leem e tornam gémeas?
Não pode a AI mas pode o humano. É o caso do texto At Night (de Franz Kafka) e da música At Night, dos The Cure. No texto de Kafka, é-nos apresentada a continuação da ideia de um vigilante sempre presente. E da noite, aquele silêncio em que só um olhar divino pode controlar. O texto reza assim:
“Deeply lost in the night. Just as one sometimes lowers one’s head to reflect, thus to be utterly lost in the night. All around people are asleep. It’s just play acting, an innocent self-deception, that they sleep in houses, in safe beds, under a safe roof, stretched out or curled up on mattresses, in sheets, under blankets; in reality they have flocked together as they had once upon a time and again later in a deserted region, a camp in the open, a countless number of men, an army, a people, under a cold sky on cold earth, collapsed where once they had stood, forehead pressed on the arm, face to the ground, breathing quietly. And you are watching, are one of the watchmen, you find the next one by brandishing a burning stick from the brushwood pile beside you. Why are you watching? Someone must watch, it is said. Someone must be there.” (4)
Robert Smith, líder carismático dos The Cure, recria At Night a partir do texto de Kafka não como um pintor de paisagens, mas como um pintor de sons (5). Há, nesta diferimitação (imitação diferenciada e transdutiva), toda uma sinistra atmosfera que só a maior sincronia mental e artística poderia refletir o escrito. Saberá sequer o que é uma transdução, a AI? Não me parece…nem o humano sabe do que são feitas essas comunicações entre diferentes matérias…
O ideal mesmo é ler Kafka e, simultaneamente, ouvir esta At Night.
Contudo, e já que crescem as aplicações da AI no mundo humano, seria interessante ver a sua aplicação ao mais finito mundo da corrupção. Sobretudo na ajuda à gestão da transparência nas democracias. Dava jeito a Portugal termos uma máquina incorruptível, cumpridora, zelosa, para enfrentarmos o futuro. Se assim fosse, o pântano em que mergulhamos atualmente não existiria…
(3)https://radarlisboa.fm/2022/09/27/billy-corgan-critica-industria-musical/
(4)https://www.goodreads.com/quotes/10478175-deeply-lost-in-the-night-just-as-one-sometimes-lowers
Tesouros visuais. O livro de salmos de Luttrell

Margens conhecerá momentos mais ou menos curtos de hibernação ou pousio. É uma tentação recheá-los ou entrecortá-los com apontamentos singelos, em jeito de entremez ou corta-sabores, mais apostados nas imagens, dignas de ser vistas, do que nas palavras, breves e leves. Pingos esporádicos entre artigos de autor.
Prestam-se a este desígnio algumas compilações de iluminuras que, para aproveitamento ou por horror do vazio, preenchem as margens e os espaços entre parágrafos dos livros de oração medievais. Algo difíceis de encontrar, proporcionam uma surpresa fabulosa.

Saltério de Luttrel, Inglaterra ca. 1325-1340. British Library, Add 42130, fol. 153r.jpg British Library copyright
O livro de salmos de Luttrel, um dos livros de oração mais antigos e célebres, guardado na British Library (Add. MS 42130), é composto por 309 páginas (350 x 245mm) em pergaminho, ilustradas por uma sequência apreciável de imagens sagradas, monstros híbridos e cenas da vida quotidiana. Criado provavelmente entre 1325 e 1335 na diocese de Lincoln por encomenda de Sir Geoffrey Luttrell (1276 –1345), de Irnham, o texto foi escrito por um copista e as iluminuras foram desenhadas por pelo menos cinco artistas diferentes.
Procedemos, morosa e pacientemente, à montagem, em forma de caderno, de trinta páginas do saltério de Luttrell. O resultado espelha-se na apresentação de diapositivos (PowerPoint) disponibilizada para descarga a que acresce uma galeria de imagens com atividades da vida quotidiana. É um gosto partilhá-las. É possível o acesso à digitalização integral do saltério de Luttrell no seguinte endereço da British Library: https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=add_ms_42130_fs001ar

Para download (13,6 MB) do referido caderno (apresentação com imagens e música) de 30 páginas do livro de salmos de Luttrel, carregar na imagem precedente ou no seguinte link (a apresentação está programada, com sincronização com o som, deixe correr as imagens sem fazer cliques):




















A Liturgia dos Pássaros: Homenagem a Olivier Messiaen


No dia 29 de dezembro, às 19:00, ocorre na Reitoria da Universidade do Minho uma homenagem a Olivier Messiaen pelo Drumming GP e Daniel Bernardes Trio, evento que o margens recomenda (ver apresentação). O blogue Tendências do Imaginário dedica dois artigos a este compositor francês que compôs e estreou a obra Quatuor Pour Les Fins du Temps (1941) enquanto prisioneiro no campo de concentração nazi de Gorlitz: Filhos do Crepúsculo: A Arte e a Música no Campo de Concentração (2017) e Música da desgraça Humana (2020).
Resulta oportuno acrescentar o texto (pdf) A arte na segunda guerra mundial: as diferentes artes que se faziam sentir nos campos de concentração, por Glória Manuela Rodrigues Fernandes para a disciplina Sociologia e Semiótica da Arte do curso de Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, da Universidade do Minho, em 2017.
Prenda de Natal. Os anjos também cantam

Dita-me a memória que o 25 de dezembro é o dia menos pré-ocupado do ano. Toda a atividade exterior suspensa, saídas só para visitar familiares. Não vai longe para encontrar um bar aberto era indispensável uma varinha de condão. Os minutos arrastam-se ecoando num vazio programático! Pior só durante a estada no estrangeiro em que nem sequer familiares havia para visitar. Uma promessa de pasmo prolongado. Por isso mesmo, uma ocasião de ouro para se entregar a entretenimentos exigentes em tempo: ver um filme, folhear lentamente um livro ilustrado, ouvir um concerto de música.
Margens convida-o a assistir a um concerto de música sacra espanhola medieval, que dura 80 minutos. Nem mais, nem menos. No dia 19 de julho de 2013, todos os astros se conjugaram para proporcionar um espetáculo único: o local (a catedral românica de Elne, nos Pireneus Orientais), a interpretação (Maîtrise de Radio France e Les Musiciens de Saint-Julien), as obras (Llibre Vermell de Montserrat e Cantigas de Santa Maria), a promoção (Festival de Radio France e Languedoc-Roussillon), o público (generoso e atento) e o registo audiovisual (envolvente e dinâmico, dirigido por Olivier Simonnet). Um regalo para todos os gostos.
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