Atribulações das almas

Ontem e hoje, dias 13 e 14 de janeiro, estive em Castro Laboreiro. Fui apanhar frio! De regresso a Braga, ainda em terras da Galiza, deixei-me dormitar a imaginar que o Jeep, com o ar condicionado ligado, à medida que me afastava da aragem gélida do planalto, me aproximava de um calor muito quente, o bafo das bordas do inferno. Acudiram-me dois artigos que redigi há mais de sete anos, intitulados A Caminho do Inferno e O Último Suspiro. Retomo-os com uma ou outra revisão insignificante.
Filhos de Gutenberg, pensamos, equivocados, que o poder da imagem só se afirmou verdadeiramente com o advento da “idade da reprodutibilidade técnica”. Ainda cismamos, aliás, que o que realmente importa se alinha pelo alfabeto. Neste texto, o protagonismo volta a caber às iluminuras medievais: imagens de almas de defuntos rumo ao inferno, seja durante ou após o momento da morte. Relativamente raras, estas imagens constituem uma chave de acesso ao imaginário do cristianismo, ao nosso próprio imaginário.

Omar Calabrese chama a atenção para a “irrepresentabilidade da morte”, a impossibilidade de “representar precisamente a passagem entre a vida e a morte” (Calabrese, Omar, Como se lê uma obra de arte, 1997, Lisboa, Edições 70, p. 88). Pois, a Idade Média tardia e o início da Modernidade concentraram-se em atos e instantes tais como a visita, o toque ou o beijo da morte ou, aquele que mais foca o presente artigo, o último suspiro, a exalação da alma que se despede do corpo. Não direi última viagem porque existe a crença de as almas poderem não ter repouso e até regressar do além (ver Exorcismos).

Muitas almas não têm salvação. Condenadas, sem indulgência, são esperadas pelos demónios que as transportam para a boca do inferno (figuras 2 a 3). Há, porém, almas cuja salvação ainda não está decidida. São motivo de disputa entre anjos e demónios (figuras 4 a 6). Um reparo: se os anjos e os demónios lutam pelas almas dos moribundos, então a salvação não depende exclusivamente do comportamento neste mundo, da vida terrena, nem está adiada para o Juízo Final. Há margem para resgate durante a passagem, eventualidade que inspira as ars moriendi, livros que ensinam a enfrentar a morte, ou purificação no outro mundo, neste caso são almas polémicas, talhadas para o recém-inventado purgatório, o terceiro lugar do além (Goff, Jacques Le, 1981, La Naissance du Purgatoire, Paris, Gallimard).



As almas são representadas sob a forma de crianças ou, em alguns casos, como miniaturas do morto. Há almas benditas, conduzidas por anjos, num tecido branco, para o céu. Nestes casos, o morto, lendário ou real, pode manter-se apostrofado, identificado, ser alguém até no outro mundo. Na figura 7, o morto é Rolando, pretenso sobrinho do Imperador Carlos Magno, herói do romance La Chanson de Roland. Numa versão do século XII (Pseudo-Turpin), o arcebispo Turpin tem uma visão: o rei Marsiliun é transportado por demónios e a alma de Rolando por anjos (Merwin, W. S., 2001, Song of Roland, New York / Toronto, Modern Library Paperback Edition, p. XIV).

No rolo mortuário da figura 8, a pessoa morta é Lucy, fundadora e primeira prioresa do convento beneditino de Castle Hedingham, em Essex. Na imagem central, Lucy é elevada por dois anjos. Na parte superior, aparecem Cristo e Nossa Senhora com o Menino. O rolo mortuário, mandado fazer pela sucessora, foi enviado a 122 entidades religiosas. A intenção e a mensagem são inequívocas. Há poucos santos na terra, mas, provavelmente, também não abundam no Céu.

Estas representações da passagem para o outro mundo persistem nos séculos seguintes. No Mosteiro de Tibães, em Braga, existe um azulejo com a morte de São Bento. Vê-se o santo morto, de pé, e a ascensão da alma numa espécie de “tapete voador” rodeado por anjos. O tapete é um pormenor que intriga, mas convenha-se que, para subir ao céu, a diferença entre um “lençol” e um “tapete” não é intransponível.


As iluminuras das figuras 9 e das, ambas com monges, são surpreendentes. Os anjos não estão a levar as almas, réplicas dos mortos, para o céu. Estão a restituir as almas ao monge Saint-Pierre de Cologne e ao monge afogado, de Besançon (França), estão a devolver a vida a “não mortos” (Omar Calabrese). Que a “passagem entre a vida e a morte” é reversível sempre o soube a Igreja. As almas do monge Saint-Pierre e do monge afogado não vão para o céu, nem para o inferno, nem para o purgatório. Nem sequer vão, vêm! Transitam em sentido inverso.
São histórias de outras eras. O inferno, entretanto, mudou; outrora, confinava-se ao outro mundo, agora faz parte deste. O inferno está no meio de nós. Quanto aos não mortos e ao trânsito inverso, encontraram guarida nos novas arenas do imaginário: nos filmes, na televisão, nos videojogos e nas redes sociais. O desamparo face à morte, e face à vida para além da morte, não desapareceu.
Nas imagens da morte, os demónios mostram-se sôfregos e irrequietos. É plausível que a maioria das almas se destine ao inferno. Mas o diabo é insaciável. Os demónios não param de disputar almas, de as transportar e de as infernizar. Andam atarefados numa azáfama interminável. As imagens do inferno condizem: uma turbulência tórrida em que as almas sofrem e os demónios trabalham. Os infernos de Herrad von Landsberg e do Missal de Raoul du Fou propiciam um bom exemplo: os diabos torturam, carregam, empurram, grelham, fritam, cozem e comem as almas danadas.

As representações do Juízo final encenam o paraíso, o purgatório e o inferno. Por exemplo, Juízo Final de Jan Van Eick (c. 1430-1440; figura 13), Giotto (1306), de Jan Van Eick (c. 1430–1440; figura 14)) e da Catedral Vank (séc. XVII; figura 15) evidenciam o que sabemos desde a catequese. O céu, em cima, o inferno, em baixo; o purgatório à direita de Cristo, o inferno à esquerda; o céu com cores claras, o inferno com cores carregadas com predomínio do vermelho… E, sobretudo, no inferno, um movimento vertiginoso; no céu, ordem, repetição, placidez. Ao inferno, coube-lhe o mesmo que a Adão e Eva, o trabalho; ao paraíso, “o descanso eterno”! Se existe pecado mortal que os demónios não cometem é o da preguiça. O inferno assemelha-se a um formigueiro inflamado e acelerado.



O Taymouth Hours é um livro de horas datado de 1325-40. Retenho algumas iluminuras alusivas às atividades dos demónios . Não existissem autênticas bandas desenhadas no século IX, nomeadamente com episódios da Bíblia, diria que o Taymouth Hours antecipa o género. Dedicados e despachados, os demónios carregam os condenados para a boca do inferno. No interior, o ambiente é febril. As tarefas nunca acabam. Acumulam-se. Uma vez terminados, os suplícios têm que ser recomeçados. A never ending pain!
Segue uma galeria com gravuras recortadas das margens do livro de Horas de Taymouth. Depositado na British Library (Yates Thompson MS 13), pode ser integralmente visualizado no seguinte endereço: https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=yates_thompson_ms_13_fs001r
Galeria com gravuras das margens do livro de Horas de Taymouth. 1325-1335. British Library. Yates Thompson MS 13.

























Mais para entretenimento próprio do que para proveito alheio, montei um pequeno vídeo em que estas gravuras do livro de Horas de Taymouth são acompanhadas por um excerto do álbum Heaven and Hell, do Vangelis. Segue o resultado.
Tesouros visuais. O livro de salmos de Luttrell

Margens conhecerá momentos mais ou menos curtos de hibernação ou pousio. É uma tentação recheá-los ou entrecortá-los com apontamentos singelos, em jeito de entremez ou corta-sabores, mais apostados nas imagens, dignas de ser vistas, do que nas palavras, breves e leves. Pingos esporádicos entre artigos de autor.
Prestam-se a este desígnio algumas compilações de iluminuras que, para aproveitamento ou por horror do vazio, preenchem as margens e os espaços entre parágrafos dos livros de oração medievais. Algo difíceis de encontrar, proporcionam uma surpresa fabulosa.

Saltério de Luttrel, Inglaterra ca. 1325-1340. British Library, Add 42130, fol. 153r.jpg British Library copyright
O livro de salmos de Luttrel, um dos livros de oração mais antigos e célebres, guardado na British Library (Add. MS 42130), é composto por 309 páginas (350 x 245mm) em pergaminho, ilustradas por uma sequência apreciável de imagens sagradas, monstros híbridos e cenas da vida quotidiana. Criado provavelmente entre 1325 e 1335 na diocese de Lincoln por encomenda de Sir Geoffrey Luttrell (1276 –1345), de Irnham, o texto foi escrito por um copista e as iluminuras foram desenhadas por pelo menos cinco artistas diferentes.
Procedemos, morosa e pacientemente, à montagem, em forma de caderno, de trinta páginas do saltério de Luttrell. O resultado espelha-se na apresentação de diapositivos (PowerPoint) disponibilizada para descarga a que acresce uma galeria de imagens com atividades da vida quotidiana. É um gosto partilhá-las. É possível o acesso à digitalização integral do saltério de Luttrell no seguinte endereço da British Library: https://www.bl.uk/manuscripts/Viewer.aspx?ref=add_ms_42130_fs001ar

Para download (13,6 MB) do referido caderno (apresentação com imagens e música) de 30 páginas do livro de salmos de Luttrel, carregar na imagem precedente ou no seguinte link (a apresentação está programada, com sincronização com o som, deixe correr as imagens sem fazer cliques):




















Paisagens transgénicas

Sob o signo da amizade, Margens abre o ano com o olhar único de Álvaro Domingues que nos desafia a descobrir as margens no próprio caudal da corrente. Um “bilhete postal” do Miguel Bandeira é acompanhado por uma dezena de fotografias da exposição Paisagens Transgénicas (inaugurada nos Serviços Centrais do Instituto Politécnico da Guarda, em dezembro de 2019) e um excerto (capítulos 1 a 3) do livro homónimo.
Com a cumplicidade de quem se conheceu adolescente, naquele período imberbe de todas descobertas, mais ainda privilegiadamente sobreaquecido pelo Portugal que também se redescobria a si próprio, e também aprendia a democracia – que não é mutação menor para uma sociedade – o Álvaro foi um dos nossos últimos a vivenciar aquilo que, no nosso tempo, sem equívocos, se dizia trocar o campo pela cidade. Deixar os Pais e os amigos de infância, cambiar as tensões identitárias da fronteira pelo cosmopolitismo da cidade, ainda que esta fosse o Porto. Muitas violências para um só jovem, ainda que multiplamente dotado e com raro sentido de humor e, também, essa sensibilidade de artista, que a afirmação da cientificidade das ciências sociais nos anos setenta não reconhecia e teimava em recalcar. Com essa afinação apurada no Coral de Letras, o Álvaro, mais do que afinou a voz teve oportunidade de fazer desabrochar a sua expressão criativa. Talvez, por isso tudo e, seguramente, muito mais, que o próprio, estou certo, um dia nos brindará com as suas memórias, o Álvaro, brilhante aluno da ciência, mobilizado no verdadeiro espírito galilaico reclamou o paradoxal e aquilo que para muitos não passava do inobilitado contraditório. Como lhe disse um dia, ao Álvaro, pode não ter referenciado uma Escola do Porto, não porque lhe faltasse mérito ou reconhecimento, mas porque assumiu um modo de estar epistemologicamente transgressor, dir-se-ia, indisciplinado – por me ocorrer a harmonia feliz de uma razão filial – com os encantos próprios de quem antecipa, de quem resgatou entre nós a paisagem. Para os iniciados, a paisagem pós vidaliana ou ratzeliana… Uma visão para lá da ciência, da cultura e da arte. Quiçá, um novo paradigma…
Já lho disse pessoalmente, o Álvaro é o Pedro Almodovar da paisagem, ou o Emir Kusturica da geografia. As suas trangeniais paisagens, antes demais, são a expressão tragicómica e comovente da nossa condição humana atual, já de si de global e mentalmente transgénica.
Álvaro fico à espera do teu primeiro filme!
Um abraço forte do Sopas, que em tempos também foi geógrafo,
e os votos de um Feliz Ano Novo de 2023!
Auspícios!
Galeria de fotografias da exposição Paisagens transgénicas (carregar nas imagens para as aumentar)










Excerto do livro Paisagens transgéncias

Álvaro Domingues, nascido em Melgaço, em 1959, geógrafo, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, é autor de Paisagem Portuguesa (c. D. Belo, 2022), Portugal Possível (c. R. Lage e D. Belo, 2022), Paisagens Transgénicas (2021), Volta a Portugal (2017), Território Casa Comum (c. N. Travasso, 2015), Vida no Campo (2012), A Rua da Estrada (2010), Políticas Urbanas I e II (c. N. Portas e J. Cabral, 2003 e 2011) e Cidade e Democracia (2006).
O riso da velha grávida

Este texto, porventura demasiado extenso, corresponde a um dos capítulos do livro A Arte na Morte, em teimosa revisão desde 2017. Trata-se de uma versão renovada e consideravelmente aumentada de um artigo homónimo publicado no blogue Tendências do Imaginário em 13 de março de 2016 (O Riso da velha grávida 2016). Agradecem-se críticas e sugestões! Pelo ritmo, chegarão a tempo.
***

No canto inferior esquerdo do painel central do Tríptico As Tentações de Santo Antão (c. 1500), Hieronymus Bosch introduz uma criatura deveras complexa e estranha: uma velha, montada num rato. A velha é um ser híbrido: da cabeça cresce uma árvore e os braços são ramos; o corpo termina em cauda. A velha segura nos braços um bebé enfaixado. Naquele tempo, era prática enfaixar os recém-nascidos. Assim é retratado o menino Jesus no presépio já no século IV (Figura 3) e ainda no século XVII (Figura 4).



Contemplamos uma velha na antecâmara da morte que segura, encostada ao ventre, uma criança. Extrapolando, reconhece-se o tópico da morte que alberga a vida, tópico amplamente estudado por Mikhaïl Bakhtin. Esta figura convoca ainda, através do hibridismo da velha, os três reinos da vida: o humano, o animal e o vegetal. O conjunto, cósmico, alude ao ciclo natural e contrapõe verticalmente o telúrico, o rato que evolui num líquido lamacento, ao aéreo, a árvore que demanda o céu.


Na Grécia, em particular na Beócia, descobriram-se várias estatuetas de terracota que, datadas por volta do século IV aC, podem ser, de algum modo, consideradas antepassadas da velha de Hieronymus Bosch. Das figuras 5 a 7, destaco a última, da coleção do British Museum, pelo seu dinamismo e exposição comunicativa, significados pela posição, boca aberta e dobras da roupa, expressivas do movimento e da tensão dos contrários. Parece falar, cantar ou rir animadamente enquanto cuida da criança.
Entre a criança ao colo e a gravidez vai apenas um passo no tempo. Um passo atrás que desenha uma ligação ainda mais íntima entre a vida e a morte.
“Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: É a morte prenhe, a morte que dá à luz” (Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, São Paulo, HUCITEC, 1987, pp. 22-23).


Só de as imaginar, estas pequenas estatuetas de terracota provenientes de Kertch, na Crimeia, fascinam. Há anos que as procuro. Mas se a Internet é pródiga quando o tema de pesquisa é abrangente, costuma mostrar-se somítica quando este é deveras específico. Não obstante, alguns autores (e.g. Katia Vanessa Tarantini Silvestri, Carnavalização como transgrediência da multidão, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos, para a obtenção do Título de Doutora em Linguística, São Carlos, 2014, pp, 134-135) contemplam uma estatueta que condiz com as velhas grávidas de Mikhail Bakhtin: uma mulher, em pé, aparentemente idosa e grávida (Figura 8). Provém de Kertch, contanto se encontre no Museu do Louvre, em Paris, e não no Museu L’Ermitage, em São Petersburgo. Cada vez que observo esta “velha grávida” convenço-me que é precursora da Gioconda: não consigo descortinar se está ou não a rir.
Não muito longe de Kertch, na região de Beócia, na Grécia, foi descoberta uma estatueta com uma mulher, agora sentada, numa postura semelhante à da velha ama com bebé da figura 7: idosa, obesa e, com boa vontade interpretativa, grávida e risonha (Figura 9). Também não está no L’Ermitage, mas no British Museum. Condiz com as figuras de terracota de Mikhail Bakhtin. Convergem, inclusivamente, na data: por volta do século IV aC).
Antes de prosseguir este rosário de imagens com velhas com crianças, ao colo ou no ventre, ilustrativas do ciclo da vida e da morte, importa proceder a um desvio pela mitologia grega. Produzida há mais de 4500 anos, a “Vénus Adormecida”, do Museu Nacional de Arqueologia em Valetta (Malta), servir-nos-á como chave ou introito. Dorme, redonda, como a Terra Mãe, à espera da regeneração (Figura 10). Um sono de Inverno com sonho de verão. Batizaram-na Vénus (Afrodite, na mitologia grega). Parece aguardar, durante o inverno, o belo Adónis.
Afrodite apaixonou-se por Adónis ainda este era criança. Entregou-o à guarda de Perséfone, que, por seu turno, também se toma de amores por ele. Ambas reclamam Adónis. Zeus, chamado a pronunciar-se, é salomónico. Divide o ano em três partes iguais: durante os meses de inverno em que as sementes estão soterradas, Adónis vive no inferno com Perséfone; na primavera, quando as sementes germinam, Adónis vive com Afrodite; os meses restantes ficam à escolha de Adónis, que opta por Afrodite. Adónis é o deus da morte e da ressurreição, um deus ctónico, associado à vegetação. Durante a sua estadia no submundo, a terra é estéril. A partir da Primavera, a terra torna-se fértil. A vida enterra a vida, a morte dá à luz a vida. Sem tréguas, nem dramas. Uma tragédia.
A própria Perséfone, igualmente bela, teve um destino similar, embora com enredo e protagonistas distintos.
Divertia-se Perséfone, filha de Deméter, por entre as flores quando ao aproximar-se de um narciso se abriu uma fenda no solo através da qual Hades a raptou e levou para o submundo. Ignorando o sucedido, Deméter, deusa associada à maternidade, a tudo que envolve a plantação, a nutrição e o crescimento, mas também à morte, à destruição e à transformação, procura a filha, sem comer, dormir ou banhar-se, durante nove dias e nove noites. Informada do rapto por Hélio, deus do Sol, assim como da conivência de Zeus, retira-se do monte Olimpo e, disfarçada de velha, divaga, inconformada, por cidades e campos. Em Elêusis, manda construir um templo em sua honra, onde permanece isolada e inativa. Sem a sua ação, nada germina, tudo permanece estéril. A miséria ameaça destruir a humanidade, privando os deuses das suas ofertas e sacrifícios. Após várias tentativas infrutíferas para demover Deméter, Zeus acaba por ordenar a Hades a libertação de Perséfone. Antes da partida, Hades oferece sementes de romã a Perséfone que as saboreou. Durante o reencontro, Deméter pergunta a Perséfone se tinha comido alguma coisa no submundo. Fatalmente! Por causa das sementes de romã, Perséfone resulta condenada a ser, durante o
inverno. rainha do submundo junto a Hades [sina semelhante à de Adónis]. Deméter devolve a fertilidade à terra e promove os Mistérios Elêusianos, festival durante o qual as pessoas “adquirem sabedoria para viver com alegria e morrer sem medo da morte” (remeto a análise do mito de Perséfone para o estudo de Camila Golegã e Luciana Romano Hernandes: “Deméter e Perséfone – A inexorabilidade cíclica da natureza” (https://offlattes.com/archives/author/camila-golega; acedido em 28.08.2022). Retenho, contudo, um pormenor: as sementes de romã. Até as sementes podem desempenhar um papel negativo, neste caso, a condenação de Perséfone. Símbolo por excelência da fecundidade, as sementes também padecem da duplicidade do devir. Morrem e renascem duas vezes: enterradas, para dar o trigo; queimadas para dar o pão. Pela terra e pelo fogo.
Mas nem a intensidade semiótica da semente nem o ciclo cósmico justificam o desvio pela mitologia grega. Este faculta, na verdade , o acesso a uma figura mítica tão pouco conhecida quanto prodigiosa: Baubo, “um arquétipo da vida, da morte e da fertilidade”, “deusa pagã grega da alegria e obscenidade, com a forma de uma velha gorda que exibe publicamente os genitais” (Figuras 11 a 13), mencionada, entre outros, por Goethe, em “Noite de Walpurgis” do Fausto (1808), e Nietzsche, na Introdução de A Gaia Ciência (1882).



“Imagens com mulheres grávidas e mulheres com as pernas abertas passaram a ser representadas em terracotas de estilo Tanagra no Egito a partir do período ptolemaico [iniciado em 323 a. C. Algumas terracotas apresentavam os atributos de Ísis-Afrodite e possuíam um corpo gracioso. Outras tinham escasso ou nenhum atributo, um corpo rechonchudo e pernas abertas para exibir os genitais. A estas terracotas estranhas costuma chamar-se Baubo, o nome de uma velha senhora que mostrou os seus órgãos genitais a Deméter para distraí-la da dor provocada pela perda de Perséfone. O nome Baubo aparece nos Fragmentos órficos de Clemente de Alexandria e Arnóbio que descrevem o episódio do rapto de Perséfone. Baubo também era alvo de culto, em conjunto com Deméter, em várias áreas do mundo grego, como demonstram diversas inscrições e estatuetas. O motivo para atribuir a designação “terracotas Baubo” a estas terracotas egípcias decorre da postura assumida de exposição dos genitais tal como Baubo fez com Deméter. Um outro motivo prende-se ainda com uma outra relação clara de algumas dessas terracotas egípcias com Deméter: existem vários exemplares com a imagem egípcia de Baubo sentada num javali [Figura info], gesto que lembra os javalis selvagens sacrificados durante o festival grego da Thesmophoria. Tanto os rituais da Elêusis como a Thesmophoria eram celebrados na região de Elêusis em Alexandria, com provável recurso a estas terracotas nestes contextos (Nifosi, Ada (2021) The Throw of Isis-Aphrodite: a rare decorated knucklebone from the Metropolitan Museum of New York. The Journal of Egyptian Archaeology. Acedido em 28.08.2022).


Existem várias versões do episódio de Baubo, algumas mais circunstanciadas e excêntricas como a comentada por Sigmund Freud num pequeno texto de 1916 (“Parallèles mythologiques à une représentation obsessionnelle plastique”, Essais de psychanalyse appliquée, Paris, Éditions Gallimard, 1971, pp. 83-85).
“Baubo é a esposa mítica de Disaule, bem como a empregada/ama que acolhe Deméter em Elêusis – o umbigo esotérico da Europa – quando esta procura desesperadamente a sua filha Perséfone. Recusando-se Deméter a tocar na comida, Baubo fá-la rir levantando o vestido e mostrando obscenamente os seus órgãos genitais. Iacchus, seu filho, também é reputado ter estado presente nesta cena, e ter aplaudido descontroladamente – o que provoca o riso de Deméter e enfatiza o lado cômico do episódio. Em algumas versões da história, diz-se que Iacchus rastejou sob as saias, de tal modo que seu rosto apareceu no lugar dos genitais quando Baubo exibiu suas partes púdicas, o que pode ser lido como uma alusão à fertilidade de Baubo – ela pode estar grávida – e, portanto, como um sinal de esperança para a fecundidade muito mais significativa que a própria Deméter tem que reencontrar, a fim de resgatar o mundo do inverno eterno” (Michele Cometa, “The Survival of Ancient Monsters: Freud and Baubo” in Raul Calzoni / Greta Perletti (eds.), Monstrous Anatomies. Literary and Scientific Imagination in Britain and Germany during the Long Nineteenth Century, Göttingen, V&R Unipress, 2015, pp. 297-310).


Baubo oferece-se como uma súmula de todas as situações, ações e propriedade até agora consideradas: é uma velha, grávida e com criança, pujante, cuja sexualidade desbragada provoca alívio e riso. Integra uma mistura de ações e atributos, um concentrado semiótico capaz de rivalizar com a “a velha com bebé ao colo” de Hieronymus Bosch. Condensa luto, fecundidade e jovialidade numa fusão apotropaica transbordante de sexualidade e humor. Os opostos mais do que se alternar ou de se (su)ceder uns aos outros coexistem. Prevalece a conjunção em detrimento da disjunção. Baubo é, simultaneamente, morte e vida, Eros e Thanatos, ordem e caos, tragédia e comédia, luto e esperança. Esta leitura corresponde, naturalmente, a uma interpretação, uma camada subjetiva de sentido que reveste Baubo. Tomando o presente texto como um todo, como um retrato, Baubo arrisca, com a sua turbulência, oferecer-se como um punctum, “o detalhe que preenche toda a fotografia” (Roland Barthes, A Câmara Clara, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 73).
Chegada a navegação a esta “bacia semântica”, terão os nossos olhos visto o que de essencial há para ver? Saturou-se o imaginário? A modernidade e a pós-modernidade pouca ou nenhuma originalidade acrescentam, limitando-se a repetir e reciclar? Convenha-se que, mínimas ou não, algumas alterações e inovações se verificaram.
A morte passa a ser menos disfarçada ou subentendida. A velha tende a ser substituída pela própria morte ou, mais precisamente, pela sua principal imagem-signo: o esqueleto. Volvidos quatro séculos da conclusão das Tentações de Santo Antão, no quadro A Morte e as Máscaras, datado de 1927, de James Ensor, destaca-se, entre os mascarados, um recém-nascido segurado ao colo não de uma velha mas de um esqueleto, a única figura sem máscara (Figura 18). Ressurge este tópico, por exemplo, nos motivos para tatuagem criados por Mason Williams (Figura 19).

Mas esta diferença não deve ser sobrevalorizada. Inúmeros esqueletos, com ou sem carne, passeiam-se pelas pinturas e gravuras medievais e renascentistas. E fazem praticamente tudo o que é caraterístico de um ser humano (ver Vida de Esqueleto II. O Espelho: https://tendimag.com/2017/09/30/vida-de-esqueleto-ii-o-espelho/). Não é, aliás, de descartar a possível existência, que admito desconhecer, de uma qualquer imagem com um esqueleto a dar colo a uma criança. Registe-se que alguns esqueletos das danças macabras parecem tentados a embalar um berço. Por exemplo, na gravura da dança da morte mais antiga de que se tem conhecimento situada no cemitério dos Santos Inocentes, em Paris (Figura 20).
Cumpre a Georg Grosz, pintor da desgraça humana do século XX, patentear a principal singularidade da nossa era. Na pintura Estou feliz por estar de volta, de 1943, um esqueleto andrajoso rasga a carne ensanguentada de um ventre rumo à luz, ao exterior, ao mundo (Figura 21). Eis a nova marca dos dois séculos mais recentes, modernos ou pós-modernos. Já não é só a morte que apaga a vida, a própria vida dá à luz a morte. No novo imaginário, muda a física, a geografia, e a orgânica, a progenitura, da relação entre a vida e a morte, este mundo e o outro. Nos séculos antigos, se o diabo andava, omnipresente, à solta, o inferno situava-se no Além, no outro mundo. Agora, o inferno está entre nós, “o inferno são os outros” (Jean-Paul Sartre, Huis Clos, 1944) ou, mais lucidamente, “somos nós”. Numa “sociedade mortífera”, a própria vida se encarrega de gerar a morte.
Autor: Albertino Gonçalves
Natais há muitos. Boas festas!

Recente, ainda quase sem visitantes, o blogue Margens faz questão de desejar boas festas. O “postal”, alusivo à cooperação internacional, é do Miguel Bandeira e o texto, atento à diversidade de mundivivências do Natal, da Rita Ribeiro. Abordam o reverso da atual encenação artificial da felicidade: a solidão e o sofrimento de parte substantiva da população. Temas pouco habituais neste tipo de mensagens. Convém, todavia, recordar que este reverso menosprezado foi outrora a principal vocação do Natal: a solidariedade e a partilha de modo a preservar a coesão social. Nas sociedades agrárias, a falta de cereais sentia-se já pelo Natal e ameaçava a sobrevivência até às próximas colheitas. Morria-se mais de fome. À semelhança de outras festas de inverno, como o S. Martinho, o São Nicolau ou os Reis, o “espírito natalício” assegurava um mínimo de redistribuição de bens em benefício dos mais carenciados. Não tinha Cristo prescindido da sua gloriosa divindade para vir ao mundo como um ser humano humilde e vulnerável? Importa não desviar o olhar, até porque o momento talvez seja de inflexão civilizacional e os ventos desaconselhem consumismos, desperdícios, descuidos e soberbas.
Para acompanhar, descontraidamente, o postal do Miguel Bandeira e o texto da Rita Ribeiro, segue uma pequena compilação de cânticos de Natal, interpretada pelo Ensemble Obsidienne.
Comentários Recentes