Imagens da pobreza (com ilustrações e comentário)

Só dei conta, por lapso pessoal, que era suposto escrever o artigo “Imagens da pobreza” (para o jornal Correio do Minho, de 17/06/2023) quando me foi solicitado para edição. Tive que o redigir texto de um dia para o outro. Ultrapassado o limite de 5000 carateres, considerei-o concluído. Ficou incompleto? Sobram sempre assuntos para desenvolver. Mas neste caso, além de incompleto, o texto resultou desequilibrado, tanto no que respeita ao conteúdo como, mais grave, à abordagem. Justifica-se uma crítica. Seguem:
- O artigo “Imagens da Pobreza”, publicado no jornal Correio do Minho, de 17 de junho de 2023;
- Uma galeria de imagens correspondente ao artigo “Imagens da Pobreza”;
- Uma (auto)crítica do artigo “Imagens da Pobreza”;
- Uma galeria de imagens correspondentes ao texto de crítica do artigo “Imagens da Pobreza”.























A contradição costuma fazer parte da arquitetura do imaginário: a um ponto tende a corresponder um contraponto. No presente artigo, proporcionou-se a pobreza surgir apenas como um mal (necessário, lamentável ou compreensível). De modo algum, como algo positivo. Existem, contudo, imagens favoráveis à pobreza e aos pobres. Por exemplo, algumas vertentes do cristianismo, a começar pelos atos e palavras do próprio Jesus Cristo, que, “sendo rico se fez pobre” (2 Coríntios 8:9): “Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu” (Mateus 19:21); “E ainda vos digo que é mais fácil passar um camelo pelo fundo de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus” (Mateus 19:24). Contam-se às dezenas as passagens da Bíblia que não só apregoam a defesa dos pobres como valorizam a pobreza, por exemplo “Levanta do pó o necessitado e do monte de cinzas ergue o pobre; ele os faz sentar-se com príncipes e lhes dá lugar de honra” (1 Samuel 2:8). Os eremitas, sobretudo dos séculos III a IV e XII a XIII, buscam no isolamento, no despojamento e no desprendimento uma aproximação ao divino e uma condição de salvação. A pobreza e o isolamento extremos propiciam a resistência às diferentes formas de tentação e vício, bem como uma dedicação exclusiva a Deus. Santo Antão é, porventura, a figura mais notória. Descendente de uma família cristã rica do Egipto do século III, deu tudo aos pobres e retirou-se no deserto. Maria Madalena precedeu-o: contra o fim da vida, no deserto, despojada, inclusivamente sem roupa, era “alimentada espiritualmente pelos anjos” (“Maria Madalena: O Corpo e a Alma”: https://tendimag.com/2015/02/09/maria-madalena-o-corpo-e-a-alma/). Enfim, aponta no mesmo sentido o “voto de pobreza” caraterístico das ordens mendicantes, tais como os franciscanos, dominicanos, agostinianos e cartuxos.
Resta incontornável a questão: que tipo de pobreza é a pobreza voluntária?












Atribulações das almas

Ontem e hoje, dias 13 e 14 de janeiro, estive em Castro Laboreiro. Fui apanhar frio! De regresso a Braga, ainda em terras da Galiza, deixei-me dormitar a imaginar que o Jeep, com o ar condicionado ligado, à medida que me afastava da aragem gélida do planalto, me aproximava de um calor muito quente, o bafo das bordas do inferno. Acudiram-me dois artigos que redigi há mais de sete anos, intitulados A Caminho do Inferno e O Último Suspiro. Retomo-os com uma ou outra revisão insignificante.
Filhos de Gutenberg, pensamos, equivocados, que o poder da imagem só se afirmou verdadeiramente com o advento da “idade da reprodutibilidade técnica”. Ainda cismamos, aliás, que o que realmente importa se alinha pelo alfabeto. Neste texto, o protagonismo volta a caber às iluminuras medievais: imagens de almas de defuntos rumo ao inferno, seja durante ou após o momento da morte. Relativamente raras, estas imagens constituem uma chave de acesso ao imaginário do cristianismo, ao nosso próprio imaginário.

Omar Calabrese chama a atenção para a “irrepresentabilidade da morte”, a impossibilidade de “representar precisamente a passagem entre a vida e a morte” (Calabrese, Omar, Como se lê uma obra de arte, 1997, Lisboa, Edições 70, p. 88). Pois, a Idade Média tardia e o início da Modernidade concentraram-se em atos e instantes tais como a visita, o toque ou o beijo da morte ou, aquele que mais foca o presente artigo, o último suspiro, a exalação da alma que se despede do corpo. Não direi última viagem porque existe a crença de as almas poderem não ter repouso e até regressar do além (ver Exorcismos).

Muitas almas não têm salvação. Condenadas, sem indulgência, são esperadas pelos demónios que as transportam para a boca do inferno (figuras 2 a 3). Há, porém, almas cuja salvação ainda não está decidida. São motivo de disputa entre anjos e demónios (figuras 4 a 6). Um reparo: se os anjos e os demónios lutam pelas almas dos moribundos, então a salvação não depende exclusivamente do comportamento neste mundo, da vida terrena, nem está adiada para o Juízo Final. Há margem para resgate durante a passagem, eventualidade que inspira as ars moriendi, livros que ensinam a enfrentar a morte, ou purificação no outro mundo, neste caso são almas polémicas, talhadas para o recém-inventado purgatório, o terceiro lugar do além (Goff, Jacques Le, 1981, La Naissance du Purgatoire, Paris, Gallimard).



As almas são representadas sob a forma de crianças ou, em alguns casos, como miniaturas do morto. Há almas benditas, conduzidas por anjos, num tecido branco, para o céu. Nestes casos, o morto, lendário ou real, pode manter-se apostrofado, identificado, ser alguém até no outro mundo. Na figura 7, o morto é Rolando, pretenso sobrinho do Imperador Carlos Magno, herói do romance La Chanson de Roland. Numa versão do século XII (Pseudo-Turpin), o arcebispo Turpin tem uma visão: o rei Marsiliun é transportado por demónios e a alma de Rolando por anjos (Merwin, W. S., 2001, Song of Roland, New York / Toronto, Modern Library Paperback Edition, p. XIV).

No rolo mortuário da figura 8, a pessoa morta é Lucy, fundadora e primeira prioresa do convento beneditino de Castle Hedingham, em Essex. Na imagem central, Lucy é elevada por dois anjos. Na parte superior, aparecem Cristo e Nossa Senhora com o Menino. O rolo mortuário, mandado fazer pela sucessora, foi enviado a 122 entidades religiosas. A intenção e a mensagem são inequívocas. Há poucos santos na terra, mas, provavelmente, também não abundam no Céu.

Estas representações da passagem para o outro mundo persistem nos séculos seguintes. No Mosteiro de Tibães, em Braga, existe um azulejo com a morte de São Bento. Vê-se o santo morto, de pé, e a ascensão da alma numa espécie de “tapete voador” rodeado por anjos. O tapete é um pormenor que intriga, mas convenha-se que, para subir ao céu, a diferença entre um “lençol” e um “tapete” não é intransponível.


As iluminuras das figuras 9 e das, ambas com monges, são surpreendentes. Os anjos não estão a levar as almas, réplicas dos mortos, para o céu. Estão a restituir as almas ao monge Saint-Pierre de Cologne e ao monge afogado, de Besançon (França), estão a devolver a vida a “não mortos” (Omar Calabrese). Que a “passagem entre a vida e a morte” é reversível sempre o soube a Igreja. As almas do monge Saint-Pierre e do monge afogado não vão para o céu, nem para o inferno, nem para o purgatório. Nem sequer vão, vêm! Transitam em sentido inverso.
São histórias de outras eras. O inferno, entretanto, mudou; outrora, confinava-se ao outro mundo, agora faz parte deste. O inferno está no meio de nós. Quanto aos não mortos e ao trânsito inverso, encontraram guarida nos novas arenas do imaginário: nos filmes, na televisão, nos videojogos e nas redes sociais. O desamparo face à morte, e face à vida para além da morte, não desapareceu.
Nas imagens da morte, os demónios mostram-se sôfregos e irrequietos. É plausível que a maioria das almas se destine ao inferno. Mas o diabo é insaciável. Os demónios não param de disputar almas, de as transportar e de as infernizar. Andam atarefados numa azáfama interminável. As imagens do inferno condizem: uma turbulência tórrida em que as almas sofrem e os demónios trabalham. Os infernos de Herrad von Landsberg e do Missal de Raoul du Fou propiciam um bom exemplo: os diabos torturam, carregam, empurram, grelham, fritam, cozem e comem as almas danadas.

As representações do Juízo final encenam o paraíso, o purgatório e o inferno. Por exemplo, Juízo Final de Jan Van Eick (c. 1430-1440; figura 13), Giotto (1306), de Jan Van Eick (c. 1430–1440; figura 14)) e da Catedral Vank (séc. XVII; figura 15) evidenciam o que sabemos desde a catequese. O céu, em cima, o inferno, em baixo; o purgatório à direita de Cristo, o inferno à esquerda; o céu com cores claras, o inferno com cores carregadas com predomínio do vermelho… E, sobretudo, no inferno, um movimento vertiginoso; no céu, ordem, repetição, placidez. Ao inferno, coube-lhe o mesmo que a Adão e Eva, o trabalho; ao paraíso, “o descanso eterno”! Se existe pecado mortal que os demónios não cometem é o da preguiça. O inferno assemelha-se a um formigueiro inflamado e acelerado.



O Taymouth Hours é um livro de horas datado de 1325-40. Retenho algumas iluminuras alusivas às atividades dos demónios . Não existissem autênticas bandas desenhadas no século IX, nomeadamente com episódios da Bíblia, diria que o Taymouth Hours antecipa o género. Dedicados e despachados, os demónios carregam os condenados para a boca do inferno. No interior, o ambiente é febril. As tarefas nunca acabam. Acumulam-se. Uma vez terminados, os suplícios têm que ser recomeçados. A never ending pain!
Segue uma galeria com gravuras recortadas das margens do livro de Horas de Taymouth. Depositado na British Library (Yates Thompson MS 13), pode ser integralmente visualizado no seguinte endereço: https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=yates_thompson_ms_13_fs001r
Galeria com gravuras das margens do livro de Horas de Taymouth. 1325-1335. British Library. Yates Thompson MS 13.

























Mais para entretenimento próprio do que para proveito alheio, montei um pequeno vídeo em que estas gravuras do livro de Horas de Taymouth são acompanhadas por um excerto do álbum Heaven and Hell, do Vangelis. Segue o resultado.


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