Ida e volta a Cucujães
Álvaro Domingues

João de Andrade Corvo (1824-1890) no seu ímpeto de modernização do país arcaico entregue às conveniências de quem detinha o poder e aos interesses de companhias privadas estrangeiras e de alguns capitalistas e industriais do reino, num discurso à Câmara dos Deputados a 6 de Maio de 1867, afirmou: “Eu considero o caminho-de-ferro, não como um instrumento de criação imediata de produto líquido, mas como uma força que se põe ao serviço das diversas indústrias, como se põe uma máquina a vapor ao serviço dos diversos aparelhos, e das diversas máquinas de uma fábrica”. A primeira referência à Linha do Vouga data de 1874 e, como era frequente, a principal justificação era a de ligar regiões agrícolas e mineiras encravadas na exígua mãe-pátria, aos portos atlânticos – neste caso, ligar Viseu, o Vale do Vouga e o de Lafões ao Porto e a Aveiro e à linha do Norte. Pelo caminho haveria termas, fábricas, vilas e povoados, e muitas discussões sobre expropriações e opções de traçado ou de localização e designação de estações e apeadeiros. Onde chegasse o comboio, chegaria a via acelerada para o milagre económico.
Foi um longo ziguezaguear. Nada disposto a alimentar o lado romântico da tecnologia, Paul Virilio já disse que quem tinha inventado o caminho-de-ferro, sem saber, tinha também inventado o descarrilamento; acidentalmente, uma coisa decorre da outra.

A ordem natural das coisas, a perfeição e o desmesurado, os filósofos da Grécia antiga – o homem é a medida de todas as coisas – o palmo, o pé, a polegada, a braça, o pé quadrado… são medidas que os humanos (hoje, dir-se-ia, o homem, a mulher, a diversidade LGBT) inventaram a partir da sua própria concepção do mundo e do lugar central que aí pensavam ocupar. Leonardo da Vinci, inspirado no venerável Vitrúvio, desenhou essas medidas inscrevendo um macho adulto humano de pernas e braços abertos num círculo e num quadrado de idêntica área. As proporções dessa figura modelar ficaram fixadas num padrão matemático e respectivas regras geométricas. Do corpo humano ao universo, havia de caber tudo numa quadratura do círculo, numa medida universal que satisfizesse as pretensões mágicas da espécie em matéria de cogitações sobre-humanas muito úteis para esconder as misérias do mundo e dar espaço ao algoritmo.
Para além da bitola larga, há o metro e o quilómetro, a distância em anos-luz, as galáxias, o nano mícron e outras medidas da era tecnológica que em nada se relacionam com as medidas do corpo – o metro, a partir da de krípton 86, e o segundo, calculado a partir da radiação de césio 133. Sujeito a coima, o homem do Vitrúvio, fechou as pernas porque lhe está vedada a passagem para além da razão unidimensional da eficácia técnica, da racionalidade do mercado, da organização burocrática e do totalitarismo tecnocrata e tecno-lógico. A razão técnica transforma-se em mitologia, e, depois do paraíso e da idade de ouro, a natureza caminha para o pesadelo. É a bitola estreita do mundo, as pernas fechadas, o passo tolhido, o bloqueio. A horta é uma miragem para lá do terreno pedregoso. Em qualquer dissertação sobre jurisprudência, a coima pode ser discutida segundo variadas e refinadíssimas retóricas.

Literalmente, a necrópole é a cidade dos mortos, tal como os monumentos designavam sinais do passado, presenças da ausência dos que já não pertencem ao mundo dos vivos. Por isso é que a cidade dos mortos é monumental. O monumento funerário é um gesto de perpetuação da memória dos mortos. Por sua vez, os documentos correspondem sobretudo a registos escritos que contêm informações muito úteis para os historiadores. Na cultura erudita da Europa do séc. XIX, o termo monumento usava-se também para designar as grandes colecções de documentos. Em latim – a língua morta então preferida -, os Portvgaliae monvmenta historica iniciados por Alexandre Herculano, uma coletânea de textos da História de Portugal, são disso exemplo. Criticando versões fantasiosas da história, Henri Lefebvre escreveu que não há história sem documentos e se os factos históricos não foram registados em documentos escritos ou gravados, esses factos ter-se-ão perdido. Citando outro nome incontornável, Michel Foucault, pode ler-se: (…) o documento não é o feliz instrumento de uma história que seja, em si própria e com pleno direito, memória: a história é uma certa maneira de uma sociedade dar estatuto e elaboração a uma massa documental de que se não separa. Bibliotecas, arquivos e conservatórias são os grandes depositários desse rastreamento do passado que amanhã já terão arquivado coisas de hoje. Em tempos de digitalização acelerada, os arquivos marcham para o infinito.
Sobre isso, Saramago escreveu em Todos os Nomes: Do mesmo modo que todos os cemitérios deste ou de qualquer outro mundo, este começou por ser uma coisinha minúscula, uma parcela breve de terreno na periferia do que ainda era um embrião de cidade, virado para o ar livre das campinas, mas depois, com o andar dos tempos, como infelizmente tinha de ser, foi crescendo, crescendo, crescendo, até se tornar na necrópole imensa que é hoje. Ao princípio esteve todo murado ao redor, e, durante gerações, de cada vez que o aperto lá dentro começava a prejudicar tanto o alojamento ordenado dos mortos como a circulação prática dos vivos, fazia-se o mesmo que na Conservatória Geral, deitavam-se abaixo os muros e levantavam-se um pouco mais à frente. Nada como a boa literatura para nos explicar o mundo.
Deixando a visão geral do cemitério e caminhando pelo dédalo dos monumentos funerários em granito que são a arte já muito industrializada do saber dos marmoristas, encontramos o instante metafórico a que Saramago se refere acerca dos muros derruídos para que a conservatória ou o cemitério cresçam: ao fundo, intensamente iluminado pelo sol está o muro que cerca o cemitério; no primeiro plano, resolve-se o avanço do edifício, sobrepondo, desligando os planos. No meio das sepulturas, a coluna ajuda a perceber a grande dificuldade que as lajes de betão apresentam quando são forçadas a flutuar.

Virá um dia a banalização da cremação e tudo isto poderá tomar outros caminhos. A memória pública dos mortos traduzida em toneladas de pedra polida alinhada na necrópole, poderá esfumar-se em cinzas espalhadas ao vento, nos roseirais, no mar ou em pequenos sarcófagos guardados em casa. Outras versões mais elaboradas usarão fornos sofisticados onde se converterá a matéria carbónica dos cadáveres em pequenos cristais de diamante que se poderão usar como joias onde, fisicamente, os entes queridos permanecem e brilham para todo o sempre. Que seriam os vivos sem os mortos, sem os fantasmas, sem o menor traço da presença de quem já não está. Jean-Didier Urbain – O Arquipélago dos Mortos – lembra que o luto não é apenas um modo de aceitação da morte do outro, aquilo que é necessário integrar é a incerteza que provoca a sua ausência na vida -uma espécie de flutuação. É por essa razão que os lugares do luto são importantes – aqui jaz significa isso mesmo.
Este texto foi produzido no âmbito do projeto À Volta do Vale das Voltas – Programa Integrado de Dinamização Intercultural das Terras de Santa Maria
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