Vozes na Língua da Maré

Há uma espécie de homens-peixe que, se não veem o mar todos os dias, deixam de respirar. Ou dito de outra forma, que só deixam de ir ver o mar quando já não respiram. Esta forma de simbiose herdei-a dos meus antepassados, que até ao meu pai foram pescadores. O meu irmão ainda calça essas botas, que a mim não me serviram, o que me tornou terrenho, fisicamente distanciado da vida que levam para lá da língua da maré: linha de onde os que ficam se despedem dos que vão, aguardando a sua chegada.
Regresso sempre que posso a essa fronteira mutável, que balança com os humores da lua, do vento, e do mar. Ela é a metáfora de uma vida passada em escuta, de ganha-pão na mão, à procura, na boca salgada da minha gente, de palavras que, presas numa memória de malha apertada, se não esqueçam. É metáfora de uma vida à procura, nessa linha e nessas histórias que a ela arribam, de um cabo de amarração, de uma âncora, que me segure, que nos segure a todos, a um lugar.

Na Língua da Maré é metáfora de uma vida à procura, nessa linha e nessas histórias que a ela arribam, de um cabo de amarração, de uma âncora, que me segure, que nos segure a todos, a um lugar.
Comecei na praia dos meus avós nas Caxinas, em Vila do Conde, onde há um farol que não alumia nada nem tem, já, barco algum para alumiar, mas que continua a guiar-nos àquele areal. Ali conheci outros rostos atentos ao mesmo horizonte, e ali fundamos e fundeamos, há quase uma década, uma associação cultural, a Bind’ó Peixe, uma pequena catraia cuja companha vem lançando redes a um património em construção.

Em 2014, a Mútua dos Pescadores ajudou-nos a recriar, por umas horas, o tempo em que os barcos ainda chegavam à nossa praia, repetindo, com esse gesto, o empenho que coloca na promoção e apoio a uma miríade de iniciativas de valorização da cultura marítima, um pouco por toda a costa onde estão as comunidades que constituem, desde sempre, a sua razão de ser. Para um primeiro encontro, tão marcante ele foi, não poderia ter sido mais feliz.
No início de 2022 recebi um convite para escrever um livro para o 80.º aniversário desta cooperativa de seguros. Desejava-se, à partida, que ele refletisse o universo em que a instituição navega e, após uma primeira ponderação, considerou-se que a obra ganharia se, para além de textos, pudesse incluir fotografia. Helder Luís, artista, designer e fotógrafo que tem, nos últimos anos, produzido e editado importante obra sobre a pesca, a partir da Póvoa de Varzim, onde nasceu e atualmente vive, foi então convidado a participar na concepção e produção deste projeto.
Cada um à sua maneira, temos sido, promotor e autores, vozes da língua da maré: a Mútua, com as reflexões que produz na sua revista, nas campanhas e nos encontros que promove; Helder Luís, com livros como Atlântico, de 2019, e Sardinha, publicado já em 2023; e eu, que, em 2022, com a Bind’ó Peixe e outras entidades, concebi e coordenei editorialmente o projeto Rostos da Maré, com histórias de vida que cruzam os territórios de Matosinhos, Póvoa de Varzim e Vila do Conde, de que resultou um livro homónimo editado pela Área Metropolitana do Porto.
Inspirado em escritores como Bernardo Santareno (Nos Mares do Fim do Mundo), Ramalho Ortigão (As Praias de Portugal) ou Raul Brandão (Os Pescadores), há muito que aguardava uma aberta para me fazer a este mar num registo cronístico, cruzando observações, notas e depoimentos obtidos nos territórios da pesca com reflexões geradas por décadas de dedicação à cultura marítima. Poder fazê-lo, finalmente – mesmo sendo, como se notará, um verde de primeira viagem num banco de pesca frequentado por algumas das primeiras linhas da nossa literatura –, era uma oportunidade que não podia recusar.

Para este projeto estivemos em várias comunidades da beira-mar de Portugal continental, dos Açores e da Madeira, procurando testemunhos e sinais da relação desses lugares, e dos seus habitantes, com a pesca e com outras atividades marítimas, umas em claro recuo, outras a ganhar espaço na nossa economia. E com este livro, queremos principalmente apontar a atenção de quem o venha a folhear para um país em que o Atlântico, mais do que uma fronteira, para muitos de nós se mantém como extensão natural de um território físico e espiritual. A safra que desta viagem trazemos, não sendo, de todo, exaustiva, reflete, julgamos, no nosso trabalho documental e criativo, muita da diversidade de experiências que o mar, em Portugal, suscita.
Limitado pelo tempo disponível e pela vontade de publicar este livro ainda em 2022, no fecho das comemorações do octogésimo aniversário da Mútua, este roteiro acabou por deixar de fora vários portos, uns maiores, outros mais pequenos, onde vive gente e se desenvolvem atividades de inegável contributo para um retrato mais aprofundado da nossa maritimidade, passada e presente. São lugares e comunidades a que esperamos, noutros projetos, poder regressar, à procura de outras vozes da língua da maré.
Este texto é uma versão, com ligeiras adaptações, da introdução ao livro na Língua da Maré, de Abel Coentrão e Helder Luís. Uma edição Mútua dos Pescadores distribuída pela Âncora Editora.
Um Passeio pelas margens da memória
Teresa Lima
A porta abre e fecha; separa. A ponte liga; une. A ponte e a porta unem e separam. A janela também intercala mundos, mas o movimento propende a operar-se num único sentido, de dentro para fora. O olhar capta o exterior. A partir destas metáforas, Georg Simmel escreveu um dos textos mais curtos e brilhantes da Sociologia (“Brücke und Tür”, Der Tag. Moderne illustrierte Zeitung, n° 683, 15.09.1909, p. 1-3). Pela janela, o sujeito costuma ainda penetrar no mundo sem nele intervir.
Espécie de moldura para um retrato realista, a janela de Alberti não deixa de assentar num ponto de vista, de configurar, precisamente, uma perspetiva. Olhar pela janela é um ato relativo carregado de subjetividade. Acresce que a janela pode funcionar como espelho, em particular quando a luz, o foco, incide sobre o observador. Reflexiva, a prospeção reverte, agora, para mundos interiores, eventualmente, para a introspeção. Nada impede o recurso a várias janelas propiciador de uma visão múltipla, “poligonal” (José Saramago). Somando estes traços, resulta tentador convocar as figuras do flâneur e da deambulação, ao sabor de uma morna lenta e caprichosa, porventura melancólica, filtrada por “janelas portáteis”.
Este breve apontamento inspira-se no artigo “Um Passeio pelas margens da memória”, de Teresa Lima, que, de janela em janela, convoca, em diálogo íntimo, memórias, obras e autores. Passeia-se não pelas ruas de Paris mas pelos atalhos da vida nos interstícios da alma. Um tango dialógico de excursões e incursões entrelaçadas. Afins, o blogue Margens e a Passeio, Plataforma de Arte e Cultura Urbana, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, são água da mesma fonte. O presente texto de Teresa Lima inaugura a expressão desta parceria. (Albertino Gonçalves)
A minha estreia na Passeio, plataforma de arte e cultura urbana do CECS/UMinho, deu-se com um texto sobre a infância, intitulado Subúrbio na cidade.

Não é que tenha sido intencional, mas pensando retrospetivamente, penso que não poderia haver entrada mais fiel ao espírito da deambulação, que se pretende imprimir a este projeto.


Para mim, como para Miguelim, cada partida é o reconhecimento de que o lugar da infância só é verdadeiramente bonito quando o perspetivamos à distância. Aviso, desde já, que Guimarães Rosa será, nas próximas linhas, uma referência próxima do obsessivo. Depois de ter lido Grande Sertão Veredas (um vaguear filosófico pelo sertão pessoal e físico), tive receio de nunca conseguir ler mais nenhum livro, por indiferença a tudo que não fosse aquela oralidade cheia de subtilezas. O vaguear reflexivo que aqui pretendo calcorrear começa num ponto de tensão entre o aconchego de um lugar familiar, o desejo de sair e o susto provocado por geografias estranhas. Vou apoiada por companheiros de viagem.
Logo de rajada, surgem-me em catadupa imagens e referências: a rua da meninice, que ainda hoje hesito em pisar, as cidades que nos fustigam com os seus excessos, o anonimato urbano que nos faz respirar, o cheiro reconfortante de uma esquina conhecida e a vida. A minha e a dos outros com quem me tenho cruzado. De modo que tenho uma vaga ideia, mas não sei ao certo onde este percurso sem destino pré-definido – para um blogue sobre cultura, arte e imaginário – me poderá levar. O sentido de orientação nunca foi o meu forte, por isso, embalada pelo contexto das margens, confio na intuição como uma boa bússola para percorrer os caminhos da memória.
Peço licença para introduzir o conceito de biografia, a pessoa humana nos lajedos que trilha. Porque somos, antes de tudo, um corpo, que (se correr como o esperado) se desenvolve embalado por outros corpos, que são faróis no caminho. Falando nisto, adoro o romantismo dos faróis no meio da escuridão. Como gosto de barcos à deriva. O cheiro a óleo dos barcos, as amarras que se libertam no cais e a paisagem ao longe, fazendo-nos duvidar se é a vida que caminha por si só, como num travelling infinito, se somos nós que caminhamos por ela. E água que lava tudo. Sozinha, em Braga, há três décadas, deixei-me interpelar pelo granito das ruas, mudos edifícios que me olhavam sem delicadeza. Voltava sempre para o horizonte marítimo, ao fim-de-semana, como que para um balão de oxigénio.
Em Braga, havia uma janela na qual me debruçava (qual varandim de um barco) para observar o movimento da vizinhança. Sei, hoje, que a janela é uma justa metáfora da forma como encaramos a vida. Uma moldura concetual, um filtro. Porque a verdade (ao contrário do que cheguei a acreditar) nunca é um destapar do pano. “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os factos”. (“O Espelho”, Primeiras Estórias). Como numa janela, observo as interseções dos lugares, não esperando nada, que é a mais completa forma de comprometimento e intervenção. Uno a ideia da janela a Manoel de Oliveira. Apreender uma vida através dos documentos produzidos no decurso de uma atividade, isto é, dar sentido a essa organicidade documental, é iniciar uma jornada a que nunca se encontra o fim, não há nada de universal e exato numa vida. Como num passeio, experienciei, neste projeto, o medo de encarar o desconhecido, a responsabilidade de calcorrear os caminhos corretos, a necessidade de despir todos os contextos, todas as ideias pré-concebidas, para aceitar o que o percurso nos propõe. A partir daqui, sou encaminhada, como num navio à deriva, para o filme Je rentre à la maison/Vou para casa.

O imprescindível turbilhão do exterior, que nos empurra, cedo ou tarde, para um regresso ao quente do útero. Que é uma casa onde não precisamos de fabricar nada, nem observar, quase nem respirar. É possível que vivamos em espiral e não em linha reta. O útero é como que uma caverna onde recarregamos baterias. Mas o redemoinho experimentado por um mergulho no mar, onde por momentos perdemos a noção espacial ou temporal, é, para mim, mais do que um desejo, uma inevitabilidade.
Assim sendo, sigo viagem e confesso-me numa encruzilhada. Mas é necessário ler as indecisões dos caminhos, “o diabo no meio do remoinho”. Miguelim adulto é Miguel em “O Buriti”, só percebi isso numa terceira leitura recente. De modo que Miguel, depois de viajado, procura um lugar-casa, que é o corpo de uma mulher que conhece superficialmente e por quem se apaixonou. É, também, um regresso ao útero, mas renovado. Não para morrer já, como com Michel Picolli, em Je Rentre à la Maison, mas para renascer. Uma espécie de olhar ao espelho ou a chegada de alguém que esperávamos, sem o sabermos conscientemente. Neste emaranhado paisagístico em forma de texto, olho as notas que tirei previamente. Escolho, para este pedaço de caminho, Guinga e a canção Meu Pai. Porque nos fala da infância, do que se espera que as ruas do subúrbio carioca respondam, perante a busca incessante de um autor pelo seu pai. Um cruzamento entre uma história de vida pessoal e um espaço público comum, carregado de memórias e desejos individuais. Voltamos à ideia do espelho, que é, claro está, um nunca completo processo identitário.

Por fim e ainda, uma outra janela. Neste caso, um outro filme, do realizador Edgar Pêra. A Janela (Marialva Mix) pode ser um olhar acelerado sobre o quotidiano de um típico bairro lisboeta. Ou uma espera numa janela, onde tudo passa e nunca se sabe bem se o que vemos a acontecer é resultado da nossa cabeça ou a realidade. Seja lá o que isso for. Uma vez mais, público e privado, particular e universal. Caminhos múltiplos, verdades e inverdades, espelhos que são o que queremos ver, sintonias e aversões. Prossigamos o Passeio.
Teresa Lima
Bolseira de investigação na Passeio- plataforma de arte e cultura urbana, é doutoranda de Ciências de Comunicação na UMinho, com uma tese que relaciona a biografia e a comunicação, a partir da história de vida do realizador Edgar Pêra. Com um percurso profissional que começou no jornalismo, enveredou, mais tarde, pelas Ciências da Informação, tendo participado no tratamento do arquivo Manoel de Oliveira, atualmente depositado na Casa do Cinema, na Fundação de Serralves.
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