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Margens. Um breve balanço

O blogue Margens completou um ano. Uma oportunidade para uma espécie de autoavaliação. Os balanços não são necessariamente improdutivos, podem revelar-se instrutivos. Creio que é o caso. Segue o respetivo texto, primeiro, em pdf, e, em seguida, incorporado no artigo.

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Margens. Um breve Balanço (por Albertino Gonçalves)

Pertenço, porém, àquela espécie de homens que estão sempre na margem daquilo a que pertencem, nem veem só a multidão de que são, senão também os grandes espaços que há ao lado”.

(Fernando Pessoa. Livro do Desassossego por Bernardo Soares).

               “Não me digam que não disse nada de novo, a disposição das matérias é nova. Quando se joga à péla um e outro jogam com a mesma bola, mas um coloca-a melhor”.

(Pascal, Blaise, Pensamentos)

Criado há pouco mais de um ano, em dezembro de 2022, o Margens (https://margens.blog/) não descola. Soma 14 692 visualizações. Durante o mesmo período, o blogue Tendências do Imaginário (https://tendimag.com/), de que também sou administrador, alcançou 217 661, quinze vezes mais! Esta comparação pede duas ressalvas: 1) o número de artigos do Tendências é o triplo do Margens (197 contra 62, em 2023); e, criado em 2011, o Tendências dispõe de um património passado ativo de 3800 artigos, quando o Margens não desfruta de qualquer património anterior.

De qualquer modo, o Margens mantém-se num estado embrionário, arrastando-se abaixo das (minhas) expectativas, acalentadas, aliás, pelo seu carácter coletivo (acima de uma vintena de autores).

Mas convém não desdenhar. Muito ou pouco, o Margens tem cumprido a sua missão principal: divulgar textos, mormente da autoria dos membros.

Entre os 74 artigos colocados nos últimos 14 meses, 27 disponibilizam, em pdf, artigos escritos em português. Existem artigos que incorporam os textos sem contemplar o respetivo pdf. São exemplos, os artigos “Santuário da Boa Morte, Correlhã, Ponte de Lima”, e “André Soares. Tantas perguntas sem resposta!”, colocados em dezembro de 2022 e janeiro de 2023, ambos de Eduardo Pires de Oliveira, com, respetivamente, 1291 e 321 visualizações.

Segue o gráfico 1 com a distribuição dos downloads por artigo, indicando o autor, parte do título e a data de colocação no blogue.

A maior parte dos artigos, 23 em 27 (85%), ultrapassa 150 downloads. É muito? É pouco? É razoável? Os valores absolutos não permitem responder. Importa encontrar termos de comparação, que, de preferência, não sejam, à partida, favoráveis.

Como fonte de downloads de artigos de revista em português com autores portugueses, oferece-se, de imediato, o RepositoriUM: institucional, com fácil acesso e ampla abrangência. Como autores, confinámo-nos aos sociólogos do Instituto de Ciências Sociais no topo da carreira, situação partilhada apenas por uma escassa minoria dos membros do Margens. Como duração, considera-se todo o tempo de exposição online. No RepositoriUM, pode remontar a mais de 10 anos, no Margens, o máximo é 14 meses.

Fonte: Blogue Margens

A tarefa resultou mesquinha e pouco sedutora: seguindo o critério de relevância do RepositoriUM, compilaram-se os artigos dos autores selecionados e apontou-se, para cada artigo, o número total de downloads registados desde a data de colocação. Foi, assim, retido e caraterizado um conjunto de 81 artigos da autoria de sociólogos do topo da carreira do Instituto de Ciências Sociais. O gráfico 2 contempla a distribuição dos downloads obtida.

Fonte: RepositoriUM

A maioria dos artigos, 58 em 81 (72%), fica, agora, aquém de 150 downloads.

Concentremo-nos nos dois artigos mais recentes no Margens: “Quando a esmola é grande” e “A melancolia académica na viragem do milénio”, ambos da autoria de Albertino Gonçalves. Colocados há menos de duas semanas, em 21 e 23 de fevereiro, somam, neste momento, 111 e 120 downloads. “É muito? É pouco? É razoável?”

Recorra-se a outro termo de comparação. Atualmente, um número crescente de artigos de revista é contemplado com um DOI (Digital Object Identifier). É o caso de cerca de um terço dos artigos do RepositoriUM considerados. A partir do DOI, pode-se aceder à fonte do artigo, à página da revista, e consultar o número de downloads respeitante aos últimos 12 meses. O resultado obtido foi inesperado:  em nenhum artigo, com DOI, a soma dos downloads dos últimos 12 meses atinge os valores obtidos em duas semanas pelos dois últimos recentes do Margens. Quando muito, metade. Eis o que configura, diria Robert K. Merton, um augúrio de “serendipidade”.

Estou em crer que aquilo que a “realidade”, que estes apontamentos parecem sugerir, não corresponde à “verdade dos factos”. Insinuou-se algures, inadvertidamente, alguma falácia. Não obstante, não consigo esquivar algumas perguntas.

Andamos iludidos? Baralhados? Com artifícios? A inverter os meios e os fins? Com falsa consciência ou com má fé? A produção, a circulação e o consumo de bens do conhecimento manifestam-se desfasados? O “sistema” está a saturar-se? Preferimos a categoria ao público, as métricas aos leitores? Até onde podem ir a alienação e a reificação?

Estas dúvidas estendem-se a esferas adjacentes. À semelhança das publicações, também proliferam os encontros científicos. Mas escasseiam, em contrapartida, os públicos. Costumam ser poucos os presentes e ainda menos os assistentes. Presente o corpo, ausente o espírito. O que motiva tantos colegas a desafiar distâncias para partilhar uma comunicação com uma dúzia de pessoas, a maioria membros da mesa? E a repetir a façanha vezes sem conta?

 Recentemente, atardei-me a observar um auditório apinhado de estudantes. Poucos estavam concentrados no orador. Subvertiam uma obrigação, reservando a atenção ao telemóvel, ao tablet ou ao portátil. É certo que os estudantes são “polícronos” (Edward T. Hall), capazes de fazer várias coisas ao mesmo tempo. Trata-se apenas de um caso, mas, como diria Anselm Strauss, de um caso alargado. Para os colegas, pelos vistos, nada de novo. Uma anormalidade que se repete.

Afinal, o que nos move? Para onde vamos? Com que nos debatemos? Eis algumas questões suscitadas por alguns indícios inquietantes.

Atribulações das almas

01. Apocalypse. Flandres ca. 1313 (Bibliothèque Nationale de France)

Ontem e hoje, dias 13 e 14 de janeiro, estive em Castro Laboreiro. Fui apanhar frio! De regresso a Braga, ainda em terras da Galiza, deixei-me dormitar a imaginar que o Jeep, com o ar condicionado ligado, à medida que me afastava da aragem gélida do planalto, me aproximava de um calor muito quente, o bafo das bordas do inferno. Acudiram-me dois artigos que redigi há mais de sete anos, intitulados A Caminho do Inferno e O Último Suspiro. Retomo-os com uma ou outra revisão insignificante.

Filhos de Gutenberg, pensamos, equivocados, que o poder da imagem só se afirmou verdadeiramente com o advento da “idade da reprodutibilidade técnica”. Ainda cismamos, aliás, que o que realmente importa se alinha pelo alfabeto. Neste texto, o protagonismo volta a caber às iluminuras medievais: imagens de almas de defuntos rumo ao inferno, seja durante ou após o momento da morte. Relativamente raras, estas imagens constituem uma chave de acesso ao imaginário do cristianismo, ao nosso próprio imaginário.

02. Diabo leva presa por uma corda a alma de um amante. Matfre Ermengaud. Breviari d’Amor. França. Início do séc. XIV

Omar Calabrese chama a atenção para a “irrepresentabilidade da morte”, a impossibilidade de “representar precisamente a passagem entre a vida e a morte” (Calabrese, Omar, Como se lê uma obra de arte, 1997, Lisboa, Edições 70, p. 88). Pois, a Idade Média tardia e o início da Modernidade concentraram-se em atos e instantes tais como a visita, o toque ou o beijo da morte ou, aquele que mais foca o presente artigo, o último suspiro, a exalação da alma que se despede do corpo. Não direi última viagem porque existe a crença de as almas poderem não ter repouso e até regressar do além (ver Exorcismos).

03. Diabo recebe a alma de um rei. França, c. 1475-1525 © The British Library

Muitas almas não têm salvação. Condenadas, sem indulgência, são esperadas pelos demónios que as transportam para a boca do inferno (figuras 2 a 3). Há, porém, almas cuja salvação ainda não está decidida. São motivo de disputa entre anjos e demónios (figuras 4 a 6). Um reparo: se os anjos e os demónios lutam pelas almas dos moribundos, então a salvação não depende exclusivamente do comportamento neste mundo, da vida terrena, nem está adiada para o Juízo Final. Há margem para resgate durante a passagem, eventualidade que inspira as ars moriendi, livros que ensinam a enfrentar a morte, ou purificação no outro mundo, neste caso são almas polémicas, talhadas para o recém-inventado purgatório, o terceiro lugar do além (Goff, Jacques Le, 1981, La Naissance du Purgatoire, Paris, Gallimard).

As almas são representadas sob a forma de crianças ou, em alguns casos, como miniaturas do morto. Há almas benditas, conduzidas por anjos, num tecido branco, para o céu. Nestes casos, o morto, lendário ou real, pode manter-se apostrofado, identificado, ser alguém até no outro mundo. Na figura 7, o morto é Rolando, pretenso sobrinho do Imperador Carlos Magno, herói do romance La Chanson de Roland. Numa versão do século XII (Pseudo-Turpin), o arcebispo Turpin tem uma visão: o rei Marsiliun é transportado por demónios e a alma de Rolando por anjos (Merwin, W. S., 2001, Song of Roland, New York / Toronto, Modern Library Paperback Edition, p. XIV).

07. A alma de Rolando transportada por anjos. Grandes Chroniques de France . BNF Fr 10135, fol. 144r Séc. XIV.

No rolo mortuário da figura 8, a pessoa morta é Lucy, fundadora e primeira prioresa do convento beneditino de Castle Hedingham, em Essex. Na imagem central, Lucy é elevada por dois anjos. Na parte superior, aparecem Cristo e Nossa Senhora com o Menino. O rolo mortuário, mandado fazer pela sucessora, foi enviado a 122 entidades religiosas. A intenção e a mensagem são inequívocas. Há poucos santos na terra, mas, provavelmente, também não abundam no Céu.

08. Rolo mortuário de Lucy, fundadora e primeira prioresa do convento beneditino de Castle Hedingham. Essex. C 1225-1230

Estas representações da passagem para o outro mundo persistem nos séculos seguintes. No Mosteiro de Tibães, em Braga, existe um azulejo com a morte de São Bento. Vê-se o santo morto, de pé, e a ascensão da alma numa espécie de “tapete voador” rodeado por anjos. O tapete é um pormenor que intriga, mas convenha-se que, para subir ao céu, a diferença entre um “lençol” e um “tapete” não é intransponível.

09. Anjo devolve a alma ao monge de Saint-Pierre de Cologne, Miracles de Notre Dame, Besançon, BM, ms. 0551, f. 047v. Séc. XIII.
10. Anjo devolve alma de monge afogado. Besançon, Bibliothèque municipale, Ms. 551 f. 077v

As iluminuras das figuras 9 e das, ambas com monges, são surpreendentes. Os anjos não estão a levar as almas, réplicas dos mortos, para o céu. Estão a restituir as almas ao monge Saint-Pierre de Cologne e ao monge afogado, de Besançon (França), estão a devolver a vida a “não mortos” (Omar Calabrese). Que a “passagem entre a vida e a morte” é reversível sempre o soube a Igreja. As almas do monge Saint-Pierre e do monge afogado não vão para o céu, nem para o inferno, nem para o purgatório. Nem sequer vão, vêm! Transitam em sentido inverso.

São histórias de outras eras. O inferno, entretanto, mudou; outrora, confinava-se ao outro mundo, agora faz parte deste. O inferno está no meio de nós. Quanto aos não mortos e ao trânsito inverso, encontraram guarida nos novas arenas do imaginário: nos filmes, na televisão, nos videojogos e nas redes sociais. O desamparo face à morte, e face à vida para além da morte, não desapareceu.

11. Herrad von Landsberg, O inferno. Hortus Deliciarum, 1180

Nas imagens da morte, os demónios mostram-se sôfregos e irrequietos. É plausível que a maioria das almas se destine ao inferno. Mas o diabo é insaciável. Os demónios não param de disputar almas, de as transportar e de as infernizar. Andam atarefados numa azáfama interminável. As imagens do inferno condizem: uma turbulência tórrida em que as almas sofrem e os demónios trabalham. Os infernos de Herrad von Landsberg e do Missal de Raoul du Fou propiciam um bom exemplo: os diabos torturam, carregam, empurram, grelham, fritam, cozem e comem as almas danadas.

12. Caldeirões do inferno. Missal de Raoul du Fou, Normandia, ca. 1479-1511

As representações do Juízo final encenam o paraíso, o purgatório e o inferno. Por exemplo, Juízo Final de Jan Van Eick (c. 1430-1440; figura 13), Giotto (1306), de Jan Van Eick (c. 1430–1440; figura 14)) e da Catedral Vank (séc. XVII; figura 15) evidenciam o que sabemos desde a catequese. O céu, em cima, o inferno, em baixo; o purgatório à direita de Cristo, o inferno à esquerda; o céu com cores claras, o inferno com cores carregadas com predomínio do vermelho… E, sobretudo, no inferno, um movimento vertiginoso; no céu, ordem, repetição, placidez. Ao inferno, coube-lhe o mesmo que a Adão e Eva, o trabalho; ao paraíso, “o descanso eterno”! Se existe pecado mortal que os demónios não cometem é o da preguiça. O inferno assemelha-se a um formigueiro inflamado e acelerado.

Taymouth Hours é um livro de horas datado de 1325-40. Retenho algumas iluminuras alusivas às atividades dos demónios . Não existissem autênticas bandas desenhadas no século IX, nomeadamente com episódios da Bíblia, diria que o Taymouth Hours antecipa o género. Dedicados e despachados, os demónios carregam os condenados para a boca do inferno. No interior, o ambiente é febril. As tarefas nunca acabam. Acumulam-se. Uma vez terminados, os suplícios têm que ser recomeçados. A never ending pain!

Segue uma galeria com gravuras recortadas das margens do livro de Horas de Taymouth. Depositado na British Library (Yates Thompson MS 13), pode ser integralmente visualizado no seguinte endereço: https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=yates_thompson_ms_13_fs001r

Galeria com gravuras das margens do livro de Horas de Taymouth. 1325-1335. British Library. Yates Thompson MS 13.

Mais para entretenimento próprio do que para proveito alheio, montei um pequeno vídeo em que estas gravuras do livro de Horas de Taymouth são acompanhadas por um excerto do álbum Heaven and Hell, do Vangelis. Segue o resultado.

Atribulações das Almas. Gravuras do livro Horas de Taymouth acompanhadas com um excerto do álbum Heaven and Hell, do Vangelis