Tag Archive | Grotesco

Dionísio na Universidade e o sentido de comunidade num mundo às avessas

Terminam amanhã, 10 de maio, as “Monumentais Festas do Enterro da Gata ’24”. Este tipo de rituais estudantis inspiraram-me dois textos: “Dionísio na Universidade: a praxe como rito de passagem” (UMboletim, 1997); e “O sentido de comunidade num mundo às avessas: o imaginário grotesco nas tradições académicas de Braga” (FORUM, 2001). Há, portanto, mais de duas décadas que ando às voltas com o “mundo às avessas” (cf. “A benção escatológica num mundo às avessas – os serviços da tarde na festa de São João de Sobrado”, 2024).

Seguem, em pdf, os artigos “Dionísio na Universidade: a praxe como rito de passagem” (UMboletim, 45. 7 Abril 1997, pág. 1-2); e “O sentido de comunidade num mundo às avessas: o imaginário grotesco nas tradições académicas de Braga” (FORUM 30, Jul-Dez 2001. Pág. 77-91).

A benção escatológica num mundo às avessas – os serviços da tarde na festa de São João de Sobrado

São João de Sobrado. A festa da Bugiada e Mouriscada é uma obra coletiva, lançado em meados de março de 2024, da autoria de Rita Ribeiro, Manuel Pinto, Albertino Gonçalves, Alberto Fernandes, Luís Cunha e Luís António Santos. Resulta de um projeto coordenado pela Rita Ribeiro. Aborda a festa que ocorre no dia 24 de junho, de manhã cedo até ser noite, na vila de Sobrado, do concelho de Valongo. Uma iniciativa e um espetáculo assombrosos que este livro pretende ilustrar, a começar pela quantidade e qualidade das fotografias.

Cumpriu-me o prazer duplo da escrita e, sobretudo, da observação dos “serviços da tarde”, uma componente autónoma da festa com raízes seculares. Segue o texto resultante, acompanhado por um excerto com as páginas iniciais do livro (capa, ficha técnica, índice e nota introdutória).

Afinidades entre maneiristas e surrealistas

Nas últimas décadas não publiquei os resultados da maior parte das investigações. Alguns apontamentos no blogue Tendências do Imaginário e um ou outro artigo por convite foram as exceções. Acumulei, entretanto, “legos” de conhecimento. Dando a vida voltas, entendo, agora, partilhá-los. Encetei várias conversas, montagens dos referidos legos: “Amor e morte nas esculturas funerárias”, em outubro, “Apontamentos sobre o ensino da arte” e “O olhar de Deus na cruz: o Cristo estrábico”, em novembro, “Vestir os nus: censura e destruição da arte”, em fevereiro e “A ambivalência do crime na arte”, em maio. “Antepassados do surrealismo: O Maneirismo, será a próxima, no dia 27 de maio, às 17 horas, no Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa. Outras se seguirão, a um ritmo, previsivelmente, mais razoável.

“Antepassados do surrealismo: o maneirismo” perspetiva-se como uma conversa que convoca as principais componentes de um percurso que acumulou e montou, décadas a fio, um conjunto apreciável de legos resultantes de uma investigação caprichosa mas persistente. Associam-se-lhe textos emblemáticos, tais como “O delírio da disformidade” (2002); “Vertigens do barroco” (2007); “Dobras e fragmentos” (2009); e “Como nunca ninguém viu” (2011). Em suma, sintetiza, identifica, motiva e expõe, em jeito de balanço a partilhar.

À maneira das obras abordadas, a conversa deseja-se mais um espetáculo do que uma lição. Inspira-se mais na arte do que na ciência. Portanto, menos espírito de missão e mais instinto de prazer, próprio e alheio. Sobrará, mais ou menos a propósito, tempo para músicas, videoclipes e anúncios publicitários. O conteúdo essencial radica, porém, numa mão cheia de apresentações que confrontam artistas, por um lado, do auge do maneirismo da segunda metade do século XVI (e.g. François Desprez, Wenzel Jamnitzer, Lorenz Stoer, Giovanni Battista Braccelli e Giuseppe Arcimboldo) e, por outro, das vanguardas da primeira metade do século XX, mormente surrealistas, proto-surrealistas e, de algum modo, associáveis (e.g. Giorgio di Chirico, Max Ernst, René Magritte, Salvador Dali, mas também Pablo Picasso, Kasimir Malevich ou Mauritis C. Escher).

Cristalizar parte substantiva de uma vida num momento é aposta arriscada. Para partilhar, convém ser mais que um. Será grato contar com a sua presença.

*****

Dos quatro textos mencionados, aproveito para adicionar os três não disponibilizados no Margens:

– “O delírio da disformidade: O corpo no imaginário grotesco”, Comunicação e Sociedade, Vol. 4, 2002, pp. 117-130;

– “Vertigens do presente: A dança do barroco na era do jazz, in Mata, Aida Maria Reis da; Gonçalves, Albertino, Ferreira, Ângela Mendes & Pereira, Luís da Silva (2007), Vertigens do barroco em Jerónimo Baía e na actualidade. Edição: Mosteiro de São Martinho de Tibães.

– “Dobras e fragmentos: A turbulência dos sentidos na publicidade de automóveis”, in Gonçalves, Albertino (2009), Vertigens: Para uma sociologia da perversidade. Coimbra: Grácio Editor, pp. 47-90.

Grandville: Disfarces e Metamorfoses

O inverno vai rigoroso. Nem sequer o blog Margens escapa aos rigores do frio. Congeladas as sementes, não brotam rebentos. Resta re-colher flores secas adormecidas em vasos pretéritos. Para eludir a falha e iludir a vista.

01. J. J. Grandville, Une promenade dans le ciel. Le Magasin pittoresque. 1847.

J. J. Grandville, Une promenade dans le ciel. Le Magasin pittoresque. 1847.

Jean-Jacques Grandville (1803-1847) é um ilustrador e caricaturista francês da primeira metade do século XIX. Adquiriu fama com as suas metamorfoses envolvendo homens, animais, vegetais e objectos.

11. J.J. Grandeville. Jongleur des univers. J. J. Grandville, O Malabarista de Planetas. Un autre monde. 1844

Conhecido como o “avô do surrealismo”, Grandville convoca o maneirismo, nomeadamente Giovanni Battista Braccelli e Lorenz Stoer (ver figuras 07 e 12). Algumas gravuras antecipam M.C. Escher (ver figuras 1, 7, 8, 9 e 19). Os Queen recorreram aos desenhos de Grandville para as capas do álbum Innuendo (1991) e respectivos singles (figuras 11 a 14.1).

11.1. Queen. Innuendo.

11.1. Queen. Innuendo.

Exceptuando as figuras 1 e 10, ambas de 1847, todas as imagens deste artigo foram extraídas directamente do livro Un Autre Monde, publicado em 1844. Grandville ilustrou vários livros, tais como as Fábulas, de La Fontaine, o Don Quixote, de Cervantes, as Viagens de Gulliver, de Swift, ou Robinson Crusoe, de Daniel Defoe.

Segue a música Innuendo, dos Queen (1991) e uma galeria com imagens de Grandville e do álbum Innuendo, dos Queen.

Queen. Innuendo. Innuendo. 1991

Galeria de imagens: J.J. Grandville e Innuendo dos Queen:

O riso da velha grávida

Este texto, porventura demasiado extenso, corresponde a um dos capítulos do livro A Arte na Morte, em teimosa revisão desde 2017. Trata-se de uma versão renovada e consideravelmente aumentada de um artigo homónimo publicado no blogue Tendências do Imaginário em 13 de março de 2016 (O Riso da velha grávida 2016). Agradecem-se críticas e sugestões! Pelo ritmo, chegarão a tempo.

***

Figura 1. Hieronymus Bosch. As Tentações de Santo Antão. Tríptico, c. 1500. Museu Nacional de Arte Antiga.

No canto inferior esquerdo do painel central do Tríptico As Tentações de Santo Antão (c. 1500), Hieronymus Bosch introduz uma criatura deveras complexa e estranha: uma velha, montada num rato. A velha é um ser híbrido: da cabeça cresce uma árvore e os braços são ramos; o corpo termina em cauda. A velha segura nos braços um bebé enfaixado. Naquele tempo, era prática enfaixar os recém-nascidos. Assim é retratado o menino Jesus no presépio já no século IV (Figura 3) e ainda no século XVII (Figura 4).

Contemplamos uma velha na antecâmara da morte que segura, encostada ao ventre, uma criança. Extrapolando, reconhece-se o tópico da morte que alberga a vida, tópico amplamente estudado por Mikhaïl Bakhtin. Esta figura convoca ainda, através do hibridismo da velha, os três reinos da vida: o humano, o animal e o vegetal. O conjunto, cósmico, alude ao ciclo natural e contrapõe verticalmente o telúrico, o rato que evolui num líquido lamacento, ao aéreo, a árvore que demanda o céu.

Na Grécia, em particular na Beócia, descobriram-se várias estatuetas de terracota que, datadas por volta do século IV aC, podem ser, de algum modo, consideradas antepassadas da velha de Hieronymus Bosch. Das figuras 5 a 7, destaco a última, da coleção do British Museum, pelo seu dinamismo e exposição comunicativa, significados pela posição, boca aberta e dobras da roupa, expressivas do movimento e da tensão dos contrários. Parece falar, cantar ou rir animadamente enquanto cuida da criança.

Figura 7 Velha ama com bebé. Beócia. C.330-300 a.C. British Museum.

Entre a criança ao colo e a gravidez vai apenas um passo no tempo. Um passo atrás que desenha uma ligação ainda mais íntima entre a vida e a morte.

“Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: É a morte prenhe, a morte que dá à luz” (Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, São Paulo, HUCITEC, 1987, pp. 22-23).

Só de as imaginar, estas pequenas estatuetas de terracota provenientes de Kertch, na Crimeia, fascinam. Há anos que as procuro. Mas se a Internet é pródiga quando o tema de pesquisa é abrangente, costuma mostrar-se somítica quando este é deveras específico. Não obstante, alguns autores (e.g. Katia Vanessa Tarantini Silvestri, Carnavalização como transgrediência da multidão, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos, para a obtenção do Título de Doutora em Linguística, São Carlos, 2014, pp, 134-135) contemplam uma estatueta que condiz com as velhas grávidas de Mikhail Bakhtin: uma mulher, em pé, aparentemente idosa e grávida (Figura 8). Provém de Kertch, contanto se encontre no Museu do Louvre, em Paris, e não no Museu L’Ermitage, em São Petersburgo. Cada vez que observo esta “velha grávida” convenço-me que é precursora da Gioconda: não consigo descortinar se está ou não a rir.
Não muito longe de Kertch, na região de Beócia, na Grécia, foi descoberta uma estatueta com uma mulher, agora sentada, numa postura semelhante à da velha ama com bebé da figura 7: idosa, obesa e, com boa vontade interpretativa, grávida e risonha (Figura 9). Também não está no L’Ermitage, mas no British Museum. Condiz com as figuras de terracota de Mikhail Bakhtin. Convergem, inclusivamente, na data: por volta do século IV aC).
Antes de prosseguir este rosário de imagens com velhas com crianças, ao colo ou no ventre, ilustrativas do ciclo da vida e da morte, importa proceder a um desvio pela mitologia grega. Produzida há mais de 4500 anos, a “Vénus Adormecida”, do Museu Nacional de Arqueologia em Valetta (Malta), servir-nos-á como chave ou introito. Dorme, redonda, como a Terra Mãe, à espera da regeneração (Figura 10). Um sono de Inverno com sonho de verão. Batizaram-na Vénus (Afrodite, na mitologia grega). Parece aguardar, durante o inverno, o belo Adónis.

Figura 10 Vénus adormecida. Museu de Arqueologia. Valletta, Malta. 4000-2500 aC

Afrodite apaixonou-se por Adónis ainda este era criança. Entregou-o à guarda de Perséfone, que, por seu turno, também se toma de amores por ele. Ambas reclamam Adónis. Zeus, chamado a pronunciar-se, é salomónico. Divide o ano em três partes iguais: durante os meses de inverno em que as sementes estão soterradas, Adónis vive no inferno com Perséfone; na primavera, quando as sementes germinam, Adónis vive com Afrodite; os meses restantes ficam à escolha de Adónis, que opta por Afrodite. Adónis é o deus da morte e da ressurreição, um deus ctónico, associado à vegetação. Durante a sua estadia no submundo, a terra é estéril. A partir da Primavera, a terra torna-se fértil. A vida enterra a vida, a morte dá à luz a vida. Sem tréguas, nem dramas. Uma tragédia.
A própria Perséfone, igualmente bela, teve um destino similar, embora com enredo e protagonistas distintos.
Divertia-se Perséfone, filha de Deméter, por entre as flores quando ao aproximar-se de um narciso se abriu uma fenda no solo através da qual Hades a raptou e levou para o submundo. Ignorando o sucedido, Deméter, deusa associada à maternidade, a tudo que envolve a plantação, a nutrição e o crescimento, mas também à morte, à destruição e à transformação, procura a filha, sem comer, dormir ou banhar-se, durante nove dias e nove noites. Informada do rapto por Hélio, deus do Sol, assim como da conivência de Zeus, retira-se do monte Olimpo e, disfarçada de velha, divaga, inconformada, por cidades e campos. Em Elêusis, manda construir um templo em sua honra, onde permanece isolada e inativa. Sem a sua ação, nada germina, tudo permanece estéril. A miséria ameaça destruir a humanidade, privando os deuses das suas ofertas e sacrifícios. Após várias tentativas infrutíferas para demover Deméter, Zeus acaba por ordenar a Hades a libertação de Perséfone. Antes da partida, Hades oferece sementes de romã a Perséfone que as saboreou. Durante o reencontro, Deméter pergunta a Perséfone se tinha comido alguma coisa no submundo. Fatalmente! Por causa das sementes de romã, Perséfone resulta condenada a ser, durante o
inverno. rainha do submundo junto a Hades [sina semelhante à de Adónis]. Deméter devolve a fertilidade à terra e promove os Mistérios Elêusianos, festival durante o qual as pessoas “adquirem sabedoria para viver com alegria e morrer sem medo da morte” (remeto a análise do mito de Perséfone para o estudo de Camila Golegã e Luciana Romano Hernandes: “Deméter e Perséfone – A inexorabilidade cíclica da natureza” (https://offlattes.com/archives/author/camila-golega; acedido em 28.08.2022). Retenho, contudo, um pormenor: as sementes de romã. Até as sementes podem desempenhar um papel negativo, neste caso, a condenação de Perséfone. Símbolo por excelência da fecundidade, as sementes também padecem da duplicidade do devir. Morrem e renascem duas vezes: enterradas, para dar o trigo; queimadas para dar o pão. Pela terra e pelo fogo.
Mas nem a intensidade semiótica da semente nem o ciclo cósmico justificam o desvio pela mitologia grega. Este faculta, na verdade , o acesso a uma figura mítica tão pouco conhecida quanto prodigiosa: Baubo, “um arquétipo da vida, da morte e da fertilidade”, “deusa pagã grega da alegria e obscenidade, com a forma de uma velha gorda que exibe publicamente os genitais” (Figuras 11 a 13), mencionada, entre outros, por Goethe, em “Noite de Walpurgis” do Fausto (1808), e Nietzsche, na Introdução de A Gaia Ciência (1882).

“Imagens com mulheres grávidas e mulheres com as pernas abertas passaram a ser representadas em terracotas de estilo Tanagra no Egito a partir do período ptolemaico [iniciado em 323 a. C. Algumas terracotas apresentavam os atributos de Ísis-Afrodite e possuíam um corpo gracioso. Outras tinham escasso ou nenhum atributo, um corpo rechonchudo e pernas abertas para exibir os genitais. A estas terracotas estranhas costuma chamar-se Baubo, o nome de uma velha senhora que mostrou os seus órgãos genitais a Deméter para distraí-la da dor provocada pela perda de Perséfone. O nome Baubo aparece nos Fragmentos órficos de Clemente de Alexandria e Arnóbio que descrevem o episódio do rapto de Perséfone. Baubo também era alvo de culto, em conjunto com Deméter, em várias áreas do mundo grego, como demonstram diversas inscrições e estatuetas. O motivo para atribuir a designação “terracotas Baubo” a estas terracotas egípcias decorre da postura assumida de exposição dos genitais tal como Baubo fez com Deméter. Um outro motivo prende-se ainda com uma outra relação clara de algumas dessas terracotas egípcias com Deméter: existem vários exemplares com a imagem egípcia de Baubo sentada num javali [Figura info], gesto que lembra os javalis selvagens sacrificados durante o festival grego da Thesmophoria. Tanto os rituais da Elêusis como a Thesmophoria eram celebrados na região de Elêusis em Alexandria, com provável recurso a estas terracotas nestes contextos (Nifosi, Ada (2021) The Throw of Isis-Aphrodite: a rare decorated knucklebone from the Metropolitan Museum of New York. The Journal of Egyptian Archaeology. Acedido em 28.08.2022).

Existem várias versões do episódio de Baubo, algumas mais circunstanciadas e excêntricas como a comentada por Sigmund Freud num pequeno texto de 1916 (“Parallèles mythologiques à une représentation obsessionnelle plastique”, Essais de psychanalyse appliquée, Paris, Éditions Gallimard, 1971, pp. 83-85).

“Baubo é a esposa mítica de Disaule, bem como a empregada/ama que acolhe Deméter em Elêusis – o umbigo esotérico da Europa – quando esta procura desesperadamente a sua filha Perséfone. Recusando-se Deméter a tocar na comida, Baubo fá-la rir levantando o vestido e mostrando obscenamente os seus órgãos genitais. Iacchus, seu filho, também é reputado ter estado presente nesta cena, e ter aplaudido descontroladamente – o que provoca o riso de Deméter e enfatiza o lado cômico do episódio. Em algumas versões da história, diz-se que Iacchus rastejou sob as saias, de tal modo que seu rosto apareceu no lugar dos genitais quando Baubo exibiu suas partes púdicas, o que pode ser lido como uma alusão à fertilidade de Baubo – ela pode estar grávida – e, portanto, como um sinal de esperança para a fecundidade muito mais significativa que a própria Deméter tem que reencontrar, a fim de resgatar o mundo do inverno eterno” (Michele Cometa, “The Survival of Ancient Monsters: Freud and Baubo” in Raul Calzoni / Greta Perletti (eds.), Monstrous Anatomies. Literary and Scientific Imagination in Britain and Germany during the Long Nineteenth Century, Göttingen, V&R Unipress, 2015, pp. 297-310).

Baubo oferece-se como uma súmula de todas as situações, ações e propriedade até agora consideradas: é uma velha, grávida e com criança, pujante, cuja sexualidade desbragada provoca alívio e riso. Integra uma mistura de ações e atributos, um concentrado semiótico capaz de rivalizar com a “a velha com bebé ao colo” de Hieronymus Bosch. Condensa luto, fecundidade e jovialidade numa fusão apotropaica transbordante de sexualidade e humor. Os opostos mais do que se alternar ou de se (su)ceder uns aos outros coexistem. Prevalece a conjunção em detrimento da disjunção. Baubo é, simultaneamente, morte e vida, Eros e Thanatos, ordem e caos, tragédia e comédia, luto e esperança. Esta leitura corresponde, naturalmente, a uma interpretação, uma camada subjetiva de sentido que reveste Baubo. Tomando o presente texto como um todo, como um retrato, Baubo arrisca, com a sua turbulência, oferecer-se como um punctum, “o detalhe que preenche toda a fotografia” (Roland Barthes, A Câmara Clara, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 73).

Figura 18 James Ensor. A morte a as máscaras. 1927

Chegada a navegação a esta “bacia semântica”, terão os nossos olhos visto o que de essencial há para ver? Saturou-se o imaginário? A modernidade e a pós-modernidade pouca ou nenhuma originalidade acrescentam, limitando-se a repetir e reciclar? Convenha-se que, mínimas ou não, algumas alterações e inovações se verificaram.

Figura 19 Mason Williams. Esqueleto tatuado e bebé

A morte passa a ser menos disfarçada ou subentendida. A velha tende a ser substituída pela própria morte ou, mais precisamente, pela sua principal imagem-signo: o esqueleto. Volvidos quatro séculos da conclusão das Tentações de Santo Antão, no quadro A Morte e as Máscaras, datado de 1927, de James Ensor, destaca-se, entre os mascarados, um recém-nascido segurado ao colo não de uma velha mas de um esqueleto, a única figura sem máscara (Figura 18). Ressurge este tópico, por exemplo, nos motivos para tatuagem criados por Mason Williams (Figura 19).

Figura 20 Dança macabra. Impressa por Antoine Vérard. C. 1491-1492. Fonte Biblioteca Nacional de França

Mas esta diferença não deve ser sobrevalorizada. Inúmeros esqueletos, com ou sem carne, passeiam-se pelas pinturas e gravuras medievais e renascentistas. E fazem praticamente tudo o que é caraterístico de um ser humano (ver Vida de Esqueleto II. O Espelho: https://tendimag.com/2017/09/30/vida-de-esqueleto-ii-o-espelho/). Não é, aliás, de descartar a possível existência, que admito desconhecer, de uma qualquer imagem com um esqueleto a dar colo a uma criança. Registe-se que alguns esqueletos das danças macabras parecem tentados a embalar um berço. Por exemplo, na gravura da dança da morte mais antiga de que se tem conhecimento situada no cemitério dos Santos Inocentes, em Paris (Figura 20).

Figura 21 George Grosz. Estou feliz por estar de volta. 1943. Fonte Wikioo.org

Cumpre a Georg Grosz, pintor da desgraça humana do século XX, patentear a principal singularidade da nossa era. Na pintura Estou feliz por estar de volta, de 1943, um esqueleto andrajoso rasga a carne ensanguentada de um ventre rumo à luz, ao exterior, ao mundo (Figura 21). Eis a nova marca dos dois séculos mais recentes, modernos ou pós-modernos. Já não é só a morte que apaga a vida, a própria vida dá à luz a morte. No novo imaginário, muda a física, a geografia, e a orgânica, a progenitura, da relação entre a vida e a morte, este mundo e o outro. Nos séculos antigos, se o diabo andava, omnipresente, à solta, o inferno situava-se no Além, no outro mundo. Agora, o inferno está entre nós, “o inferno são os outros” (Jean-Paul Sartre, Huis Clos, 1944) ou, mais lucidamente, “somos nós”. Numa “sociedade mortífera”, a própria vida se encarrega de gerar a morte.

Autor: Albertino Gonçalves