Curiosidades do Primeiro de Abril

Pela mão do historiador de arte Eduardo Pires de Oliveira, o blogue Margens tem a oportunidade e o privilégio de divulgar seguintes documentos, deveras fabulosos, respeitantes à escadaria do Santuário do Bom Jesus do Monte de Braga: uma imagem de meados dos anos 1970 e uma fatura por serviços prestados nas capelas no ano 1785.

João Abel Manta, ca. 1976

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Uma factura fantástica que tem sido atribuída ao Santuário do Bom Jesus do Monte

Entre a realidade e a fantasia não há diferença mensurável. Hugo Pratt, através do seu fantástico herói tão profundamente sonhador e humano que é Corto Maltese, deu-nos, melhor do que qualquer outro, a noção exacta dessa diferença: a diferença entre a realidade e o sonho está no simples acto de abrir ou fechar os olhos!

Mas será essa uma diferença real? Não sei responder porque, na verdade, não sei em que mundo quero viver: se no mundo em que sou obrigado a andar com os olhos abertos e em que vejo continuamente coisas que nunca imaginei ver (atropelos de toda a espécie, mesmo pelas pessoas que nunca pensei que o pudessem vir a fazer, etc.); ou se no meu mundo interior em que o sonho comanda a vida, e em que ao não querer ver a “realidade” estou, talvez, a desrespeitar os outros.

Na história também acontece o mesmo. Ciclicamente chega-nos às mãos o conhecimento dos mais incríveis factos, que uns acreditam ser realidade e que outros sabem logo ser mentira. Mas, mesmo aqueles factos que facilmente percebemos ser mentira, podem lentamente tornar-se realidade se forem continuamente dados a conhecer, ou se a sua transmissão for feita por alguém que nós respeitamos e admiramos.

Mas a que propósito vem este relambório, perguntará o leitor. Explico-lhe já.

Por mais do que uma vez fui confrontado com a existência de uma factura fantástica que durante anos correu impressa e agora anda na net, sobre pequenas obras efectuadas no figurado das capelas da via-sacra do Bom Jesus do Monte. Como o espaço não dá para mais, vejamos apenas duas dessas cópias.

Uma foi-nos dada a conhecer pelo incansável bibliófilo Cândido de Sousa (“Diário do Minho”, 1 de Novembro de 1956: Velharias bracarenses. Uma factura… “roubada”?), infelizmente já há muito desaparecido do mundo dos vivos. A outra chegou-me há dias entre as brincadeiras que quotidianamente recebo pela net.

Uma, a de Cândido de Sousa, intitula-se

CÓPIA DA FACTURA APRESENTADA PELO ARMADOR À CONFRARIA DO BOM JESUS DO MONTE DE BRAGA, POR VÁRIOS SERVIÇOS EXECUTADOS NAS CAPELINHAS DA ESCADARIA NO ANO DE 1785

a outra tem um título similar mas que, se analisarmos bem, apresenta imensas diferenças e, desde já o digo, é muito mais inverosímil

CÓPIA DA FACTURA QUE UM MESTRE-DE-OBRAS APRESENTOU EM 1853 PELA REPARAÇÃO QUE FEZ NA CAPELA DO BOM JESUS DO MONTE DE BRAGA (Do original arquivo da Torre do Tombo)

Analisemos a possível plausibilidade de ambas:

Em 1785, o Bom Jesus estava num momento de charneira. Tinha uma obra maior, imensa, que lhe absorvia quase todo o dinheiro possível e impossível de obter: a construção da nova igreja, iniciada precisamente no ano anterior. Se lermos a excelente e minuciosa tese de Mónica Massara, logo descobriremos que nesse ano as despesas estavam todas vocacionadas para aquela obra maior.

Em 1853, a confraria do Bom Jesus do Monte não tinha obras excepcionais a fazer, embora estivesse a correr um trabalho de certa monta: a construção da capela da Elevação.

Reparemos agora na pessoa que é apresentada como responsável pelas obras: é-nos dito que em 1785 foi um armador que ficou com o encargo; e em 1853 um mestre-de-obras.

Ora, não nos parece plausível que um ou outro destes homens pudesse ter tomado à sua conta estes pequenos “remendos”. Um armador aceitava o trabalho de preparar festas, procissões, ornamentações fúnebres, etc.; um mestre-de-obras encarregava-se de trabalhos de pedra, raramente de carpintaria, e nunca de pequeninas reparações de figurado.

A verdade é que nesta data o trabalho escasseava, mesmo numa cidade extremamente importante do ponto de vista religioso como era o caso de Braga. E como a urbe era pequena, rapidamente os artistas sabiam da necessidade de se fazer estes retoques e acorriam a oferecer-se, sobretudo aqueles que tinham um menor nome no mercado e que, confessemos, eram perfeitamente aptos para executar este tipo de trabalhos.

Vejamos agora o local onde teriam sido feitas as obras: para um, foi nas capelas da via-sacra, o que nos parece plausível. Para outro, na capela; mas qual capela, perguntamos nós?

E não se esqueça que enquanto um nada nos diz sobre o local onde se guarda a factura original, o outro informa-nos que está na Torre do Tombo. E a minha pergunta será: porque carga de água na Torre do Tombo? Nem na Torre do Tombo nem no Arquivo Distrital de Braga! Um papel desses, a existir, guarda-se nos arquivos da confraria.

Por último, devemos dizer que enquanto o primeiro dos relambórios tem 14 parcelas, o outro tem 16. E enquanto um apresenta um total de 16$760 réis, o outro dá-nos apenas o valor de 2$545 réis, um preço perfeitamente irrisório, tanto mais que havia algumas obras que, embora fossem menores, não eram assim tão baratas.

Naturalmente, não vamos apresentar aqui os dois relambórios. Daremos apenas conta do que nos parece ser mais plausível, o de 1785:

1 – Por corrigir os dez mandamentos, embelezar o Pôncio Pilatos, mudar-lhe as fitas e limpar o nariz 1$700 réis

2 – Um rabo novo para o galo de S. Pedro e pintar-lhe a crista $500 réis

3 – Lavar o criado do Sumo-sacerdote e pintar-lhe as suissas 1$000 réis

4 – Dourar e pôr asas novas no lado esquerdo do Anjo da Guarda e botar-lhe vinho no cálice 1$000 réis

5 – Tirar as nódoas ao filho de Tobias 2$000 réis

6 – Uns brincos novos para a filha de Abraão $930 réis

7 – Avivar as chamas do Inferno, pôr um rabo novo no diabo e fazer vários concertos nos condenados 2$400 réis

8 – Renovar o purgatório e pôr-lhe almas novas 1$830 réis

9 – Limpar o fato e a cabeleira de Herodes e retocar-lhe o bigode 1$000 réis

10 – Meter uma pedra nova na funda de David e empastar a cabeça de Gulias (sic) e alargar as pernas de Santo Saúl 1$400 réis

11 – Adornar a arca de Noé e compor a túnica do filho pródigo, limpar-lhe a orelha esquerda e lavar os pés $600 réis

12 – Renovar o céu, arranjar as estrelas e limpar a lua 1$400 réis

13 – Pôr umas barbas novas no Padre Eterno e pintar a pomba do Espírito Santo 1$000 réis

14 – Cortar o cabelo e comprar um lenço novo para assuar (sic) o nariz do rapaz da cesta dos pregos

Importa a presente em dezasseis mil setecentos e sessenta réis.

E por ser cópia e conforme, peço a todos quantos a lerem a façam cumprir e cumpram tão fielmente quanto eu.

Braga, ano de N. S. J. C. de 1785, aos 28 de Fevereiro

  1. Jeremias Anastácio Rei

F.S.M.

Ressalta logo aos nossos olhos que esta factura é de todo inverosímil. Se lermos com atenção, veremos que falta a conta da última parcela, e que mesmo assim a soma total bate certa!

E o que é que nos diz a sabedoria imensa de Cândido de Sousa? Precisamente isso mesmo! Sem tirar nem pôr!

Ou seja, que já vira esta factura publicada na “Revista da Semana”, do Rio de Janeiro, ano 18, nº 35, de 6 de Outubro de 1917 e que a redacção desta revista carioca indicava que por sua vez a encontrara num jornal francês de que não indicava o nome, onde era dada a conhecer uma conta curiosa apresentada às autoridades eclesiásticas de uma povoação da Bélgica pelo artista que fora encarregado de executar diversos trabalhos numa velha igreja. E, de seguida, apresentava uma tradução dessa factura, em tudo semelhante à que acima transcrevemos.

Quer dizer: da Bélgica foi para a França, da França para o Brasil, do Brasil para o Bom Jesus do Monte!!! Quase me parece aquelas lengalengas infantis…

Claro que ainda ficou muito por dizer, mas nem o meu espaço no jornal é elástico (apenas uma página que deverá ser “temperada” por uma gravura), nem o tempo para me ler é eterno. O leitor já tem dados suficientes para poder analisar mais calmamente a factura e sorrir. Pelo que me fico por aqui. Até uma próxima oportunidade.

Diário do Minho, Braga, 5 de setembro de 2005

Eduardo Pires de Oliveira

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