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As duas caras: A oliveira e o leão

Por António Amaro das Neves

“Tenho particular apreço pelos autores que ousam acrescentar novas camadas de sentido a realidades, designadamente do património histórico e cultural, cuja interpretação parece saturada ao nível do senso comum vulgar ou sábio. António Amaro das Neves consegue-o a propósito do Guimarães, o Homem das Duas Caras, estátua icónica dos vimaranenses, no texto surpreendente “As duas caras: A oliveira e o leão”, escrito para o livro Sociologia Indisciplinada. São obras como esta que costumo eleger como fonte de inspiração e me motivam, confesso, uma ponta de inveja.

Segue, em pdf, a versão a cores do capítulo “As duas caras: A oliveira e o leão”, da autoria de António Amaro das Neves, do livro Sociologia Indisciplinada (coordenado por Rita Ribeiro, Joaquim Costa e Alice Delerue Matos), Edições Húmus, 2022, pp. 55-68″ (Albertino Gonçalves).

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António Amaro das Neves, historiador, mestre em História das Populações, investigador do CITCEM. Foi presidente da direção da Sociedade Martins Sarmento e coordenador editorial da Revista de Guimarães. Autor, coautor e organizador de diversas publicações. Mantém ativo, desde 2007, o blogue Memórias de Araduca, dedicado à história, às tradições e à cultura de Guimarães e do Minho.

Antepassados do surrealismo: o maneirismo (vídeo da conversa)

Após quatro meses de esforços e contratempos, o vídeo com a conversa Os antepassados do surrealismo: os maneiristas está disponível na Internet. Exigiu tanta dedicação que se tornou numa das minhas rosas. Não ouso convidar a assistir às quase duas horas. Quando muito, um breve relance, de preferência a uma das seis apresentações incorporadas. Sei que todos andam ocupados a cuidar de outros jardins.

O vídeo ganha em ser visualizado em alta resolução (1980p).

Antepassados do surrealismo: o maneirismo, por Albertino Gonçalves. Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa, em Braga, 27 de maio de 2023

A universidade sofreu uma viragem no crepúsculo do segundo milénio. Os novos modos e as novas metas dos circuitos académicos não condizem nem com a minha formação nem com a minha vocação. Entre outros aspetos, incomoda-me ter que pedir, senão pagar, a estranhos para publicar. Nesses termos, perdi o interesse em publicar. Continuei a escrever mas relatórios de investigação/ação ou por convite, sem esquecer os apontamentos no blogue Tendências do Imaginário, um monstro híbrido de cultura e lazer, criado em 2011.

Não deixei, contudo, de investigar. Pelo contrário. Gosto de comunicar e ensinar, mas prefiro descobrir e aprender. A vida é um bom mestre. Ensinou-me, entretanto, que sou mortal. Tomei consciência de que boa parte dos conhecimentos que fui amealhando, dispersos em discos digitais, arriscam desparecer comigo. Pequeno ou grande, trata-se de um desperdício.

Capacitei-me da responsabilidade de cuidar da partilha. Optei, quase exclusivamente, por duas vias (alternativas aos blogues Tendências do Imaginário e Margens): a publicação de livros e a comunicação oral. Os livros são obras de Santa Engrácia. As comunicações costumo não as repetir, nem sequer as apresentações de livros. Em suma, grande vontade mas parcos os meios: para cada assunto, uma única comunicação, num dado local e data, perante um público reduzido. A passagem de testemunho reduz-se, portanto, a um momento pouco participado.

Posso não aderir a todas as mudanças, mas não me estimo retrógrado. Procuro aproveitar as novas tecnologias, designadamente, de informação e comunicação, que proporcionam um arremedo de solução para o afunilamento da partilha: filmar as conversas e disponibilizá-las na Internet. Assim sucedeu com  as conversas O Olhar de Deus na Cruz: o Cristo Estrábico (29-11-2022) e Vestir os Nus: Censura e Destruição da Arte (18-02-2023), embora com insuficiente qualidade. Com um pouco mais de profissionalismo, resultou mais cuidado o registo desta última conversa.

Maniera: A Arte do Artista

O maneirismo, menosprezado durante quatro séculos, permanece pouco conhecido. Trata-se, porém, de uma das correntes mais inovadoras e ousadas da história da arte. Sendo raros os textos e as imagens que lhe são consagrados, o vídeo Maniera – A Arte do Artista, uma mostra de obras anotadas, representa um contributo, por modesto que seja. O fundo musical é composto por folias, um tipo de música e dança de origem portuguesa em voga no século XVI).  

Acompanham o vídeo um apontamento, para contextualização, e uma galeria com uma seleção de imagens, para ajuda à visualização e eventual descarga.

Maniera: A Arte do Artista, por Albertino Gonçalves, Julho de 2023

Faltou à conversa “Os Antepassados do Surrealismo: o Maneirismo” (Braga, 27 de maio de 2023) uma apresentação genérica dedicada ao maneirismo, correspondente à que foi projetada para o surrealismo. Segue uma espécie de justificação autocrítica escrita logo no dia seguinte.

“Ontem teve lugar a conversa “Antepassados do Surrealismo: o maneirismo”. Estavam previstos 60 minutos, durou 2 horas. Mais do que riqueza, este prolongamento revelou impreparação. Se tivesse ensaiado antes, teria cortado algumas partes e abreviado outras. A justeza, a fluidez e a naturalidade constroem-se, treinam-se e testam-se.

O que aconteceu? Uma notícia intempestiva corroeu a motivação: os jogos do F.C. Porto e do S.L. Benfica, em que se decidia o campeonato, foram remarcados coincidindo com a conversa. Manifesta-se difícil imaginar maior desvio de público. Este percalço irritou-me. É certo que a vida é feita de acidentes de percurso. Faltavam cinco dias e a divulgação já estava em curso. Sensível a contrariedades imponderadas, embirrei e bloqueei. Uma conversa não se justifica se não partilhar algo de original. Não é óbvio partilhar sem público. Acresce o combustível do prazer. Estavam em causa a partilha e o prazer.

Capaz de me entregar sem reservas a um desafio, também me desligo ao mínimo estorvo ou desagrado. A conversa ganhava naturalmente com uma seleção de imagens dedicada ao maneirismo em geral. Tarefa que pouco estimulante, releguei-a para o fim. Com o contratempo do futebol, se pouco me entusiasmava, deixou de o fazer. Amuei e passei a dispensar. Como pitada de indulgência, convenha-se que, atendendo à diversidade, complexidade e dificuldade de descodificação das obras maneiristas, uma mera projeção abreviada de uma dúzia de imagens arriscava revelar-se incipiente e, porventura, mais confusa do que esclarecedora. Quando o público acusou a falta dessa apresentação, a resposta foi imediata, desconcertante e honesta: talvez houvesse interesse, mas não vontade.

Em suma, procedi mal! Tanto a conversa como o público mereciam algumas horas de dedicação adicional. Nem sempre sou racional. Acontece-me ser improcedente, inconstante, caprichoso e casmurro. O público merecia, de facto, melhor. Apesar das circunstâncias adversas, marcou presença, resistindo à sereia da bola. Repito, merecia melhor, sobretudo menos quantidade e mais qualidade. Mas, pelos vistos, ainda queria mais!”

Há males que vêm por bem! Atendendo à urgência, a apresentação a devido tempo sobre o maneirismo seria breve, pouco original e de pouco alcance, à semelhança, aliás, da dedicada ao surrealismo. Com um sentimento de culpa, acabei por encará-la como uma penitência; e o que era para despachar em cinco dias demorou quase quinze semanas. Creio que valeu a pena. Adiar pode compensar!

Galeria: Seleção de obras maneiristas

André Soares em Viana do Castelo

Por Eduardo Pires de Oliveira

Na última conversa ao telemóvel com o Eduardo Pires de Oliveira estava a ler o livro André Soares em Viana do Castelo, que repousava, com os óculos, na cama. Sugeriu-me que tirasse uma fotografia

A repetição faz parte da poesia, da música e da rotina. Assim como da imagem e da decoração. Nada, portanto, como copiar e colar:

“Segundo Marshall McLuhan (A Aldeia Global, 1992), o cérebro divide-se em dois hemisférios: o esquerdo, visual, mais racional, e o direito, acústico, mais emocional. Na Modernidade, prevalece o lado esquerdo” (https://tendimag.com/2023/07/30/barbas-salutares/).

McLuhan também se aventura na seriação da história da humanidade em três idades em função do meio/ambiente de comunicação preponderante: oralidade, impresso e eletrónica. Entre a oralidade e o impresso, intercala-se ainda o manuscrito (sobre as consequências da passagem da oralidade para a escrita, ver Jack Goody, The Domestication of the Savage Mind, 1977). Com a invenção da imprensa e o advento da “galáxia Gutenberg”, o “homem tipográfico” tende a afastar-se da mundividência, caraterística da oralidade, do tribal, do global, do mosaico, da miscelânea, da irregularidade, do paradoxo, do multicentrado, em suma, de um espaço “cujo centro está em toda a parte e a circunferência em parte nenhuma” (Pascal, Blaise, Pensamentos, 1670. Artigo XVII). Passa a inscrever-se num espaço clássico, geométrico, ordenado e sequencial, alvo de uma abordagem individualizada, abstrata, especializada, hierarquizada, objetiva, focada, linear, analítica e classificatória. Com os novos meios de comunicação, tais como a rádio e a televisão, começa uma nova idade, a “galáxia Marconi”, em que prevalece o audiovisual. Neste novo ambiente ressurgem propensões e formas que lembram a idade da oralidade, principalmente o “homem tribal” da “aldeia global” (Marshall McLuhan, The Gutenberg Galaxy: The Making of Typographic Man, 1962).

De acústico e visual, de eletrónico e tipográfico, de tribal e individual, todos temos um pouco. Cada qual a seu jeito. Quer-me parecer que o Eduardo Pires de Oliveira consegue alterná-los, oscilando entre ambos os registos. Nas conversas e nas visitas guiadas emociona-se, dispersa-se, idealiza e opina. Entusiasma-se e entusiasma. Em contrapartida, quando produz um texto de teor científico cinge-se a descrever, classificar e contextualizar sem se dispersar. Disciplina-se e disciplina. A voz do coração e a letra da razão, o amor à arte e o rigor da ciência, lado a lado.

Igreja de São Domingos. Retábulo de Nossa Senhora do Rosário. Fotografia de Adelino Pinheiro da Silva

Eduardo Pires de Oliveira acaba de publicar um livro dedicado a André Soares em Viana do Castelo. Incide sobre os retábulos da Igreja de São Domingos, da Igreja da Senhora da Agonia e da Capela das Malheiras. Pelo caminho, apresenta “o mais importante artista português do tardobarroco e do rococó (…) sem par quer em Portugal, quer na Europa do seu tempo”. Dá-nos a conhecer, de forma detalhada, aprofundada e circunstanciada, a “obra do mestre” através do olhar de um especialista, sem derivas nem fabulações. A “voz do coração” e da paixão pela arte ficam à porta, resumindo-se à nota introdutória (“O porquê deste livro”) ou aguardam pela saída, despedindo-se no “Encerramento”. Quando muito, insinua-se algum incómodo perante a atribuição demasiado apressada, e provavelmente falsa, do desenho da capela das Malheiras a André Soares. Não sendo, efetivamente, da autoria de André Soares, pode estranhar-se que lhe seja dedicado um capítulo inteiro. Na verdade, a caraterização da capela torna-se imprescindível à demonstração da nova interpretação proposta. Acresce que André Soares não está apenas presente na materialidade dos retábulos mas também na mente, ajustada ou equivocada, das pessoas, nomeadamente dos “entendidos”. Nesta perspetiva, a parcimónia do título do livro não deixa margens para dúvidas: André Soares em Viana do Castelo, nem mais, nem menos. Para além da obra, abrange a figura.

Igreja da Senhora da Agonia. Retábulo-mor. Fotografia de Adelino Pinheiro da Silva

Está prevista uma visita guiada às obras de André Soares na cidade de Viana do Castelo no sábado dia 16 de setembro. Começará às 14:30 na Igreja da Senhora da Agonia, passará pela Igreja de São Domingos e terminará na Capela das Malheiras, onde será promovido um novo lançamento do livro. Será uma oportunidade para surpreender a outra face do Eduardo Pires de Oliveira, mais pródiga, veemente, interativa e envolvente.

Segue um pdf com excertos do livro André Soares em Viana do Castelo, nomeadamente a capa, a ficha técnica, a nota introdutória “O porquê deste livro”, o capítulo 1 sobre o André Soares, o capítulo 4 dedicado à Capela das Malheiras, uma seleção de imagens, o “Encerramento” e o Índice.

André Soares em Viana do Castelo

O próximo sábado oferece uma excelente oportunidade para saborear um folhadinho de camarão aquecido, revisitar a Igreja de Nossa Senhora da Agonia sem ser para trabalhar, folhear as imagens de um belo livro, ouvir o Eduardo Pires de Oliveira e jantar à beira-mar.

No próximo dia 17 de junho (sábado), na Igreja de Nossa Senhora da Agonia (Viana do Castelo), pelas 17.30 horas, é apresentado o livro “André Soares em Viana do Castelo”, de Eduardo Pires de Oliveira. Nesta publicação, o autor dá nota do conjunto excepcional de retábulos deixados pelo arquiteto setecentista na cidade Viana do Castelo, nomeadamente o da capela de Nossa Senhora do Rosário, na Igreja de São Domingos, o da Capela da Casa da Praça e os que se mantêm na nave e capela-mor da Igreja de Nossa Senhora da Agonia. A edição de autor, composta por 254 páginas, apresenta fotografia de Adelino Pinheiro da Silva, Ricardo Janeiro e Agnès de Gac e inclui um estudo do douramento do Retábulo de Nossa Senhora do Rosário, assinado por cinco investigadores na área da Conservação e Restauro. 

Eduardo Pires de Oliveira, reputado investigador de História da Arte e especialista em André Soares, é doutorado em História de Arte pela Universidade do Porto, Investigador Integrado no ARTIS, Académico Correspondente da Academia Nacional de Belas Artes (Lisboa) e autor de centenas de estudos sobre Arte e a região minhota.

A organização do evento é do Centro de Estudos Regionais, constando no programa a atuação do Coro desta associação cultural.

Muito nos honraria se aceitasse o nosso convite.

José Carlos Magalhães Loureiro

Vestir os Nus. Vídeo da conferência

Eu saí nu do ventre da minha mãe e nu hei de voltar ao seio da terra. Deus mo deu, Deus mo tirou

Job: 1:21

Na última década e meia, pouco me preocupei com a divulgação dos meus estudos. Quando muito um ou outro apontamento no blogue Tendências do Imaginário. Entretanto, a predisposição mudou. Passei a atender à transmissão dos conhecimentos amealhados, desde que pelos canais e do modo que bem entendo: sem demandas, candidaturas ou submissões. Multiplico, portanto, conversas e partilhas. Durante três dias a fio, empenhei-me na montagem do vídeo da conferência “Vestir os Nus: Censura e Destruição da Arte”. Embora obra de amador, não deixo de apresentar o resultado obtido.

Para aceder ao vídeo da conferência, carregar na imagem seguinte o no endereço https://tendimag.com/2023/04/08/vestir-os-nus-video-da-conferencia/

Vestir os Nus: Censura e Destruição da Arte. Albertino Gonçalves. Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa, em Braga, 18 de fevereiro de 2023

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Acabei de me inteirar de um novo caso de “agasalho de um nu”. Desta vez, o São Sebastião, de Guido Reni (1617-1618), da coleção do Museu do Prado. Acabado de restaurar, o original está exposto desde o passado mês de março.

Museu do Prado recupera original do São Sebastião de Guido Reni (1617-1618)

Vestir os nus em vésperas do carnaval

No próximo dia 18, sábado, às 17 horas, apresento a conferência “Vestir os Nus. Censura e Destruição da Arte”, no auditório do museu arqueológico D. Diogo de Sousa, em Braga. Seguir-se-á, às 18 horas, noutra sala, com direito a bebida quente, uma mesa redonda sobre a censura na atualidade, com participação de vários amigos. Junto, como convite., o cartaz. Vai ser um encontro agradável e, estou em crer, compensador. Venha! E traga outro amigo, também.

André Soares. Tantas perguntas sem resposta!

Eduardo Pires de Oliveira

Sente-se o perpassar de várias tendências artísticas, um diálogo contínuo de pedras, madeiras e ouro, estuques e espaços.
Não admira o espanto dos visitantes. Nada nele é estranho, é natural. As pedras e as madeiras são como os homens, têm vida, sofrem alterações, vão-se adaptando ao momento que estão a viver.
As peças, os riscos, os ornatos não têm uma função, o criador é livre de os usar conforme o momento ou o espaço em que se encontrar
A obra de André Soares “viveu” múltiplos momentos, sempre diferentes, sempre ao correr do acaso, sempre com imensa sabedoria.

Da mesma forma que durante o colóquio Barroco e a Modernidade, em que um dia falando na sala contígua aquela onde está a obra mais espectacular de André Soares, a capela dos Monges, em que nessa sala deixamos fluir o pensamento, em que as palavras surgiram ao acaso, umas vindas da memória, sobretudo do que conheço da arte do grande Mestre, e outras das peças que existem naquele espaço, também aqui, neste texto, as ideias correrão de forma livre, embora mantendo sempre como referência a figura e a obra de André Soares.

Por essa razão, será profundamente coloquial, não terá notas de rodapé. Mas será, claro, devedor aos vários estudos que Robert Smith e eu próprio já lhe dedicamos.

Comecemos, então.

Aos poucos vai-se conhecendo melhor a personalidade artística de André Soares. E o que não é menos importante, aos poucos vai-se também caracterizando o meio em que viveu, a cidade de Braga e a região do Minho. Falta ainda um estudo sobre a personalidade artística do homem que foi mais importante na sua carreira, o arcebispo D. José de Bragança e, o que não é menos importante, falta saber que obras de arte é que existiam nas casas das famílias nobres existentes na cidade e na região. Só tendo uma ampla perspectiva da vida do arcebispo e de como funcionava a nobreza bracarense se poderá conhecer com a devida extensão este homem, o criador, André Soares. É que não me parece que o povo de então possa entrar neste ambiente, embora a ele tivesse acesso, mas apenas como usufrutuário, nos templos, ao ver os retábulos e todo um enorme conjunto de obras de arte que eram utilizadas no culto.

01 Assinatura de André Soares

Como é que seria fisicamente André Soares? Um homem alto? Ou seria baixo? Alto, entenda-se, para o que era corrente na época em que o homem tinha, seguramente, uma estatura mais baixa que o actual, entre 1,70 e 1,75 metros.

De que cor é que seriam os seus olhos? E como é que se vestia, ele que chegou a aceitar como pagamento uns tecidos. Será que esta indicação nos permite pensar que seria vaidoso? A verdade é que poderia ser porque do pouco que se conhece ele não precisou de trabalhar para viver. Exemplo:  depois de perder uma imensidão enorme de dinheiro num empréstimo que fez em 1758 aos Jesuítas – que no ano seguinte foram expulsos do país, o que inviabilizou o pagamento desse empréstimo – teve capacidade para continuar a adquirir terras para juntar ao vínculo da irmã, Apolónia.

Mas seria vaidoso? E se, acaso, gostava de roupas será que também quereria vê-las adornadas com algumas joias? Sabemos que havia pelo menos um tipo de tecido, o crepe, de que deveria gostar, pois o último pagamento que recebeu em vida foi precisamente neste tecido, não quis aceitar um pagamento de 13$800 réis, antes preferiu que lhe fossem dados trinta covados de crepe e forro que se lhe deu em agradecimento da factura do dito risco por não querer levar por elle dinheiro! E seria um tecido feito em Guimarães? (É que este pagamento foi feito por uma confraria daquela cidade, a dos Santos Passos, pelo projecto de arquitectura da sua nova igreja dos Santos Passos, precisamente a última obra de André). Ou seria um tecido estrangeiro? É provável.

02 Igreja dos Santos Passos, Guimarães

E o que é que comeria? O minhoto não tinha por costume comer peixe, e o bracarense não deveria ser diferente embora existisse em Braga um Mercado de Peixe desde o século XVI, num mercado coberto que estava situado dentro de muralhas – na hoje praça Velha – e que, dois séculos mais tarde, foi mudado para fora de portas, para o actual campo das Hortas. Essa mudança deu origem a uma das maiores, senão a maior, insurreições levada a cabo por mulheres na Braga do século XVIII.

Sim, comeria carne, muita carne como se usava, quem tinha dinheiro para a comprar, claro. E a verdade é que conhecemos um outro pagamento, este em presuntos, nada menos que seis de uma vez só, que lhe foram mandados entregar pelos beneditinos de Tibães em agradecimento pelos riscos que fez para toda a talha que para lá desenhou em 1756, e que foi um mar de retábulos, sanefas grandes e pequenas, molduras de janelas e de janelões e púlpitos. Seis presuntos que valiam 4$800 réis, ou seja, o equivalente a 20 dias de trabalho de um mestre pedreiro da maior qualidade. E pena é que os restantes 22$400 réis que lhe foram pagos pelos beneditinos tenham sido descritos apenas como “mimos”, que hoje não possamos saber o que eram, pois sendo “mimos” seriam coisas que ele gostaria, de certeza. E isso permitir-nos-ia, talvez, conhecê-lo um pouco melhor. E porque é que tendo a família dinheiro bastante viveram numa casa bastante pequena?

03 Casa de André Soares R Visconde Pindela

Estas são algumas das muitas perguntas que gostaríamos de fazer a uma pessoa que tivesse vivido naquela época. Mas Braga só teve um memorialista de relevo, Inácio José Peixoto, que nas suas memórias particulares deixou escritas sobre André apenas estas palavras, palavras maravilhosas:

Na Arquitectura e Desenho depois de Andre Soares, ficou com os maiores creditos Carlos Jose Amarante… (PEIXOTO, Inácio José – Memórias particulares de… Braga: Arquivo Distrital de Braga, 1992, pág. 80).

São palavras que sendo magníficas para se compreender a sua capacidade criadora nada nos dizem sobre a sua vida. Sobre o Homem.

Mas talvez nos digam algo se a elas associarmos a belíssima, fantástica, cartela, a que deixou no Mappa de Braga Primas, de 1755 (?), que depois de passar para a mão dos seus herdeiros acabou em Lisboa, na Biblioteca da Ajuda, onde todos a podemos ver. Se nos fixarmos bem a olhá-la, se nos conseguirmos prender totalmente nela, nos seus arabescos, naquela imensa colecção de ornatos em sucessão, se nos abstrairmos de tudo que não sejam aqueles traços, conseguiremos ver um homem sereno, perdido, pois a mão que tem o “lápis” deixou de ser dele, pertence ao desenho que vai correndo pelo papel, vai deixando novelos e mais novelos.

O seu espírito voou de uma forma que embora muitas outras vezes mais tivesse desenhado e redesenhado outros novelos, só mais uma vez voltou a atingir aquela plenitude, no momento em que teve que desenhar a sua obra-prima, tanto de arquitectura como da arte do retábulo, a capela dos Monges, seguramente o seu testamento artístico, ou não tivesse sido concebida no penúltimo ano da sua vida, mas talvez ainda antes de ele saber que pouco mais tempo iria andar por cá.

06. Capela dos Monges

O lanternim é uma peça excepcional que mede peças a Borromini, Guarino Guarini, Bernini… a todos, mesmo numa listagem sem fim de arquitectos!

07 Lanternim. 08 Guarino Guarini, Bernini, Borromini e André Soares

Aquele retábulo da capela dos Monges é de uma arte fantástica, uma linha que também é curva e contracurva e que para ter mais relevo é, desde o arranque até mais de meio, feito com uma “linha dupla”, e que depois, na parte superior, continuará a ser curva e contracurva, mas agora em ângulo recto, quase parecendo um raio a descer dos céus em dia de tremenda trovoada, um desenho que poucos anos antes, do início dessa mesma década de 1760, usara ali a poucos metros, na fachada da igreja, dos Congregados, claro.

09 Retábulo da capela dos Monges

E esta vontade de repetir, seja na mesma peça, seja quando vai integrar outros desenhos, deixa-nos perplexos, ficamos a perguntar porque é que ele se repete. É que, por exemplo, o enrolamento que se vê no arranque deste retábulo do espaço mais íntimo dos oratorianos, esta capela dos “Monges” (“Monges” porque os oratorianos eram padres, não eram monges, com aspas, portanto) já se vira na sua primeira obra, também ao nível do chão, precisamente na porta do palácio que desenhara para o arcebispo D. José de Bragança; e também naquela imensa “pata”, que é o que parecem as bases das colunas que sustentam aquela selva de ornatos – ou de líquenes? ou de algas? – que é a Casa de Fresco, hoje no parque do santuário do Bom Jesus do Monte. Que, se virmos bem, também tem início em um enrolamento.

10 Enrolamento no arranque do retábulo da capela dos Monges

E que continua em muitos outros lado, sendo que um deles pode estar disfarçado de ornato, na parte inferior, quase rente ao chão – claro! – na parte central da mesa de altar do imenso retábulo de Nossa Senhora do Rosário, em Viana do Castelo, na igreja do convento de S. Domingos. E que terminará neste pequeno retábulo desta capela dos Monges. De 1744 (?) a 1768, do palácio arcebispal a esta capela maravilhosa vão 24 anos, vai a vida de André Soares. E sempre este enrolamento serviu de início, de ponto de partida para uma obra maior.

Vinte e quatro anos em que André se desdobrará, em que ele dirá sim a todos os pedidos que lhe foram aparecendo, fossem obras que teriam que forçosamente ter um desenho simples, como é o caso do conjunto de talha que desenhou para a capela de S. Miguel-o-Anjo, uma das capelas mais simbólicas da cidade, porque era nela que os arcebispos despiam a roupa de viagem que traziam desde Lisboa e mudavam para os trajes mais ricos e cerimoniais. É que logo de seguida, daí a meia dúzia de metros, iriam pegar nas chaves de prata que numa bandeja do mesmo material a vereação da Câmara Municipal lhe entregaria antes de penetrar a Porta Nova, e entrar na sua cidade, na cidade de que eram Senhores: temporais e religiosos.

Apesar desta tremenda importância simbólica, a talha que foi desenhada para esta capela só pôde ser executada seis anos depois daqueles dias em que entregara os seus projectos aos responsáveis da confraria e que, mesmo sendo assim, mesmo tendo havido esta espera que poderemos considerar longa, teve de ser uma obra simples, que custou apenas 203$000 réis, o que parece ser muito dinheiro mas não é porque a obra é extensa, é o retábulo-mor, dois laterais, dois púlpitos, várias sanefas e duas portas, que tudo seria entalhado por um dos dois maiores entalhadores de Braga, Jacinto da Silva.

11 Mosteiro de Tibães

O que é notável é que exactamente naquele mesmo ano de 1756 André Soares tenha aceite desenhar um conjunto tão completo como é o “mar de talha” rococó que é a igreja do mosteiro de Tibães, em que os monges deveriam querer uma obra muito complexa, extremamente complexa, tanto que o valor da empreitada atingiu mais de seis contos de réis, talvez o maior valor alguma vez contratado em uma só empreitada de talha, em Portugal. E também é notável que nesse mesmo ano tenha aceite conceber uma obra tão simples como o foi a talha desta capela de São Miguel-o-Anjo. Duas obras tão contraditórias!!! Poderei enganar-me, mas fico a pensar que o que André queria era que lhe propusessem lugares onde pudesse aplicar a vontade que deveria ter em deixar correr o “lápis” sobre o papel, desenhar obras… e obras, e mais obras…

Essa é, talvez, a razão para a existência de obras que por vezes podem parecer muito díspares, como é o caso das janelas que desenhou em 1755 para a esquina do convento dos Congregados, entre o antigo campo de Santa Ana e a cangosta da Palha. Aquele cunhal, com seis janelas diferentes, quase parece um catálogo, quase parece que se estava a divertir enquanto imaginava novos desenhos para novas janelas. Em nenhum outro local da cidade, em nenhum tempo da História de Braga, vemos uma diversão como esta, em arquitectura, nem mesmo no cunhal da igreja de Santa Cruz.

12 Convento dos Congregados

E esta questão remete-nos de novo para qual seria a capacidade quer da cidade, quer dos seus criadores, entenderem obras deste calibre. Janelas que se destacam pelo volume das suas molduras, volto a dizer sem par na cidade, protegidas que estão por um “mar” de linhas na cornija, 25, algo que também não teve paralelo na cidade e no país.

13 Cornija da esquina do convento dos Congregados

[Curiosamente 25 linhas numa cornija, mais ainda que as que Francesco Borromini, o mago das linhas onduladas e desmultiplicadas e das cornijas, alguma vez usou!!!]

“Mar”, palavra que já utilizo pela segunda vez, a primeira a propósito da imensidão da sua talha na igreja de Tibães, agora aqui nos Congregados, –  onde obrigou os pedreiros a trabalhar a pedra com a mesma fluidez–, no topo do edifício, a caminho do céu…

“Mar” que é sinónimo de abundância, de volume. Volume que foi uma realidade na sua arte, uma constante. E que deveria deixá-lo muito, muito tenso.

Explico: um psicólogo que olhe a sua arte verá que tanto quanto o apego a ornatos vegetais ou a linhas curvas, o que há em André Soares é uma eterna tensão entre fortes volumes e uma imensa fluidez, entre o gosto do tardobarroco e o do rococó, dois estilos que embora se sucedam nada têm a ver entre si, quase apetece dizer que um, o barroco, são os blocos de rijo granito com que foram construídos os edifícios e o outro, o rococó, o ar e o céu em dia claro e com fragância de primavera que envolve esses mesmos edifícios… Se olharmos o retábulo da capela dos “Monges” veremos que ele é fluidez na maneira como a linha (várias vezes dupla) corre, seja a ondulante, em SSS, seja a recta, em contracurvas, linha que que corre com fluidez pela imensidão de espaços abertos, vazados – o que também pode ser entendido como um artifício porque sendo aquele espaço muitíssimo curto, os vazados permitem prolongar o ponto de fuga, fazer parecer que o espaço é um pouco maior.

14 Retábulo da capela dos Monges. Pormenores

Mas porque são vazados permitem-nos, também, sentir com mais força os volumes que tem, como igualmente sugerem as linhas ondulantes. Vazados que estão um pouco por todo o lado, em áreas umas vezes relativamente grandes e que outras vezes não são mais do que pequeníssimos pontos.

E semi-vazados, como que pequenas “grutas”, madeira que é fendida, com “buracos” profundos que, contudo, não a trespassam em toda a sua espessura, como aquela imensa “flor” que se projecta na extremidade do ático sobre o espaço da nave, com uma dimensão monumental, ou no motivo mais leve, mais discreto, na zona central, logo acima da mesa de altar, logo abaixo da abertura do camarim.

Ou mini-vazados, como são os “amendoins”, para utilizar aqui uma palavra que foi cara a Robert Smith e por ele inventada para o estudo da talha de André Soares, André Soares que sendo, tendo, sem dúvida, existido, não seria conhecido se não fosse aquele professor americano lhe ter dado visibilidade. “Amendoins”, pequenas marcas cavadas na madeira do retábulo e que têm uma função em tudo semelhante ao estofado da escultura, faz-nos parecer que a obra tem mais volume!

As contradições foram uma constante em André. A maior foi a dos gostos que imprimiu às duas maiores disciplinas a que se dedicou, a arquitectura e a talha. Como já afirmei noutros textos, depois de uma obra em que o barroco joanino está muito presente, precisamente a primeira, o palácio do arcebispo, logo embarca no delírio da linha, primeiro a do ornato, depois a linha curva.

15 Casa da Câmara

A partir de 1753 prescinde, na arquitectura, do ornato, risca a Casa da Câmara de Braga, quase parecendo que queria fazer uma catarse, esquecer a peça, a Casa de Fresco, que no ano anterior desenhara para os jardins do palácio do seu arcebispo.

16 Casa de Fresco

Depois, continuará com a linha curva, mas por razões que desconhecemos irá colocar em cada uma das suas obras um arremedo de um ornato assimétrico, sendo a peça mais interessante a belíssima fonte que está no adro do Bom Jesus do Monte, logo acima da entrada do elevador, o ornato está a envolver o pequeno bico por onde corre a água, ornato que tem um desenho muito… fluido. É leve o desenho desta fonte, cheia de vazados, que lhe dão uma leveza que contraria o material em que foi feito, o rijo granito, desenho que, se reflectirmos um pouco, veremos que vai preparar o que década e meia mais tarde seria utilizado no retábulo da capela dos Monges.

17 Fonte no Bom Jesus do Monte

Na talha estaria mais próximo dos gostos do rococó. Mais do que a forma, é a enorme profusão de ornatos que se torna notada. Do mesmo jeito que há a parábola sobre o menino contar as areias do mar, pode dizer-se o mesmo sobre a extrema dificuldade em saber quantos foram os ornatos que André utilizou na talha da igreja de Tibães ou no altar de Nossa Senhora do Rosário, em Viana do Castelo, tal a profusão com que “enxameiam” aqueles retábulos, sanefas e molduras. Ornatos que se “colam” a uma arquitectura poderosa, que a transformam, quase diria que a transgridem ao querer escondê-la.

18 Retábulo de Nª Sª do Rosário. Igreja do Convento de S. Domingos

E esse é outro cuidado que terá de estar bem presente sempre que quisermos olhar, entender as obras de André Soares: não havia limites no que fazia, não havia limites nos sentidos que os ornatos, que cada coisa poderia ter. Esse o maior dom dos grandes criadores, para eles não há limites, o que aqui se usou com um sentido, ali pode ter uma função diferente. A realidade não existe, não há uma forma definida, há o momento, o acaso do momento.

Mas estes acasos não impedem, naturalmente, que existam tendências. Uma, por exemplo, é a do desenho que dá aos elementos vegetais, entendendo-se aqui como elementos vegetais os caules e as flores, porque em outros momentos, sobretudo em meados da década de 1750, desenhou muitos ornatos que semelham algas. A partir de 1763, sobretudo a partir do retábulo da capela da Senhora da Agonia, André desenhou flores que deixaram de ser abertas, espessas, volumosas; são antes caules leves, torsos, que parecem velhos, corolas abertas com pétalas deitadas. Será que pressentia que o seu fim não andava longe?

19 Retábulo da Igreja de Nª Sª da Agonia

Podemos escrever palavras como as que vão acima, dizer que praticou um determinado tipo de desenho. Mas mais do que tudo o que nos deve interessar é o tentar perceber o que é que levou André Soares a fazer esse desenho. O mais importante quando se estuda um artista é precisamente isso, perceber o porquê de cada gesto, aqui porque é que desenhou flores, porque é que as flores tinham este desenho e não aquele, porque…

E em André Soares tudo tem um início. Ele não teve uma formação escolar, não frequentou uma escola de arquitectura ou de engenharia, ou de design para se abalançar na arte do retábulo. A sua escola, acredito, foi, tão só, uma curiosidade imensa, foi o ver o que tinha sido feito noutros locais e, depois, reinterpretar. Vejam-se os grandes C que percorrem a sua talha, seja na forma apenas de C, seja em C + C, um colado ao outro, um com o desenho normal, outro com desenho inverso. E com este duplo C, um normal em cima de outro inverso, encontramos outra forma igualmente bela, um S, forma que tem um sentido barroco ainda mais latente, o que em André Soares talvez não tenha sido fruto do acaso.

É um C que pode ser usado como elemento decorativo ou que, associado, pode servir para moldar as paredes laterais de sacrários, como, por exemplo – e mais uma vez – o da capela dos Monges. Mas também são C e S que, por vezes, têm a parte terminal florida pelo que não sabemos se começou aí o seu gosto por flores. C com pontas floridas, uma ideia que vem de pinturas tardo-maneiristas, já de inícios do século XVIII, seja como as que ainda hoje se veem no belo tecto da nave da igreja da Misericórdia de Viana do Castelo, seja no que existiu na capela de S. Geraldo, na Sé de Braga, que os Monumentos Nacionais fizeram desaparecer na campanha de restituição da “pureza” românica da Sé de Braga, porque o antigo, o medieval, lhes merecia mais respeito que o barroco!!! Estas palavras não são minhas, são dos técnicos que serviram a Direcção Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais nas décadas de 1930, 1940, 1950 e 1960. Acreditamos que André Soares pode ter visto um destes tectos e, acaso, ter gostado. Terá sido assim?

Quem é que foi André Soares? Que vinho teria gostado mais de beber nas suas refeições, branco ou tinto? Ou palhete?

20 Arquivo da Capela de S. Miguel o Anjo

Embora a cidade e a região o admirasse, até onde é que a sua arte poderia ter ido se tivesse beneficiado de aprendizagem numa escola exigente, tivesse trabalhado para um público conhecedor, se tivesse a companhia de colegas tão bons quanto ele para dialogar, para questionar ou ser questionado?

Estas e tantas outras perguntas ficarão para sempre sem resposta. É que o seu assento de óbito, ao contrário de muitos outros, é seco, formal, inexpressivo, não nos nada adianta sobre os seus gostos, devoções, religiosidade, vida. Nada nos diz. Nada mesmo.

Mas também não faz mal. Talvez até tenha sido bom ser assim pois ficamos com o espaço aberto e o espirito livre para passear pelas suas linhas, pelas suas formas, pelos seus volumes e, dessa forma, poderemos deixar o nosso olhar e a nossa cabeça, o nosso sentir correr livremente pelas maravilhosas obras que nos legou.

Obrigado, ANDRÉ!

Eduardo Pires de Oliveira, doutorado em História de Arte, investigador integrado do ARTIS / Universidade de Lisboa, prémio José de Figueiredo 1993, da Academia Nacional de Belas Artes, é autor de Braga. Percursos e memórias de granito e ouro (1999), História da Associação Comercial de Braga (2000), Os alvores do Rococó em Guimarães e outros estudos sobre o barroco e o rococó do Minho (2003), Imagens da Ribeira Lima (2003), Estudos sobre André Soares, o rococó e o tardobarroco no Minho e no Norte de Portugal (2 vols. 2017/2018), Minho e Minas Gerais no séc. XVIII (2016), 18 olhares sobre André Soares (coord. 2019) e O Santuário de Nossa Senhora da Boa Morte, Ponte de Lima (2021).

Santuário da Boa Morte, Correlhã, Ponte de Lima

Eduardo Pires de Oliveira

Corro este Minho onde vivo porque sou minhoto. E porque, mais importante ainda, tenho um imenso prazer em nele viver. Vejo o verde, bebo o verde, umas vezes tinto quando a comida é menos verde, bebo o branco quando o prato me apresenta alimentos que pedem esse verde.

Subo montes ou sigo rios sempre no prazer de conhecer mais e mais este meu, este nosso Minho. Minho que muitas vezes vai além Minho, penetra na Galiza, na mesma geologia, na mesma orologia, no mesmo milho, no mesmo alvarinho, no mesmo povo, no mesmo Labrego, tão bem tratado no celebrado Catecismo, já velho de quase século e meio, de 1889.

As lutas pelo poder foram as mesmas, ora em Santiago onde um Geraldes, um bispo com graves, grandes apetências de operador turístico, descobriu e logo vendeu a toda a Europa um corpo de um S. Tiago que atraiu todos os peregrinos que descobriram no túmulo de imediato criado um contraponto ao desejo cada vez mais impossível de uma ida a Jerusalém.

Ora, em Braga cujos cónegos viram logo que os rendimentos da peregrinação se iriam perder, esses homens quiseram atalhar a sua mais do que possível perda imediata e logo descobriram no Próximo Oriente um Santiago, este Interciso, que fizeram colocar em lugar nobre, numa capela da cabeceira da sua Catedral. Mas ou porque um santo era “maior”, era mais apelativo que o outro, ou porque o vendedor de sonhos e de desejos era melhor do que os outros, o Tiago “galego” ganhou ao “bracarense”, apesar de Braga ser naqueles tempos Primaz das Hespanhas e Santiago não. E o Tiago de Braga logo desapareceu, não no passar da fímbria dos tempos, mas sim derrotado por um marketing mais inteligente, muito mais bem montado.

Sonhos e vendas que têm, para mim, um dos exemplos mais simples e mais difuso nas celebradas fitinhas do Senhor do Bonfim que todos os jovens utilizam, quase sempre não sabendo o porquê de o fazer, usando-as porque sim. Um dia, saboreando um acarajé – depois de provar um abará que não me atraiu tanto, talvez por ser mais “macio” – acompanhado das inevitáveis cervejas para retemperar a garganta, perguntei a uma Amiga baiana, a Maria Helena Flexor, que sabia tudo ou quase sobre aquela sua nova cidade (tinha nascido em São Paulo, um dia fora para Salvador) onde vivia há já demasiados anos, o porquê daquelas fitinhas que cingiam os pulsos, e o que mais me interessava, a sua origem.

A resposta foi negativa, não sabia, era uma tradição, que um dia (qual?, quando?) tivera início. Um dia.

Estava então eu longe de saber que aquelas fitinhas poderiam ter origem quiçá neste meu amado Minho, num dos santuários menos falados deste Minho que tem tantos santuários, e que para mim é um dos mais espectaculares, embora pouco mais seja do que uma capela de finais de Seiscentos que a partir de meados do século XX tentou ter um parque à maneira do Bom Jesus do Monte, com uma escadaria, um laguinho, coretos e, desde há alguns, poucos anos, um soberbo parque de merendas, com mesas e mesas a perder de vista mas que mesmo assim não são em número suficiente para receber os ranchos de comensais que não sei se vão ali à Correlhã (Ponte de Lima), pela Senhora da Boa Morte, ou porque sabem que há uma sombra que os acaricia e mesas sem fim onde podem colocar os seus fartos e sempre apetitosos farnéis.

Lembro-me do primeiro dia em que lá fui, numa visita guiada durante um congresso mundial havido em Braga, ideia do já falecido Amigo Luís Moura Sobral (natural de Viseu, fizera o secundário em Braga, a licenciatura e o doutoramento em Lovaina, acabara como professor de História de Arte no Canadá, em Montreal) congresso em que se iria debater a Gesamtkunstwerk, a Obra de Arte Total. Corria o ano de 1995.

Eu estava no meio de um mundo de pessoas oriundas de todo o mundo, do Chile à Polónia, da Checoslováquia ao Perú, Perú cujo representante era curiosamente checo… Brasileiros sem par, quase tantos quanto os portugueses, a par de franceses, alemães, italianos, ingleses e de outros tantos mais países.

A ideia da ida lá era a de ver/sentir o espanto, a dor, um lamento. O que parafraseando Jonh Steinbeck, as primeiras palavras do seu livro mais interessante dos tempos iniciais, o Bairro da Lata, espanto, dor, lamento poderiam exactamente significar a mesma palavra espanto, grito ou maravilha. Ou noutras palavras, as que me parecem mais correctas, um valentíssimo murro nos queixos. Sim, um valentíssimo murro nos queixos! Já lá iremos.

No meio de uma encosta em que algumas lendas se cruzam com vestígios de mineração do tempo dos romanos e com um topónimo sem dúvida belo – monte da Nó –, situa-se uma capela voltada à bela veiga do rio Lima e de onde outrora se podiam ver os contrafortes do Soajo ou os arredores de Viana e um pouco mais longe o azul das águas do Atlântico. Uns dirão, sítio privilegiado. Eu tão somente direi, Minho.

Uma capela grande iniciada em 1695, muito estranhamente com três naves – à maneira das catedrais e de outras igrejas grandes como a matriz da vila, de Ponte de Lima – com um tecto neogótico em madeira, algo que foi corrente naqueles anos na Ribeira Lima, da década de 1720 ou 1730, e que surgiu muito antes do neogótico inglês, portanto, ou do de algumas capelas laterais da celebrada igreja de São Francisco, do Porto. Uma capela grande, dizia, a que o povo, curiosamente, chama mosteiro, embora nunca ali tenha havido qualquer vestígio de vivências de frades ou de freiras; como também chamam mosteiro à igreja velha de São Bento da Porta Aberta!

Uma capela onde se entra e perante o que os nossos olhos veem logo nos vêm à memória as estranhíssimas palavras de Pinho Leal – ou de quem para ele escreveu sobre este lugar:

Entra-se na capela e tem-se medo. Repito: Entra-se na capela e tem-se medo!!!

Eu não tive medo naquele ano de 1995, naquela minha primeira visita, porque tínhamos ido em dois autocarros apinhados de gente, umas 80 pessoas. Mas muito recentemente, num dia em que estava a falar com a Presidente da Junta de Freguesia, entrou no seu gabinete um colega de outra freguesia próxima para lhe pedir o livro acabado de sair, no mês anterior, sobre o santuário. E ao ver a foto que preenche a capa, ele disse logo: quando em miúdos vínhamos à Senhora, eu tinha sempre medo ao entrar na igreja. Só o senhor, perguntei-lhe eu. Não, respondeu, todos os rapazes, todos os que vínhamos. E acrescentou, aqueles santos metiam-me medo. Um medo dos diabos!

Aqueles santos metem medo! Eu já tinha ficado intrigado com estas palavras que tinha lido no estudo que Flávio Gonçalves publicara em 1977 na revista “Bracara Augusta”.

Não tive medo. E não tive apenas porque estava ali no meio de muita gente uns de conhecimento recente, outros velhos amigos. Não tive medo porque o meu olhar, a minha atitude foi sobretudo de um imenso, de um infinito espanto.

Espanto por ver uma capela de três naves num sítio tão ermo. Espanto por ver numa mesma capela um tratamento duplo ao mistério da morte, no masculino e no feminino, algo que não conheço em nenhum outro local deste país.

A morte de Cristo no piso térreo, patente num excelente conjunto de imagens lavradas de forma clássica por uma mão excelente em que tanto ficamos presos às expressões fortemente dolorosas – mas com o seu quê de tradicionais – de Maria e das santas mulheres que a acompanham, de Nicodemos e de José de Arimateia.

Ou a morte, perdão, o Trânsito, de Maria, no andar superior, uma Maria deitada, rodeada, em semicírculo, pelos apóstolos do seu Filho, no conjunto mais expressionista da História de Arte portuguesa, mas expressionista de 1719 e não daquela corrente que surgiu entre nós nos finais da década de 1920 e na de 1930.

(Lembro-me bem da vez que lá levei o pintor surrealista Cruzeiro Seixas e lhe disse que iria ver uma obra expressionista de 1719 e sem par na nossa arte. Ele olhou-me, melhor, mediu-me longamente de cima a baixo e os seus olhos, que não enganavam ninguém, chamaram-me louco. Depois de uma viagem sem palavras, ao chegarmos a Braga, na esplanada onde bebíamos uma água talvez para refrescar emoções demasiado fortes, disse-me: afinal não estava louco… tinha razão no que me disse; nunca vi, nunca verei nada igual!)

Como disse, as imagens dos apóstolos estão em semicírculo. Mas para o conjunto ser mais expressivo umas, as das pontas, estão ajoelhadas sobre terra, perdão, sobre a madeira. As outras, estão colocadas em plintos que vão crescendo conforme nos vamos aproximando das figuras centrais. É impossível fazer-se uma mais expressiva colocação de actores, encontrar um sentido, maior teatralidade. Até porque as imagens, todas as imagens, todas com um tamanho maior do que o da realidade, só expressam um sentimento, um terrível sentimento, dor. Pouco antes tinham perdido o seu chefe, Cristo, agora iam ficar sem a outra figura chave do seu grupo, daquele grupo que expressava ideias revolucionárias, mas de uma forma doce, Maria.

Naqueles homens não havia um centímetro quadrado do seu ser, dos seus braços, dos seus dedos, dos seus olhos, das suas bocas que não exprimisse um horror infindo, uma dor infinda por mais esta perda irremediável que estava quase para acontecer. Perda, dor que se veem na torção dos seus corpos, numa quase dança, dança de movimentos parados, suspensos, em que a torsão dos corpos se conjuga perfeitamente com o movimento das mãos, o rito das bocas, o carregado dos olhos, o encrespado dos cabelos…

Prefiro, porém, repetir aqui o que já escrevi noutro local:

Globalmente, podemos dizer que há uma forte diferença entre as cabeças e os corpos. Apesar de terem de ser apresentadas com medidas superiores ao natural – como era corrente na época nos grupos dos passos –, apesar de terem que ostentar um rito duríssimo que a pintura minuciosa dos dentes amplia, há aqui cabeças bastante boas, dignas mesmo de um bom mestre. Estão neste caso a de São Pedro, com um ar profundamente pensativo, como que duvidando do que ali estava a acontecer, a de São Mateus, a de São João, e a de São Simão.

Os corpos apenas interessavam pelo aspecto gigantesco que davam às imagens ou pelo quanto poderiam ajudar a transmitir uma mensagem ainda mais expressiva. Daí a torção incrível do corpo de São Paulo, quase em forma de X, com o braço direito muito levantado, com o modelado das vestes desse braço a sugerir uma maior vitalidade ao gesto prolongado até ao infinito pelos finíssimos dedos e o ondulado ostensivamente grosseiro dos cabelos, a chamar a atenção não para a sua cabeça, mas para a direcção do olhar.

Olhar que atinge o ponto maior de contrição em São Tomé, que quase parece estar mais arrependido do seu gesto de dúvida do que propriamente da morte do seu Mestre! Aqui são os olhos, estrategicamente colocados em planos diferentes, o olho direito semicerrado, o juntar dos cabelos no início da cana do nariz e um pouco caídos sobre o lado direito, o que ajuda à sensação daquele olho estar contrito. Os cabelos não são ondulantes como os de Paulo, nem poderiam ser porque aqui tudo se passa ao contrário. Nesta imagem, o sentimento não se dirige para o alto, mas para o chão, ou seja, para dentro de si mesmo. Essa a razão por que a barba, embora revolta, está mais vertical. As mãos crispadas sobre si não transmitem apenas a dor que o trespassa ou algum resto de dúvida sobre os motivos que o levaram a ter aquela atitude de descrença. As mãos, porque colocadas num registo horizontal, são aparentemente um elemento um pouco dissonante; mas a verdade é que harmonizam todas aquelas linhas de forte tensão e não deixam que a figura se esvaia, quase parecendo que o seu olhar, que a sua dor, se concentra nelas.

O discípulo querido, São João, que fecha o conjunto do lado oposto ao de Pedro, tem uma cabeça de grande finura; semi-ajoelhado, tem um olhar perdido de dor. São Simão está em posição quase oficiante. Mais do que pela sua calvície, é notado pela sua cabeça sisuda e pela mão esquerda, muito nervosa; o seu corpo e roupagem apresentam uma qualidade de tratamento que não tem qualquer paralelo com os demais.

A imagem de São Tiago Maior aproxima-se muito da de Santo André, com o mesmo sentido de mãos, mas com um olhar mais frontal. São Bartolomeu é, entre as figuras de carácter mais popular, a que é apresentada com maior naturalidade. A sua cabeça faz lembrar imenso a de Nicodemos, do grupo da Lamentação de Cristo. É talvez a figura que se encontra em pior estado de conservação, com uma lona pintada a esconder a madeira fortemente corroída do braço esquerdo.

Santo André recebeu uma cabeça disforme que amplifica a incidência do seu olhar veemente e muito dolorido, mas dissonante do gesticular das mãos. São Tiago Menor tem uma cabeça em tudo semelhante à de Santo André, mas o seu olhar está muito mais cheio de dor, não querendo encarar a dura realidade que se abateu sobre ele e os seus companheiros.

São Filipe parece estar a tentar chamar os seus companheiros com gestos muito amplos. O seu corpo muito esguio é contrabalançado pela ampla aba da mão esquerda e pelos fortíssimos panejamentos que se cruzam em forma de X na zona da cintura, quase que segurando a sua figura extremamente esguia.

Grosso modo, os corpos são fortes, modulados apenas grosseiramente, no que ajudam ao espectáculo que ali estava em cena, a transmitir uma maior tensão, um terror mais veemente.

Os rostos são afilados, em forma de V, com barbas fortes e cabelos em cachos. Mas as roupagens têm interessantes modulações, foram desenhadas com cuidado, com um saber que nem todos teriam capacidade de igualar. As peças valem cada uma por si, mas o conjunto é de uma grandiosidade única, aterradora, apesar de terem saído de diferentes mãos.

(O Santuário de Nossa Senhora da Boa Morte. Correlhã – Ponte de Lima. Ponte de Lima. Câmara Municipal. 2021)

E não posso deixar de trazer aqui a lembrança da memória da conversa que tive naquele ano de 1995 com os dois colegas do Museu Nacional de Escultura, sintomaticamente situado não na capital Madrid, mas sim em Valladolid, a 190 quilómetros de distância: nós não temos nada igual. Nós não temos nada igual. Isto não tem paralelo!

E tudo isto, ambas estas mortes, no masculino e no feminino, estão colocadas numa estrutura que também é sem paralelo em Portugal, não num retábulo, mas sim numa espécie de dossel em que o Cristo morto está no piso térreo e a Maria preparada para o Trânsito está no tabuleiro superior, coberta por um céu ovalado repleto de nuvens e de anjos, lavrado em 1719 por um entalhador bracarense, Francisco Pereira de Castro.

Outras palavras que não as minhas de homem maravilhado com este local podem ser colhidas noutras mão, agora as escritas por Vítor Serrão no seu blog, dedicadas ao livro que saiu em 2021, a 30 de Julho, no dia da romaria, romaria que nesse ano foi amordaçada pela pandemia, o que de maneira impediu que a capela estivesse cheia:

Fundado em 1695, o Santuário da Senhora da Boa Morte na Correlhã, em sítio altaneiro de sabor hierofânico na encosta da Serra da Nó, dominante sobre a veiga do Lima, guarda um dos mais impactantes conjuntos de escultura devocional portuguesa do século XVIII. A obra, já aliás destacada na sua força artística em estudos de Ernesto de Sousa (1973) e de Flávio Gonçalves (1977) — ambos muito relevantes, devo dizer, para rever as reservas juvenis de tantos, como eu, face à escultura e talha barrocas… — impõe visita demorada por causa desse acervo de imaginária que, em contexto de Barroco rural, surge dotado de tal força expressiva…

Neste livro em que se assentam novos saberes (e que em qualquer ‘certificação de méritos científicos’ que fosse justa, isenta e objectivas estaria sempre em lugar de destaque), Eduardo Pires de Oliveira afirma que a escultura do Santuário tem forçosamente de «figurar definitivamente na lista das mais estranhas e excepcionais peças do Barroco português e, como tal, em todos os manuais de História de Arte Portuguesa».

O que se sabe hoje a partir dos saberes aduzidos por este livro sobre a arte do santuário atesta a importância do caríssimo retábulo entalhado em 1719 pelo mestre bracarense Francisco Pereira de Castro — retábulo este que é sobretudo um grande dossel abrigando o grupo escultórico da Morte da Virgem –, a policromia e estofo das esculturas dos Apóstolos, em 1722, por João Coelho de Araújo e João Fagundes, a obra dos altares colaterais feitos em 1741 por outro entalhador famoso de Braga, Jacinto da Silva, uma intervenção do pintor Manuel Furtado de Mendonça no grupo da ‘Deposição no Túmulo‘, entre outras referências.

Persiste o mistério de quem era este prodigioso MESTRE IMAGINÁRIO, assim citado, sem nomeação expressa, nas contas do Santuário, e que já Ernesto de Sousa, extasiado pela cabeça de São Pedro e certos ‘orientalismos’ de lavor nessa e em outras figuras do apostolado, chegou a comparar como um antecedente do genial António Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que atingirá mais tarde em Congonhas do Campo (Minas Gerais) o áspide do ‘pathos’ escultórico do Barroco… Aliás, Eduardo Pires Oliveira aventa os nomes de Marceliano de Araújo, de Braga, e Manuel Gomes, de Arcos de Valdevez, como escultores coetâneos deste mestre da Correlhã e, também, sublimes lavrantes da madeira, mas as diferenças de estilo parecem consideráveis — pelo que este mistério vai prosseguir, sem que daí decorra nenhuma menorização das esculturas do Santuário da Boa Morte, às quais o anonimato nada retira de sublime.

Escrevi eu logo no início deste texto: Sonhos e vendas que têm, para mim, um dos exemplos mais simples e mais difuso nas celebradas fitinhas do Senhor do Bonfim que todos os jovens utilizam, quase sempre não sabendo o porquê, usando-as porque sim.

Fitinhas que, quem sabe (?), poderão ter tido início aqui neste santuário da Boa Morte pois sabe-se da grande ligação que desde o século XVI o Minho tinha com o Nordeste brasileiro (Viana do Castelo era, naqueles tempos, o porto privilegiado na recepção do açúcar que vinha do recôncavo baiano). Salvador que foi um dos portos de chegada, no séc. XVIII, para o infindo número de minhotos que procuravam aceder ao eldorado brasileiro, Minas Gerais, onde procuravam a hipótese de uma vida melhor do que no seu Minho natal nunca em dia algum poderiam ter.

Fitinhas que já desde o ano económico de 1720/1721 eram, com autorização da confraria residente na capela, colocadas à venda (mas desde quando?) nas tendas dos vendedores ambulantes que estadeavam no terreiro nos dias da romaria de Nossa Senhora da Boa Morte… Vejam-se alguns textos extraídos dos livros velhos da Confraria:

… por vir notícia da mesa que os tendeiros traziam a vender medidas com o título de Nossa Senhora da Boa Morte para as venderem ocultamente estando esta Irmandade desde o tempo de sua erecção na posse antiquíssima de só ela as mandar fazer e vender para ajuda e veneração da mesma Senhora,

porém, sem embargo de que se deitou bando por ordem do juiz ordinário deste Couto a requerimento dos oficiais desta Irmandade para que os ditos tendeiros nenhum vendessem as ditas medidas com a pena de se lhe tomarem e embargarem, ponderando eles oficiais também já terem feito gastos com as

ditas medidas e não serem sabedores mais cedo da dita proibição, e por virem a esta mesa suplicar que ao menos por esta vez se lhes concedesse licença para as venderem e que nunca mais tornariam em outros anos, por esta vez se lhes concedesse licença para as venderem e que nunca mais tornariam em outros anos a vendê-las, com efeito se lhes concedeu licença por esta vez somente…

[Arquivo Municipal. Ponte de Lima – Livro de actas da Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, Correlhã, Ponte de Lima. 1754-1799], fls. 5v-6. Acta da sessão da Mesa de 25 de Julho de 1758]

ou

D para se comprar 1$000 réis de fitas para medidas de Nossa Senhora (1720/1721)

…………………..

Renderam as fitas que se venderam na igreja 1$900 (1733-1734)

…………………..

Despesa com as fitas para as medidas que se deram na romagem a quem trazia as esmolas e para se venderem mais 6$130 (1749-1750) [Arquivo Municipal. Ponte de Lima – Livro das contas da receita e da despesa da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, 1719 (14 de Julho) – 1750 / 1751, fls. 9-10v; 74-75v; 85-87v]

Espero que o leitor não se fique apenas por este texto, só desejo que as palavras e as imagens o seduzam e queira ir ali à Correlhã pois só assim poderá emergir na real, na extraordinária singularidade de todo este conjunto único, e sobretudo nas emoções que aquele grupo de homens sem par provocam, que metem medo a quem entra.

Homens que gostaria bem de um dia os ver num espaço muito amplo, muito negro, com uma coreografia de luzes sabiamente a eles dirigidas, de forma a ainda mais realçar o bailado de todos os sentimentos que exprimem.

Oxalá um dia o sonho possa ser vida.

Fotografias de Amândio Sousa Vieira

O riso da velha grávida

Este texto, porventura demasiado extenso, corresponde a um dos capítulos do livro A Arte na Morte, em teimosa revisão desde 2017. Trata-se de uma versão renovada e consideravelmente aumentada de um artigo homónimo publicado no blogue Tendências do Imaginário em 13 de março de 2016 (O Riso da velha grávida 2016). Agradecem-se críticas e sugestões! Pelo ritmo, chegarão a tempo.

***

Figura 1. Hieronymus Bosch. As Tentações de Santo Antão. Tríptico, c. 1500. Museu Nacional de Arte Antiga.

No canto inferior esquerdo do painel central do Tríptico As Tentações de Santo Antão (c. 1500), Hieronymus Bosch introduz uma criatura deveras complexa e estranha: uma velha, montada num rato. A velha é um ser híbrido: da cabeça cresce uma árvore e os braços são ramos; o corpo termina em cauda. A velha segura nos braços um bebé enfaixado. Naquele tempo, era prática enfaixar os recém-nascidos. Assim é retratado o menino Jesus no presépio já no século IV (Figura 3) e ainda no século XVII (Figura 4).

Contemplamos uma velha na antecâmara da morte que segura, encostada ao ventre, uma criança. Extrapolando, reconhece-se o tópico da morte que alberga a vida, tópico amplamente estudado por Mikhaïl Bakhtin. Esta figura convoca ainda, através do hibridismo da velha, os três reinos da vida: o humano, o animal e o vegetal. O conjunto, cósmico, alude ao ciclo natural e contrapõe verticalmente o telúrico, o rato que evolui num líquido lamacento, ao aéreo, a árvore que demanda o céu.

Na Grécia, em particular na Beócia, descobriram-se várias estatuetas de terracota que, datadas por volta do século IV aC, podem ser, de algum modo, consideradas antepassadas da velha de Hieronymus Bosch. Das figuras 5 a 7, destaco a última, da coleção do British Museum, pelo seu dinamismo e exposição comunicativa, significados pela posição, boca aberta e dobras da roupa, expressivas do movimento e da tensão dos contrários. Parece falar, cantar ou rir animadamente enquanto cuida da criança.

Figura 7 Velha ama com bebé. Beócia. C.330-300 a.C. British Museum.

Entre a criança ao colo e a gravidez vai apenas um passo no tempo. Um passo atrás que desenha uma ligação ainda mais íntima entre a vida e a morte.

“Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: É a morte prenhe, a morte que dá à luz” (Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, São Paulo, HUCITEC, 1987, pp. 22-23).

Só de as imaginar, estas pequenas estatuetas de terracota provenientes de Kertch, na Crimeia, fascinam. Há anos que as procuro. Mas se a Internet é pródiga quando o tema de pesquisa é abrangente, costuma mostrar-se somítica quando este é deveras específico. Não obstante, alguns autores (e.g. Katia Vanessa Tarantini Silvestri, Carnavalização como transgrediência da multidão, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos, para a obtenção do Título de Doutora em Linguística, São Carlos, 2014, pp, 134-135) contemplam uma estatueta que condiz com as velhas grávidas de Mikhail Bakhtin: uma mulher, em pé, aparentemente idosa e grávida (Figura 8). Provém de Kertch, contanto se encontre no Museu do Louvre, em Paris, e não no Museu L’Ermitage, em São Petersburgo. Cada vez que observo esta “velha grávida” convenço-me que é precursora da Gioconda: não consigo descortinar se está ou não a rir.
Não muito longe de Kertch, na região de Beócia, na Grécia, foi descoberta uma estatueta com uma mulher, agora sentada, numa postura semelhante à da velha ama com bebé da figura 7: idosa, obesa e, com boa vontade interpretativa, grávida e risonha (Figura 9). Também não está no L’Ermitage, mas no British Museum. Condiz com as figuras de terracota de Mikhail Bakhtin. Convergem, inclusivamente, na data: por volta do século IV aC).
Antes de prosseguir este rosário de imagens com velhas com crianças, ao colo ou no ventre, ilustrativas do ciclo da vida e da morte, importa proceder a um desvio pela mitologia grega. Produzida há mais de 4500 anos, a “Vénus Adormecida”, do Museu Nacional de Arqueologia em Valetta (Malta), servir-nos-á como chave ou introito. Dorme, redonda, como a Terra Mãe, à espera da regeneração (Figura 10). Um sono de Inverno com sonho de verão. Batizaram-na Vénus (Afrodite, na mitologia grega). Parece aguardar, durante o inverno, o belo Adónis.

Figura 10 Vénus adormecida. Museu de Arqueologia. Valletta, Malta. 4000-2500 aC

Afrodite apaixonou-se por Adónis ainda este era criança. Entregou-o à guarda de Perséfone, que, por seu turno, também se toma de amores por ele. Ambas reclamam Adónis. Zeus, chamado a pronunciar-se, é salomónico. Divide o ano em três partes iguais: durante os meses de inverno em que as sementes estão soterradas, Adónis vive no inferno com Perséfone; na primavera, quando as sementes germinam, Adónis vive com Afrodite; os meses restantes ficam à escolha de Adónis, que opta por Afrodite. Adónis é o deus da morte e da ressurreição, um deus ctónico, associado à vegetação. Durante a sua estadia no submundo, a terra é estéril. A partir da Primavera, a terra torna-se fértil. A vida enterra a vida, a morte dá à luz a vida. Sem tréguas, nem dramas. Uma tragédia.
A própria Perséfone, igualmente bela, teve um destino similar, embora com enredo e protagonistas distintos.
Divertia-se Perséfone, filha de Deméter, por entre as flores quando ao aproximar-se de um narciso se abriu uma fenda no solo através da qual Hades a raptou e levou para o submundo. Ignorando o sucedido, Deméter, deusa associada à maternidade, a tudo que envolve a plantação, a nutrição e o crescimento, mas também à morte, à destruição e à transformação, procura a filha, sem comer, dormir ou banhar-se, durante nove dias e nove noites. Informada do rapto por Hélio, deus do Sol, assim como da conivência de Zeus, retira-se do monte Olimpo e, disfarçada de velha, divaga, inconformada, por cidades e campos. Em Elêusis, manda construir um templo em sua honra, onde permanece isolada e inativa. Sem a sua ação, nada germina, tudo permanece estéril. A miséria ameaça destruir a humanidade, privando os deuses das suas ofertas e sacrifícios. Após várias tentativas infrutíferas para demover Deméter, Zeus acaba por ordenar a Hades a libertação de Perséfone. Antes da partida, Hades oferece sementes de romã a Perséfone que as saboreou. Durante o reencontro, Deméter pergunta a Perséfone se tinha comido alguma coisa no submundo. Fatalmente! Por causa das sementes de romã, Perséfone resulta condenada a ser, durante o
inverno. rainha do submundo junto a Hades [sina semelhante à de Adónis]. Deméter devolve a fertilidade à terra e promove os Mistérios Elêusianos, festival durante o qual as pessoas “adquirem sabedoria para viver com alegria e morrer sem medo da morte” (remeto a análise do mito de Perséfone para o estudo de Camila Golegã e Luciana Romano Hernandes: “Deméter e Perséfone – A inexorabilidade cíclica da natureza” (https://offlattes.com/archives/author/camila-golega; acedido em 28.08.2022). Retenho, contudo, um pormenor: as sementes de romã. Até as sementes podem desempenhar um papel negativo, neste caso, a condenação de Perséfone. Símbolo por excelência da fecundidade, as sementes também padecem da duplicidade do devir. Morrem e renascem duas vezes: enterradas, para dar o trigo; queimadas para dar o pão. Pela terra e pelo fogo.
Mas nem a intensidade semiótica da semente nem o ciclo cósmico justificam o desvio pela mitologia grega. Este faculta, na verdade , o acesso a uma figura mítica tão pouco conhecida quanto prodigiosa: Baubo, “um arquétipo da vida, da morte e da fertilidade”, “deusa pagã grega da alegria e obscenidade, com a forma de uma velha gorda que exibe publicamente os genitais” (Figuras 11 a 13), mencionada, entre outros, por Goethe, em “Noite de Walpurgis” do Fausto (1808), e Nietzsche, na Introdução de A Gaia Ciência (1882).

“Imagens com mulheres grávidas e mulheres com as pernas abertas passaram a ser representadas em terracotas de estilo Tanagra no Egito a partir do período ptolemaico [iniciado em 323 a. C. Algumas terracotas apresentavam os atributos de Ísis-Afrodite e possuíam um corpo gracioso. Outras tinham escasso ou nenhum atributo, um corpo rechonchudo e pernas abertas para exibir os genitais. A estas terracotas estranhas costuma chamar-se Baubo, o nome de uma velha senhora que mostrou os seus órgãos genitais a Deméter para distraí-la da dor provocada pela perda de Perséfone. O nome Baubo aparece nos Fragmentos órficos de Clemente de Alexandria e Arnóbio que descrevem o episódio do rapto de Perséfone. Baubo também era alvo de culto, em conjunto com Deméter, em várias áreas do mundo grego, como demonstram diversas inscrições e estatuetas. O motivo para atribuir a designação “terracotas Baubo” a estas terracotas egípcias decorre da postura assumida de exposição dos genitais tal como Baubo fez com Deméter. Um outro motivo prende-se ainda com uma outra relação clara de algumas dessas terracotas egípcias com Deméter: existem vários exemplares com a imagem egípcia de Baubo sentada num javali [Figura info], gesto que lembra os javalis selvagens sacrificados durante o festival grego da Thesmophoria. Tanto os rituais da Elêusis como a Thesmophoria eram celebrados na região de Elêusis em Alexandria, com provável recurso a estas terracotas nestes contextos (Nifosi, Ada (2021) The Throw of Isis-Aphrodite: a rare decorated knucklebone from the Metropolitan Museum of New York. The Journal of Egyptian Archaeology. Acedido em 28.08.2022).

Existem várias versões do episódio de Baubo, algumas mais circunstanciadas e excêntricas como a comentada por Sigmund Freud num pequeno texto de 1916 (“Parallèles mythologiques à une représentation obsessionnelle plastique”, Essais de psychanalyse appliquée, Paris, Éditions Gallimard, 1971, pp. 83-85).

“Baubo é a esposa mítica de Disaule, bem como a empregada/ama que acolhe Deméter em Elêusis – o umbigo esotérico da Europa – quando esta procura desesperadamente a sua filha Perséfone. Recusando-se Deméter a tocar na comida, Baubo fá-la rir levantando o vestido e mostrando obscenamente os seus órgãos genitais. Iacchus, seu filho, também é reputado ter estado presente nesta cena, e ter aplaudido descontroladamente – o que provoca o riso de Deméter e enfatiza o lado cômico do episódio. Em algumas versões da história, diz-se que Iacchus rastejou sob as saias, de tal modo que seu rosto apareceu no lugar dos genitais quando Baubo exibiu suas partes púdicas, o que pode ser lido como uma alusão à fertilidade de Baubo – ela pode estar grávida – e, portanto, como um sinal de esperança para a fecundidade muito mais significativa que a própria Deméter tem que reencontrar, a fim de resgatar o mundo do inverno eterno” (Michele Cometa, “The Survival of Ancient Monsters: Freud and Baubo” in Raul Calzoni / Greta Perletti (eds.), Monstrous Anatomies. Literary and Scientific Imagination in Britain and Germany during the Long Nineteenth Century, Göttingen, V&R Unipress, 2015, pp. 297-310).

Baubo oferece-se como uma súmula de todas as situações, ações e propriedade até agora consideradas: é uma velha, grávida e com criança, pujante, cuja sexualidade desbragada provoca alívio e riso. Integra uma mistura de ações e atributos, um concentrado semiótico capaz de rivalizar com a “a velha com bebé ao colo” de Hieronymus Bosch. Condensa luto, fecundidade e jovialidade numa fusão apotropaica transbordante de sexualidade e humor. Os opostos mais do que se alternar ou de se (su)ceder uns aos outros coexistem. Prevalece a conjunção em detrimento da disjunção. Baubo é, simultaneamente, morte e vida, Eros e Thanatos, ordem e caos, tragédia e comédia, luto e esperança. Esta leitura corresponde, naturalmente, a uma interpretação, uma camada subjetiva de sentido que reveste Baubo. Tomando o presente texto como um todo, como um retrato, Baubo arrisca, com a sua turbulência, oferecer-se como um punctum, “o detalhe que preenche toda a fotografia” (Roland Barthes, A Câmara Clara, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 73).

Figura 18 James Ensor. A morte a as máscaras. 1927

Chegada a navegação a esta “bacia semântica”, terão os nossos olhos visto o que de essencial há para ver? Saturou-se o imaginário? A modernidade e a pós-modernidade pouca ou nenhuma originalidade acrescentam, limitando-se a repetir e reciclar? Convenha-se que, mínimas ou não, algumas alterações e inovações se verificaram.

Figura 19 Mason Williams. Esqueleto tatuado e bebé

A morte passa a ser menos disfarçada ou subentendida. A velha tende a ser substituída pela própria morte ou, mais precisamente, pela sua principal imagem-signo: o esqueleto. Volvidos quatro séculos da conclusão das Tentações de Santo Antão, no quadro A Morte e as Máscaras, datado de 1927, de James Ensor, destaca-se, entre os mascarados, um recém-nascido segurado ao colo não de uma velha mas de um esqueleto, a única figura sem máscara (Figura 18). Ressurge este tópico, por exemplo, nos motivos para tatuagem criados por Mason Williams (Figura 19).

Figura 20 Dança macabra. Impressa por Antoine Vérard. C. 1491-1492. Fonte Biblioteca Nacional de França

Mas esta diferença não deve ser sobrevalorizada. Inúmeros esqueletos, com ou sem carne, passeiam-se pelas pinturas e gravuras medievais e renascentistas. E fazem praticamente tudo o que é caraterístico de um ser humano (ver Vida de Esqueleto II. O Espelho: https://tendimag.com/2017/09/30/vida-de-esqueleto-ii-o-espelho/). Não é, aliás, de descartar a possível existência, que admito desconhecer, de uma qualquer imagem com um esqueleto a dar colo a uma criança. Registe-se que alguns esqueletos das danças macabras parecem tentados a embalar um berço. Por exemplo, na gravura da dança da morte mais antiga de que se tem conhecimento situada no cemitério dos Santos Inocentes, em Paris (Figura 20).

Figura 21 George Grosz. Estou feliz por estar de volta. 1943. Fonte Wikioo.org

Cumpre a Georg Grosz, pintor da desgraça humana do século XX, patentear a principal singularidade da nossa era. Na pintura Estou feliz por estar de volta, de 1943, um esqueleto andrajoso rasga a carne ensanguentada de um ventre rumo à luz, ao exterior, ao mundo (Figura 21). Eis a nova marca dos dois séculos mais recentes, modernos ou pós-modernos. Já não é só a morte que apaga a vida, a própria vida dá à luz a morte. No novo imaginário, muda a física, a geografia, e a orgânica, a progenitura, da relação entre a vida e a morte, este mundo e o outro. Nos séculos antigos, se o diabo andava, omnipresente, à solta, o inferno situava-se no Além, no outro mundo. Agora, o inferno está entre nós, “o inferno são os outros” (Jean-Paul Sartre, Huis Clos, 1944) ou, mais lucidamente, “somos nós”. Numa “sociedade mortífera”, a própria vida se encarrega de gerar a morte.

Autor: Albertino Gonçalves