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Admirável mundo! Novo ou velho?

Luís Cunha

Metropolis, de Fritz Lang.1927

No espaço de poucos dias o mundo agitou-se com dois acontecimentos de forte impacto mediático: a “implosão catastrófica” de um brinquedo sofisticado usado para mergulhar nas profundezas do oceano e a ameaça militar de um exército mercenário a um estado soberano que é também uma potência nuclear. Dois acontecimentos de natureza diferente, nada havendo que permita associá-los diretamente. Há, no entanto, uma conexão entre eles, já que ambos sinalizam um mundo que está a mudar, ou que talvez já mudado de forma definitiva.

A ameaça de Prigozhin sobre Moscovo parece o eco de um velho mundo, a banalidade de um passado recuperado no presente e lançando a sua sombra para o futuro. No século XV, quando as estruturas feudais europeias iam cedendo para dar lugar a um novo mundo, a contratação de mercenários por reis, príncipes e até senhores feudais tornara-se uma prática frequente. Todos se batiam por manter ou reforçar os seus poderes e direitos. Os reis pretendiam assegurar a vassalagem de príncipes e senhores feudais ao mesmo tempo que estes recorriam ao apoio militar profissional para garantir uma autonomia que lhes permitisse ensacar o mais possível através dos tributos pagos pelos camponeses. Quando os contratantes deixavam de ter meios de pagamento aos profissionais da guerra, estes rapidamente se viravam contra os camponeses, mas também contra quem os contratara. Mais de 500 anos passados, esta ameaça medieval parece renascer com o líder do grupo Wagner, cuja ação já não visa um senhor feudal escondido no seu castelo, nem sequer uma soberania africana, como aquele grupo já fez, mas uma das grandes potências militares globais.

A analogia não se esgota no problema, estende-se também para a solução. No final do século XV Carlos VII, Rei de França, conseguiu transformar a ameaça mercenária numa vantagem. Contratou alguns daqueles guerreiros a título definitivo, criando as «compagnies d’ordonnance», base para o que viriam a ser os exércitos nacionais. Os estados absolutistas não teriam nascido sem esta «invenção», que foi facilitada também pela emergência de transformações técnicas na arte da guerra, nomeadamente com o desenvolvimento da artilharia, que viria a dar preponderância decisiva à infantaria por sobre a cavalaria. Os velhos senhores feudais, capazes de enfrentar a autoridade real graças aos sólidos muros dos seus castelos e à arte guerreira dos seus cavaleiros, tinham agora que se submeter à vontade de um soberano que se ia tornar absoluto e se apoiava em exércitos de militares profissionais, pagos pelo tesouro nacional e com acesso a um elevado poder de fogo. O que se está a passar na Rússia, e antes se passou na Ucrânia com o Batalhão Azov, tem evidentes semelhanças. Tornados corpos ameaçadores da soberania nacional, decidiu o soberano integrá-los nos exércitos regulares, solução a que Prigozhin parece opor-se. Claro que a superioridade militar da plebe apeada e apoiada por eficaz artilharia por sobre a aristocrática cavalaria não se coloca hoje, mas a tecnologia continua a ser um fator determinante no desenlace de qualquer guerra. Os grupos mercenários, como o Wagner, só conseguem combater eficazmente se tiverem acesso à tecnologia sofisticada, que vai dos drones aos misseis de grande precisão, e esse acesso só pode ser garantido pelos estados. Só? Será mesmo assim, ou estaremos também aqui a assistir a uma das mudanças que estão a transformar o mundo? Na verdade, o desenvolvimento tecnológico não escapa à acelerada privatização do que nos habituámos a ver como bens ou serviços públicos, e também a tecnologia militar entra nessa equação, surgindo como uma peça mais no processo de enfraquecimento generalizados dos estados nacionais.

É neste ponto que faz sentido convocar a aventura marítima do Titan e respetivos nautas. Deixo de lado a questão moral, muito evidente quando comparamos os meios ilimitados disponibilizados para salvar o submarino com a ausência de apoio que permitiria evitar a morte de milhares de emigrantes na travessia do Atlântico. Foco-me num outro aspeto, o do desenvolvimento e condições de acesso a tecnologias de ponta. Filhos da modernidade, fomos ensinados a acreditar que os avanços tecnológicos eram comandados pelos aparelhos estatais e que essa condição orientava esses avanços para o bem comum. É certo que a história da ciência está cheia de invenções fomentadas e aproveitadas pela iniciativa privada, mas a ciência de ponta, fosse a que remetia para a «conquista» do espaço, fosse a que remetia para o uso do nuclear, fosse ainda a que se ligava ao desenvolvimento de tecnologia militar, exigia um esforço financeiro tão gigantesco que apenas os estados estavam em condições de o assegurar. Ainda que recorrendo a uma elevada dose de ingenuidade, foi-nos dito e acreditámos que o progresso passava pelos grandes laboratórios de estado e o que deles saia destinava-se a assegurar que o progresso servia a todos. Os tempos que vivemos já não suportam essa crença ingénua.

O Titan foi apenas a expressão trágica de um fenómeno em crescimento: os avanços tecnológicos de ponta estão a passar para o domínio privado, dando resposta a uma demanda que já nem sequer disfarça ter na base um interesse comum. Nada disso. Do que se trata é de responder ao mercado, evidentemente que a um mercado restrito, a que apenas poucos consumidores acedem, mas a que, em contrapartida, não falta disponibilidade financeira. A «conquista» do espaço deu lugar ao turismo espacial, e até a corrida a Marte parece estar a ser disputada por privados. Visitar o espaço ou o fundo do oceano, como fazem turistas endinheirados, deve levar-nos a olhar o desenvolvimento tecnológico sob um novo prisma, substituindo a crença ingénua que dali resultarão progressos que nos servirão a todos, pela evidência de que a tecnologia está a definir um espaço de confronto que exige de todos nós uma verdadeira cidadania crítica.

Nada havendo que relacione o acidente de um submarino construído para turistas ricos e entediados e aquela espécie de levantamento militar na Rússia, ambos os acontecimentos nos mostram o estado da relação entre soberanias nacionais, que são (ou deviam ser) expressão do interesse comum, e interesses privados, que se contrapõem e contrariam aquelas soberanias. O «monopólio da violência legítima» vai revelando fissuras, já não apenas nos chamados «estados falhados», mas também em potências de primeira ordem, que recorrem a mercenários para fazer o trabalho sujo que querem evitar, correndo o risco, como se vê, de acabar com os «bárbaros» à porta de casa. Por outro lado, os grandes projetos científicos, incluindo as tecnologias de comunicação e a inteligência artificial, estão entregues à iniciativa privada, que não resiste em interferir no regular funcionamento das democracias, como já aconteceu nos EUA e no Brasil.

Este enfraquecimento dos estados deveria deixar felizes aqueles que sempre se opuseram ao seu poder excessivo. No entanto, não estamos a assistir a nenhuma utopia democrática, a nada que confira mais poder ao cidadão comum, a nadinha que contribua para que todos os humanos se aproximem em termos de direitos, deveres e recursos. Bem pelo contrário. A centralização de base estatal cede passo a uma nova casta de senhores feudais – sem cavalo mas com belas frotas de automóveis, aviões, submarinos e foguetões – reduzindo o comum dos mortais a uma nova classe de servos, gradualmente destituída dos direitos que foi conquistando ao longo de muitos anos – direitos políticos, económicos, sociais. Vivemos num tempo em que os novos senhores (hoje da finança como no passado do feudo) têm meios suficientes para desenvolver tecnologia que alimentará os senhores da guerra, mercenários sob contrato, como o Grupo Wagner, de caminho tornando os estados reféns da sua vontade – graças ao dinheiro que emprestam ou não e das armas que ameaçam disparar ou que disparam mesmo.

Robert Walser: o poeta que semeia na neve

Não sou mais do que alguém que escuta e espera, nisso porém sou exímio, pois aprendi a sonhar enquanto espero.

(Robert Walser, Os Imãos Tanner, Trad. Isabel Castro Silva, Lisboa, Relógio d’água, p. 212)

Robert Walser nasce a 15 de Abril de 1878, em Biel, na Suíça. Morre durante um passeio matinal no dia de Natal, em 1956, perto do asilo psiquiátrico onde esteve internado, voluntariamente, e onde se manteve durante uns vinte anos. Escritor solitário e artesanal, pouco reconhecido no seu tempo. Admirado por autores como Franz Kafka, Robert Musil, Walter Benjamin, Elias Canetti, W. G. Sebald, Roberto Calasso e Enrique Vila-Matos. Publicou três romances, nomeadamente “Os Irmãos Tanner”, “O ajudante” e “Jakob von Gunten”. Para além destes, escreveu os seus célebres 526 microgramas (textos minúsculos com uma escrita insondável) que deram origem ao denominado “território do lápis”.

Não há, nos seus textos, quaisquer segredos a serem desvendados; são textos que resguardam a Esfinge ao abismo. O sentido liquidifica-se na sua exaltação ao nada, quer dizer, na sua apologia ao insignificante. E se significado houvesse a descobrir, ele diluísse no corpo do texto como uma pele sulcada de ironia e hidratada por uma linguagem aflorada de ambiguidade que resvala, continuamente, para uma mistificação das certezas mais básicas do ser humano. A sua “proverbial tagarelice” (Sobrado, 2020, p. 15) chega também, muitas vezes, a roçar a elegância de uma garça.

Na introdução do livro de poemas, recentemente publicado em Portugal, intitulado Estou só e fora do Mundo, escreve João Barrento que os escritos de Walser, põem “em cena uma dança de palavras, sem pronunciar qualquer juízo, quando muito uma postura irónica, uma forma de penetração subtil da realidade, numa linguagem do paradoxo que combina a transparência com a ambiguidade” (Barrento, 2022, pp.8-9).

Yann Tiersen – Tempelhof (Recorded at The Eskal)

O olhar perverso, e ferverosamente sarcástico, que Robert Walser traz para os seus escritos, é o que mais admiro nele. As facadas de ironia nos seus textos, que desconcertam o leitor, assemelham-se a “salteadores à beira do caminho, que irrompem armados e retiram ao passeante a sua convicção” (Benjamin, 1992, p. 98). Diz Pedro Sobrado, que são uma retirada estratégica para “se eclipsar do próprio discurso (…) para iludir a ausência de qualquer intencionalidade ou orientação” (Sobrado, 2020, p. 15). Pronunciam a sua renúncia radical pelo amplexo do sentido, revelam a sua indiferença pelas certezas da vida. Walser escreve numa constante contradição, num rasgar e remendar, entrando em labirintos discursivos em que tudo é um continuum de prelúdios que nos devolvem o irreparável e o inexplicável, um estado indefinido do seu pensamento.

Nas obras de Walser, explica Pedro Sobrado, “insinua-se um fluxo informe, o prazer da vagabundagem, a fascinação pelo infinitamente pequeno e insignificante, o gosto em perder-se e não chegar a lado nenhum” (Sobrado, 2020, p. 26).

Walser é ele mesmo uma valsa. Escreve como se dança e se passeia. Os seus escritos e a sua vida são exemplo disso.

Rui Massena – Valsa (live)

Toda a sua escrita e pensamento se afigura decisivamente a um passeio alado e errático. Com os pés no chão, mas com a cabeça a sobrevoar as nuvens.

Ludovico Einaudi – Einaudi: Nuvole Bianche (Live From The Steve Jobs Theatre / 2019)

Sempre desarmante, avesso à elevação, considerando-se ele mesmo “um zero encantador, muito redondo”, Robert Walser, não impõe qualquer sentido, nunca reclama sobre seja o que for, olha para as coisas do mundo apenas com exaltado espanto, sabendo sempre que “Das coisas mais insignificantes / sairão pássaros cantantes / pousados no ramo da tua existência” (Walser, 2022, p. 107).

Benjamin Clementine – I Won’t Complain

Tudo para ele tem a sua significância e esplendor: “o mais ínfimo dos seres vivos, seja uma criança, um cão, um mosquito, uma borboleta, um pardal, um verme, uma flor, um homem, uma casa, uma árvore, uma sebe, um caracol, um rato, uma nuvem, uma montanha, uma folha, ou simplesmente um insignificante pedacito de papel deitado fora” (Walser, 2001, p. 69).

Nos seus textos, Walser enobrece os objectos mais infinitamente inúteis e banais, conferindo-lhe uma dignidade que está para lá da sua inutilidade e inanidade. Diz Schneider: “para Robert Walser, tudo é papel: a casa, a rua, o asilo, os campos, os lagos, a neve, o céu, o rosto da mãe. E mesmo a noite: a noite sem estrelas” (Schneider, 2011, p. 260).

The National – Eucalyptus (Official Video)

Walser é um poeta que cultiva “a arte de fracassar em beleza”; um daqueles escritores que era capaz de fazer falar a madeira ou a pedra mais dura da calçada.

As suas personagens, sem personalidade formada, vivem sempre numa espécie de limbo existencial (Agamben, 1993, p. 14), ora trágico ora aberrante; habitam numa espécie de antecâmara, nessa sala de espera quase a pedirem licença para existirem. As personagens de Walser chegam a ver a luz alva da manhã, mas a muito custo chegam à noite para contemplar a lua e as estrelas.

The National – ‘Light Years’

Considerava-se um “senhor ninguém”, diz que “eu nasci para me perder / num horizonte esquecido” (Walser, 2022, p. 31). Mas eu cá continuo a imaginá-lo a semear na neve flores que sorriem.

Agamben, G. (1993). Do limbo. In A comunidade que vem (pp.13-14). Editorial Presença.

Benjamin, W. (1992). Rua de Sentido único e Infância em Berlim por volta de 1900. Relógio d’água.

Schneider, M. (2011). Dançar com as palavras. In Mortes Imaginárias (pp. 259-263). Livros Cotovia.

Sobrado, P. (2020). Quase nada. Defesa e interpretação de Robert Walser. Edições Húmus.

Walser, R. (2022). Estou só e fora do Mundo. Sr Teste edições.

Walser, R. (2001). O Passeio e outras Histórias. Granito Editores e Livreiros.

A simulação da moral (do blogue Tendências do Imaginário)

Albertino Gonçalves

Giovanni Buonconsiglio. Aristóteles e Fílis. Circa 1500-1515.

«Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube» (Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, 1523).

Manifestam-se cada vez mais frequentes os anúncios que aderem ao formato patente no anúncio russo Born Inclusive, da Naked Heart Foundation. Creio que se inspiram, por um lado, na sofisticação (quase) laboratorial da psicologia experimental e, por outro, na vulgaridade mediática dos “apanhados”. Não duvido que sejam eficientes e convincentes, mas comportam uma característica que me provoca algum ceticismo e renitência. Encenam situações ideais que tendem a afastar o ruído ambiente, as intromissões, eventualmente imprevisíveis, dos efeitos “parasitas”, por outras palavas, da contingência das variáveis e dos fatores que os sábios apelidam “espúrios”. Arrefecem a efervescência da vida, propendem a pintar o mundo a preto e branco: o certo e o errado, o bom e o mau… Uma simplificação sedutora. Convoco a máxima do sofista Protágoras, “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”, e o pensamento de Pascal, a medida do homem é turbulenta, incerta e infinita. Lutar por um mundo melhor não significa caricatura-lo e descolori-lo. A redução maniqueísta e monocromática não me parece uma perspetiva apropriada, não é uma promessa auspiciosa.

Demasiado cínico? Estou em crer que mais vale cínico do que estúpido. “O indivíduo estúpido é o tipo de indivíduo mais perigoso”; “o indivíduo estúpido é mais perigoso do que o bandido; ” “É estúpido aquele que desencadeia um prejuízo para outro indivíduo ou para um grupo de outros indivíduos, embora não tire ele mesmo nenhum benefício e eventualmente até inflija prejuízo a si próprio” (Carlo Cipolla, Allegro ma non tropo, 1988).

Anunciante: Naked Heart Foundation. Título: Born Inclusive. Agência: Marvelous. Direção: Maksim Kolyshev. Rússia, março 2020.

Este comentário é, de algum modo, injusto para com o anúncio de sensibilização Born Inclusive, da Naked Heart Foundation. Trata-se de um exemplar de marketing e publicidade e como tal deve ser avaliado. Carece ser encarado à luz da linguagem do marketing e da publicidade e não de outra linguagem, por exemplo, a linguagem externa da filosofia e da sociologia. Neste sentido, este comentário apresenta-se como uma crítica “bárbara”, uma violência simbólica, na aceção de Pierre Bourdieu. Cai na falácia de impor um sistema de relevâncias, estranho, a outro sistema de relevâncias, original, francamente distinto. Do ponto de vista do marketing e da publicidade, este anúncio, criativo, consistente, pedagógico e eficaz, resulta excelente. Acerta no alvo: a predisposição para a discriminação não nasce connosco, é fruto da socialização primária, da endoculturação. Um pressuposto que vai de encontro a Rousseau (“A natureza faz o homem feliz e bom, mas (…) a sociedade degenera-o e o torna-o miserável”: Dialogues, 1772-1776) e a Durkheim (“A sociedade encontra-se portanto, a cada nova geração, na presença de uma tábua quase rasa sobre a qual é necessário construir a novo custo”: Éducation et sociologie, 1922).

Hieronymus Bosch. Removing the Stone of Stupidity. Detail. 1475-1480.

Acontece que um anúncio, para além de orbitar na esfera do marketing e da publicidade, não deixa de ser um fenómeno social. É composto por raízes (contexto), caule (suportes), ramos (redes e canais), folhas (ações) e sementes (efeitos) sociais. Não se pode escusar a uma leitura filosófica e sociológica, por mais corrosiva e cínica que seja. No que me respeita, não me inibo de ler nas entrelinhas de quaisquer modalidades de comunicação, principalmente aquelas que se são grávidas de consequências, quando não de efeitos perversos subliminares que não passam pelo crivo da consciência e do raciocínio avisados e oportunos.

Albert Camus: sinónimo de liberdade

Daniel Noversa

Albert Camus (1913-1960)

No meio desta algazarra, o escritor já não pode estar à espera de se manter afastado para prosseguir com as reflexões e imagens que lhe são caras. Até à data, mal ou bem, a abstenção foi sempre uma possibilidade na história. (…). A partir do momento em que a própria abstenção é considerada uma escolha, punida ou louvada como tal, o artista, quer queira quer não, está envolvido. Envolvido, parece-me neste caso um termo mais adequado do que comprometido. (…) / Criar, hoje em dia, significa criar perigosamente.
Albert Camus (1937-1958/2022, p. 260-262)

Faz hoje 63 anos. A 4 de Janeiro de 1960, morreria Albert Camus, homem do existencialismo francês, num trágico e inesperado acidente de viação, perto de Sens. Homem de causas e apaixonado pela vida e pela Arte. Um homem que viveu em liberdade e combateu pela liberdade dos outros. Por ter vivido perto, jamais será esquecido por todos aqueles que o admiram. Para esses, a sua obra aparece como uma agradável visita. É a pedra de toque a que voltamos sempre, para reaver riquezas de um pensamento lúcido e profundo e de grande elevação literária.

No seu discurso na entrega do Prémio Nobel da Literatura, em Estocolmo, a 10 de Dezembro de 1957, Camus advoga que os artistas não devem estar só comprometidos, mas também envolvidos com as tarefas difíceis da sua época.

Segundo ele, os artistas deveriam procurar compreendê-la invés de julgá-la. Dar armas em invés de lições. Estar, portanto, ao serviço dos que fazem a história. Mas ao lado daqueles que sofrem e são oprimidos. Camus acreditava que só em liberdade seriamos melhores e que a esperança residia nos artistas, por esses “milhões de solitários cujas acções e obras, dia a dia, negam as fronteiras e as mais vulgares ilusões da história, para fazer brilhar fugazmente a verdade sempre ameaçada que, sobre as suas dores e alegrias, cada um cria por si e para todos” (Camus, 1937-1958/2022, p. 279), recuperando-a, suscitando-a e reanimando-a no devir perpétuo da história.

A vocação dos artistas consistiria, na sua opinião, em combater a mentira e a servidão, resistindo e recusando a opressão, enfim, revoltar-se. Nas suas palavras, “a arte não é um prazer solitário. É um meio para comover o maior número possível de pessoas, oferecendo-lhes uma imagem privilegiada dos sofrimentos e alegrias comuns. Obriga, portanto, o artista a não se isolar; submete-o à verdade mais humilde e mais universal. (…) O artista forja-se nesse contínuo ir e vir entre si e os outros, a meio caminho entre a beleza sem a qual não pode passar e a comunidade da qual não se pode desligar. Razão pela qual os verdadeiros artistas não desprezam nada; obrigam-se a compreender em vez de julgar” (Camus, 1937-1958/2022, p. 256).

A liberdade consiste em poder escolher as suas cadeias, mas cada cadeia que se abre é um novo espaço de liberdade que se conquista. (Albertino Gonçalves)

Camus, A. (2022). Conferências e Discursos. Livros do Brasil.