A PEDRA-MÃE DO CONVENTO DE MAFRA E DE JOSÉ SARAMAGO E AS COLUNAS DA IGREJA DO SANTUÁRIO DO BOM JESUS DO MONTE

1. AS DIFICULDADES DO TRANSPORTE

Aprendi muito novo uma velha máxima latina: a de que nada há de novo neste mundo (nihil est novi sub terrae).

Nunca me preocupei em confirmar este aforismo. Mas um dia, já lá vão quase duas décadas, ao ler o maravilhoso livro que é o “Memorial do Convento” do nosso Prémio Nobel, José Saramago, pensei que haveria alguma coisa nova neste mundo, criada pelo génio literário deste nosso escritor.

Refiro-me à prodigiosa descrição que ele faz da vinda da Pedra-Mãe, desde as profundezas da pedreira onde foi extraída, a quilómetros do local onde o convento estava a ser levantado, até ao local para onde era destinada.

Fiquei de tal maneira encantado com estas palavras que tive o cuidado, de imediato de as reler, antes de avançar na leitura do romance; e, de vez em quando, não resisto e volto a procurá-las.

Perdoem-me todos os amantes desta obra prima absoluta que é o “Memorial do Convento”, perdoem-me os amantes dessa força mágica de mulher que é a Blimunda, mas as páginas que mais me encantaram foram aquelas em que homens e bois arrostaram com força a natureza para transformar um belo e monstruoso pedaço de pedra no pormenor fundamental dessa obra prima da nossa arte joanina que é o convento de Mafra.

Não exagero ao dizer que não foram só os homens que conduziam o imenso carro e que não foram só os bois que o puxavam que suaram de tanto esforço.

As palavras de Saramago são de tal forma contagiantes que, quando dei conta de mim, estava a meter a mão ao bolso à procura de um lenço para limpar a testa; e, passados mais alguns minutos, sei que fui ao frigorífico buscar uma cerveja, que a minha garganta também estava muito seca!

Sempre me questionei, portanto, se, acaso, esta descrição não seria uma coisa nova, em absoluto. Se assim fosse o velho aforismo cairia, embora em glória.

Há alguns anos, no decurso desta investigação e deste prazer desmedido que é o de querer conhecer tudo sobre a velha Braga barroca, tive oportunidade de publicar a tese de mestrado de uma “velha” Amiga, uma “minhota” de Minas Gerais, Mónica Massaro.

[Digo “minhota” porque ela é de Minas e nunca em local algum me sinto tanto em casa como lá: são as velhas casas, é o sacromonte de Congonhas, é a talha das suas igrejas, a utilização da couve-galega… tudo me faz lembrar este velho Minho].

 E encontrei então uma descrição interessantíssima sobre um problema grave que afectava os mesários da Irmandade do Bom Jesus do Monte, aqui junto a esta cidade de Braga. É que o projecto que o engenheiro Carlos Amarante concebera para a nova igreja incluía quatro colunas de dimensões colossais.

A resolução deste problema não era nada simples. Até porque se não restringia a uma só questão. Eram antes três, cada qual o mais complicado:

  • onde encontrar uma pedra de qualidade com tal dimensão;
  • como seria possível trazer da pedreira até à igreja as quatro colunas colossais;
  • e como, por fim, seria possível colocá-las no local para onde estavam destinadas.

Depois de longos trabalhos e pesquisas, depois de terem sido percorridos todas os campos e montes das redondezas, de terem sido inquiridos todos os mestres pedreiros e curiosos das aldeias vizinhas, apareceu, finalmente, a almejada pedra. A Mesa da Irmandade do Bom Jesus do Monte exultou tanto com a novidade que, para nossa sorte, teve o cuidado de expressar a sua satisfação, por mais do que uma vez, no livro de actas que então estava em uso. Eis as palavras que nos legaram:

Termo de Mesa pelo qual consta aparecera um penedo, que pela sua grandeza, e comprimento dava as quatro colunas do frontispício da nova igreja e se tinham já cortado duas, e se fizera um carro para as conduzir, e se pusera o dia 21 do corrente para a dita condução

Aos 21 dias do mês de Agosto de mil setecentos e oitenta e seis anos… foi proposto, que como se tinha procurado um penedo que houvesse de dar as quatro colunas para o frontispício da nova Igreja, que pela sua grandeza, era dificultoso o achar-se, pois se tinha assentado uniformemente deviam ser inteiras, para maior formosura, e grandeza da mesma obra, cujas colunas, segundo a arte, deviam ter cada uma vinte e cinco palmos de comprido, e largura proporcionada à mesma altura e comprimento; com efeito, depois de uma esquisita diligência, e trabalho, apareceu um penedo no monte chamado, a Chã de Felgueiras (à margem: vulgo o Penedo Negro), na freguesia de S. Bento de Donim, do qual penedo se tem já separado duas famosas pedras, que tem vinte e oito ou trinta palmos de comprido, e em quadro por cada lado quatro palmos; e como para a referida grandeza e monstro de pedra era necessário carro proporcionado, e igualmente seguro, se tinha mandado já fazer; e para a condução das ditas colunas, prometeu por seu zelo e devoção o Rev. Bernardo Francisco de Sá, vigário da igreja de S. Vítor desta cidade, aprontar todas as juntas de bois necessárias e o mais que lhe inspirar o seu zelo e devoção; e se tem assentado ser a condução de uma das referidas colunas no dia 21 do corrente mês; e por este termo se dá faculdade ao nosso tesoureiro para concorrer com o necessário para o jantar dos condutores…

Nos fólios seguintes, e dois dias mais tarde, foram acrescentadas mais estas palavras:

Aos 23 dias do mês de Agosto de mil setecentos e oitenta e seis anos… se ponderou o sucesso que tinha acontecido na condução da primeira coluna, porque foram vinte e duas juntas de bois, e todos os aprestes necessários de manufacturas de carpintaria, pedraria e lavoura; porém, como a pedra é de uma grandeza tão extraordinária que se assenta tem para cima de 120 quintais de peso e finalmente causou suma admiração e pasmo a todas as pessoas que concorreram desta cidade e aldeias vizinhas, e ainda aquelas, que têm visto na capital do reino as maiores obras, e pelo sumo peso e grandeza, se não pôde conduzir mais que em até a entrada da freguesia de Sobreposta, e por causa de se enterrara as rodas do carro não pôde continuar mais, e novamente querendo esta mesa dar novas providências para a referida condução, por consultas de inteligentes pessoas, uniforme se assentou se fizesse uma máquina, que um devoto queria fazer e experimentar, e tendo efeito se continuasse a condução da referida coluna com a brevidade possível, e havendo bom sucesso, logo se continuasse a quebrar as outras duas que faltavam, para se aprontarem enquanto os caminhos estavam secos.

E ainda estas:

Aos 15 dias do mês de Janeiro de mil setecentos e oitenta e sete anos… foi proposto… sobre a condução das colunas do novo templo pelas justas causas que nele se ponderaram se fizera com efeito o dito ajuste com António José da Silva morador na rua do Souto desta cidade, e José de Barros carpinteiro da freguesia de S. Pedro d’Este e por convenção que entre estes houve, veio a ficar tão somente o dito António José da Silva com a dita obrigação in solidum, cujo ajuste se fez pela quantia de 382$000 réis, de que se lavrou assinado, que fica na secretaria, e por se achar satisfeita a dita condução, e estar paga por nosso irmão tesoureiro …  como se mostra das pagas copiadas, digo lançadas no mesmo assinado pelo dito… se determinou e resolveu, se lhe houvesse por abonada, e levasse em conta a dita parcela por se ter tudo feito e tratado pelas resoluções desta mesa, tendo-se experimentado, e sendo pública a toda esta cidade a grande utilidade que houve naquele ajuste.

Para o leitor não pensar que esta descrição também é da minha imaginação – e bem gostaria eu de ter tal capacidade – aqui lhe deixo a indicação do local e do livro onde se guardam estas preciosas palavras: Arquivo da Irmandade do Bom Jesus Monte, Livro dos Termos e Acórdãos (1786-1809), fólios 3v-4v e 4v-5v.

Já vai longo este texto. Tenho que me ficar por aqui. Prometo que para o próximo jornal continuarei. Dar-lhe-ei então a conhecer as dificuldades que houve em colocar as colunas na fachada da igreja.

Obrigado pela sua paciência. E obrigado a si, José Saramago, por me ter sugerido este texto.

Eduardo Pires de Oliveira

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