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Autópsia de um crime com revolução em fundo

Luís Cunha

Revisitar o momento e acompanhar as circunstâncias em que Aldo Moro foi executado pelas Brigate Rosse (BR) em Itália leva-nos a olhar o passado como se este fosse um país estranho, para usar aqui uma formulação de uso corrente. É a essa viagem que nos convida Marc Bellocchio em Esterno Notte, uma série em seis episódios, recentemente disponibilizada numa plataforma de streaming. O espetador sabe que Aldo Moro foi executado, pelo que não é a incerteza do desfecho que nos leva a querer ver o episódio seguinte.

Tenho para mim que a virtude maior de Esterno Notte é a sobriedade quase documental com que nos leva a (re)visitar um tempo histórico recente e que, no entanto, nos parece estranhamente distante, como se não fosse parte do que somos hoje.

Naquele final da década de 70 vivia-se um tempo ainda incerto quanto ao rumo que o mundo haveria de tomar e que nos trouxe até aqui. Na verdade, usando a frieza analítica que a distância temporal nos permite, sabemos hoje que os dados estavam já lançados e que a grande viragem, aquela que levaria à substituição do consenso social-democrata pelo consenso neoliberal, iniciara já uma marcha irreversível. Podendo ser vista como um filme dividido em seis capítulos, a série Esterno Notte leva-nos a esse período agitado, concretamente a 1978 e aos dois meses que durou o sequestro de Aldo Moro. Recorde-se que o sequestrado foi uma das figuras maiores da política italiana do pós-guerra: primeiro-ministro em meados da década de 60, responsável por várias pastas em diferentes governos, era, à data dos acontecimentos, líder da Democracia Cristã e um dos principais defensores do entendimento político com o Partido Comunista Italiano, o famoso Compromisso Histórico. O ano de 1978 é um bom ponto de partida para percebermos um período que agora nos parece estranho, mas também, e sobretudo, para nos ajudar a perceber essa estranha dialética entre as escolhas que homens e mulheres concretos fazem a cada momento e essa indefinida mas poderosa força que desenha o ar do tempo e condiciona, às vezes de forma decisiva, o que se escolhe fazer.

A execução de Aldo Moro assinala, simultaneamente, o ponto de máxima notoriedade e de declínio de uma força política armada que foi responsável por dezenas de assassinatos em Itália. Fundadas em 1970, as BR podem ser vistas como produto de uma dobra histórica que ganhou visibilidade em maio de 68 em Paris, para depois assumir as variadíssimas expressões que durante décadas marcariam o espaço político da Europa Ocidental. A sua face mais radical revelou-se na criação de grupos políticos armados, descrentes das virtudes da democracia representativa e que se viam a si próprios como os agentes que operariam a verdadeira revolução, desígnio que justificava o sacrifício próprio e a punição dos que se lhes opunham. As suas ações estendem-se entre as décadas de 60 e 80, desenhando o que, cerca de meio século depois, nos parece um “país estrangeiro”, assustador pelos atos praticados mas também sedutor pela demonstração da força que há nas ideias e nos sonhos de mudança.

Espreitemos os atos, sem sair do tempo retratado na série. Poucos meses antes do sequestro de Moro vivera-se na República Federal Alemã o chamado Outono Alemão, marcado pelo assassinato, às mãos da Rote Armee Fraktion (RAF), vulgarmente conhecida como grupo Bader-Mainhof, de um Procurador-Geral e de duas ilustres figuras ligadas à banca e à indústria. Um ano antes, os Revolutionäre Zellen, em cooperação com a Frente Popular para a Libertação da Palestina, sequestrara e desviara para o Uganda um voo da Air France, dando continuidade a um foco de intervenções em nome da libertação da Palestina que começara pouco antes, com um ataque à sede onde reuniam os países produtores de petróleo. Também em Portugal, nesse mesmo ano de 1978, um agente da Polícia Judiciária é morto e dois outros feridos numa operação militar contra o Partido Revolucionário do Proletariado – Brigadas Revolucionárias (PRP-BR), estrutura criada em 1973 e que se extinguiria em 1980, com alguns dos seus membros a transferir-se para Projeto Global/FP25.

Muito diferentes entre si, estes e outros movimentos convergiam na legitimação da luta armada contra as estruturas de poder e figuras a elas associadas, embora divergissem, frequentemente, no matiz ideológico que os inspirava. Um cartaz do PRP-BR sintetiza a convergência: “A arma é o voto do povo”, proclama, acrescentando, “Não às eleições. Sim à Revolução Socialista”. Justificavam-se assim as ações armadas contra os símbolos e as figuras do poder, onde se incluem assaltos a bancos, sequestros ou assassinatos de figuras políticas ou ligadas à alta finança e indústria.

Em países como Itália e Alemanha foi igualmente importante o combate a figuras saídas diretamente do nazismo e do fascismo para a democracia do pós-guerra. No plano das ideias, eram muitas as subtilezas ideológicas evocadas na margem esquerda dos partidos comunistas europeus, onde todos estes movimentos se situavam, mas era usada uma palavra que efetivamente os unia: Revolução! Entrevistado pelo L’express a propósito dos acontecimentos de Maio de 68, Henri Lefebvre usara-a também de forma expressiva: “Julgo que os acontecimentos que se acabaram de desenrolar são o esboço da primeira revolução do século XX” [In A Revolta de Maio em França, Cadernos Dom Quixote, 11, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1968, p. 107]. Remetendo a revolução russa para o século XIX, Lefebvre à semelhança de outros intelectuais, como Sartre, sinalizava uma novidade com potencial para desenhar um novo tempo. Este não é o lugar para escalpelizar um esboço de desenho que nunca ganhou traço firme, mas onde se combinava a crítica ao centralismo democrático e à vanguarda dirigente com a projeção de uma frutuosa conciliação entre trabalhadores e estudantes, na tentativa de encontrar um sentido para um mundo que estava a mudar demasiado depressa e que, vemo-lo agora, não parou desde então de acelerar nessa mudança.

A estranheza, a ela volto, é a que resulta de hoje olharmos um tempo em que a ideia de Revolução não só fazia parte do quotidiano como transportava em si a abertura a uma imaginação política que não se continha na proclamação supostamente racional de que «Não há alternativa». Parece-nos distante e no entanto, vendo de outra forma, a eterna tensão entre a dúvida que nos constrange e a certeza que nos empurra para a ação são as de sempre. No episódio 4 de Esterno Notte há um episódio particularmente revelante no equilíbrio dramático da série e que remete para essa constante. Trata-se de um diálogo entre o casal de brigadistas ligados ao sequestro de Moro que vamos acompanhando desde o início da série. Ela desconfia da utilidade da estratégia política que está a ser seguida nas negociações associadas ao sequestro, afirmando que não bastam jogos daquele género para vencer e agitar as massas. Ele pergunta-lhe se acredita mesmo que conseguirão vencer e conquistar o poder. Percebemos que para ele não se coloca qualquer horizonte de vitória, “Che Guevara é o nosso herói e será o nosso fim”, afirma, e acrescenta “A minha verdadeira paixão não é a revolução mas a transgressão, rebelar-me contra as ordens, desobedecer”. É em nome destes objetivos limitados que ele se mostra disponível a sacrificar Moro, tal como sacrificou a sua vida pessoal. Este realismo colide com a crença da companheira na revolução, em nome da qual, como lhe recorda, abandonara uma filha e aceitara fazer um aborto. Toca-lhe ainda mais fundo quando lhe diz que em nome de uma revolução em que não acredita ele aceitara matar cinco pais de família, referindo-se aos guarda-costas que acompanhavam Aldo Moro na altura do sequestro.

Entre o ceticismo e o desencanto, este casal ficcionado por Bellocchio coloca-nos perante dilemas que não se encerraram com a extinção dos partidos e grupos que há cerca de 50 anos levaram a cabo centenas de atentados contra o sistema de poder. As perguntas permanecem: as mudanças conseguidas num quadro institucional são conquistas que nos servem ou distrações que nos afastam de transformações reais? Podemos nós falar e agir em nome de alguém que não nós próprios? Faz sentido combater o ar do tempo ou devemos deixar que ele nos leve? Sobra a convicção de que o passado é mesmo um país estranho e a certeza de que a estranheza que hoje sentimos ao ver Esterno Notte é equivalente à que sentirão os futuros espetadores de uma série que retrate algum episódio trágico dos nossos agitados dias, por exemplo a tomada dos símbolos de poder em Washington ou Brasília a que recentemente assistimos. Também ali há fé e convicção, febre e cegueira; homens e mulheres que acham que estão no centro da História e outros a que basta a adrenalina da transgressão. Comparação espúria, bem sei, apenas permitida em nome dessa estranha matéria que é o tempo e do incerto sentido que nele descobrimos.

Luís Cunha, professor da Universidade do Minho, doutorado em Antropologia, é autor de A nação nas malhas da sua identidade (1994), Memória social em Campo Maior (2006) e Vinte mil léguas de palavras (2017; Prémio Nacional do Conto Manuel da Fonseca 2016).

Os bons nómadas

Esser Jorge Silva

Dos nómadas fica-nos o romantismo de Bruce Chatwin (1940-1989). Repete-se aqui a história que, de tantas vezes escrita e rescrita, fixou a lenda do antigo porteiro da leiloeira Sotheby’s transformado primeiro em especialista do impressionismo, seguindo-se o cargo de diretor da referida leiloeira. Anos depois de abandonar um curso de arqueologia e de se dedicar à narrativa numa coluna sobre arte no Sunday Times, Chatwin desapareceu deixando na sua secretária uma célebre nota: “fui para a Patagónia”. Na verdade cumpria um dos seus desejos muito íntimos na descoberta de locais de tal modo possuídos pelo desinteresse ao ponto de apenas fugitivos, foragidos, apátridas, ladrões e assassinos por lá se acercarem. Além de tentar saber sobre brontossauros, almejava uma vida longe numa casa “baixa, feita de troncos com um telhado também de madeira e bem calafetada contra as tempestades; lenha a arder na lareira, as paredes cobertas com os melhores livros, um lugar onde viver quando o resto do mundo fosse pelos ares” naqueles dias em que se instalara uma dita guerra fria.

Figura 1 – Na Patagónia de Bruce Chatwin e Patagónia Express de Luís Sepúlveda onde o chileno relata o encontro com o inglês.

Por ali andou anotando conversas, olhares, paisagens, flores, fauna, flora, lendas e histórias com sucessivas personagens que se revezavam em entradas de cena provindas de recantos cheios de non sense, como se fossem produto de mágicas saídas de onde a imaginação não alcança. Anotava as andanças nuns pequenos caderninhos pretos muito jeitosos, de capa dura e tamanho gracioso, até se cruzar certa noite com uma outra alma perdida na inquietude, um ex-segurança ali exilado, que no dia 11 de setembro de 1973 se havia salvo à vigésima quinta hora do Palácio La Moneda, em Santiago, no exato momento em que as balas perfuravam o corpo do seu presidente Salvador Allende. Nos caderninhos pretos, o “inglês nómada porque não podia ser outra coisa”, colhia dados para o seu futuro memorável “In Patagónia” (1977, editado em Portugal pela Quetzal Editores). Enquanto isso, Luís Sepúlveda (1949-2020), o “chileno exilado porque não podia deixar de ser outra coisa”, entrava no nono ano vagamundeando entre o Rio Negro e Ushuaia à espera de autorização para entrar na Alemanha. Destas deambulações nasceria “Patagónia Express” (1995, editado em Portugal pela Porto Editora) cujo primeiro capítulo “apontamentos de uma viagem a lado nenhum” revela, sem despudor, o aqui e agora depositário do espírito nómada.

Chatwin anda por ali subindo e descendo as Terras de Fogo carregado de Moleskines, esses caderninhos pretos cujos utilizadores passados, desde Van Gogh, Celine, Picasso ou Hemingway, parecem tê-los certificado de altar de sabedoria. Ao oferecer alguns a Sepúlveda  recomendou-lhe a numeração das páginas e a indicação de uma recompensa e um endereço para contacto em caso de perda. E o chileno, um marxista com todo o tempo livre nos intervalos da procura da cabana de Butch Cassidy e Sundance Kid, dois famosos assaltantes de bancos que por ali se deixaram morrer, decidiu rezar em escrita a façanha fetichista dos possuidores de um Moleskine fazendo destes caderninhos outrora raros e maravilhosos, não um objeto auxiliar de produção cultural, mas uma artefacto cultivado com o adubo do capital, vendido a preço mais caro do que qualquer produto literário ou artístico que ali se possa meter.

Figura 2 – Moleskines de Bruce Chatwin.

O nomadismo, seja a promessa dos Moleskines ou o sentido do destino pária de Sepúlveda ou a errância de Chatwin, estava dominado pela viagem e pela descoberta, ainda que esta saísse do ângulo mais obtuso de um olhar. Ao nómada interessava pouco ou nada o destino. Deslocava-se para captar e desaparecer levando consigo o sentido, os sons, as cores, os hábitos, a diferença, as particularidades, as contradições, as idiossincrasias, deixando de si uma leve brisa de esquecimento. Em “The Songline” (1987, editado em Portugal com o título “Cântico Nómada” pela Quetzal Editores), Chatwin é arrastado para uma introspeção quase sagrada. Na imensa planície australiana, deixa-se envolver pelos sons aborígenes locais para questionar até que ponto a linguagem não começou pela necessidade poética do canto para marcar o espaço e afugentar os predadores. É uma hipótese. A dúvida abraça o nómada, mesmo quando o seu espírito é convocado. No póstumo “What Am I Doing Here” (1989, coleção de textos publicados em Portugal com o “O que faço eu aqui” pela Quetzal Editores) o nómada desespera com a incompreensível falta de sentido da sua passagem pela geografia. A pergunta é a mais sincera cedência do nómada à ausência de objetivo no seu errar acidental por trilhos desconhecidos a caminho de nenhures, talvez a ilha da utopia.

Figura 3 – The Songlines (Cântico Nómada): quase-ficção ao serviço da antropologia.

Por oposição ao que atualmente é apresentado do nomadismo, Sepúlveda e Chatwin eram nómadas analógicos. Os novos nómadas são “digitais”. Não levam a capa dura do Moleskine, nem precisam de numerar páginas ou oferecer recompensas pela perda das notas do campo. Os nómadas digitais são muito concretos na crença de que tudo fica na cloud, esse infinito e invisível depósito de tudo que apesar de voar acima das consciências se afirma o mais seguro dos armazéns. Rezam as notícias que há agora uma caneta com Moleskine a propósito, capaz de digitalizar os rabiscos do nómada. A smart pen é um desses utensílios que realiza o milagre da transformação do “nómada analógico” em “nómada digital”. 

Figura 4 – A smart pen na transformação do analógico em digital

Contrariamente aos nómadas analógicos, os nómadas digitais não existem para perpetuar memórias, captar sentidos do lugar, compreender especificidades da geografia, entender personagens. Destinam-se a registos digitais, ato que não acolhe a poesia do lugar que os alberga. Não vão atrás da mágica humana na realização do filme da existência. Pelo contrário, procuram a fórmula algorítmica que embebeda a mente humana. A fantasia imaginária, matéria prima dos andarilhos, dá lugar a um certo fantástico virtual da realidade de sofá.

Enquanto os nómadas analógicos passavam despercebidos, os nómadas digitais são disputados pelos Estados como uma nova mercadoria. Diria Karl Marx que há fetichismo aqui. Verdadeiros nómadas tinham valor intrínseco, autoral e com autoridade inscrita nos seus corpos. Nómadas digitais são reconhecidos por um tipo de valor externo e subordinado ao valor de troca do seu produto que lhes escapa para uma qualquer multinacional. São uma forma fácil de registar exportações de serviços e fazer entrar capitais. Por todo o mundo se produz legislação para acolher os novos nómadas. Já não é nómada quem quer ser mas quem o Estado determina. Como é fácil de perceber, não há delicadeza nem afeição nas leis que recebem o nómada digital. Nesta contradição nómada, o original que voava livre sobre a realidade, caminha agora cauteloso sob regras, leis e diretivas.  

Figura 5 – Representação típica do nómada digital na Internet: sentado ao pé da água, mergulhado num ecrã

Os velhos nómadas eram-no e ponto final. Nem eles sabiam que o queriam ser. No final da jornada podiam assim ser categorizados, não por estatuto mas por falta dele. Os novos nómadas só o podem ser com autorização. Almeja-se dos nómadas digitais que gostem muito da terra, apreciem o sol e a praia, os baixos preços dos restaurantes e os bons profissionais de limpezas sempre prontos a limpar o pó e a arrumar a casa. A grande esperança passa por se transformar os nómadas digitais em normais habitantes digitais e assim, de uma assentada, melhorar a estatística e a literacia digital do país. A diferença é que tanto Sepúlveda como Chatwin perceberam o nomadismo como “Anatomy of Restlessness” (1997, editado em Portugal com o título “Anatomia da Errância” pela Quetzal Editores). A inquietação não só dominava todos os sentidos do nómada analógico como convocava o seu espírito de partida permanente. A utopia de aportar num melhor lugar desfiava o devir e convocava a errância. Mas os nómadas digitais não podem perceber a errância porque, como diria Simmel, estão mais próximos da forma do mercador do que da forma do viandante.  

Esser Jorge Silva, doutorado em Estudos de Comunicação, Professor Adjunto no Instituto Politécnico do Cávado e do Ave (IPCA), é autor de Histórias de Guimarães (1999), O Que Fica no Coração (Org. 2012), Teleférico da Penha – Imaginário e Tealidade / Biografia do primeiro teleférico construído em Portugal (2014), Tempo Livre Guimarães / 20 anos – História de uma Estratégia Municipal para o Desporto (2019) e Nascimento da Unidade Vimaranense (2021).

Quando o vigiado se torna vigilante

Pedro Rodrigues Costa

Figura 1. O vigiado vigilante

Ao refletir sobre o modo como o edifício penal atuava sobre os sujeitos, Michel Foucault (1926-1984), em Vigiar e Punir (original de 1975) (1), discorreu sobre uma nova tecnologia em curso: o aperfeiçoamento, entre os séculos XVI e XIX, de todo um conjunto de processos para policiar, controlar, avaliar, adestrar os indivíduos, torná-los mais dóceis, com melhor desempenho e úteis. Vigilância, exercícios, manobras, notas, níveis e lugares, classificações, exames, registos, toda uma forma de submeter os corpos, de dominar as multiplicidades humanas e de manipular as suas forças se desenvolveu durante esse período nos hospitais, no exército, nas escolas, nos colégios ou nas oficinas: a disciplina.

Esta reflexão, inspirada incialmente por George Alliger(2), vem de certo modo criar ramificações com muitas das minhas investigações dos últimos 15 anos. Um Estado moderno que criou um roteiro do qual os sujeitos dificilmente podem escapar: uma socialização permanente que os encaminha para a família, para a escola, para o exército, para o hospital e, em caso de falha, para a prisão (punição). Um Estado panóptico, figura arquitetónica criada por Jeremy Bentham, para maximizar a vigilância no interior de uma prisão, e que servira de metáfora a Foucault para descrever a atuação de um Estado moderno: a prisão “perfeita” seria aquela em que quem está no seu interior não sabe que está a ser vigiado, ainda que viva permanentemente sob o olhar vigilante da autoridade e sem saber como e quando é observado. A arquitetura panóptica era pensada para a luz passar, para que tudo fosse facilmente iluminado e observado, para que tudo fosse escrutinado – tal como o sujeito do Estado moderno. Esta visão acabou por conduzir à ideia de substituição da prisão por uma sociedade de vigilância, associada à multiplicação de ecrãs (2). Aquilo que há 14 anos apelidei de sociedade ecrãnica.

Figura 2. Arquitetura panóptica de Jeremy Bentham

Este padrão assente numa individuação vigilante foi-se alastrando, sobretudo a partir do século XX. Progressivamente, foi saindo do controle do Estado em direção ao sujeito. Leis mais libertárias, aumento da relação produção-consumo em todas as esferas e crescimento exponencial de tecnologias de empoderamento individual (quer no conhecimento como na ação e na mobilidade), ainda que sob crescente vigilância de Estado, complexificaram os modos de agir, pensar e sentir. E, de igual modo, a arquitetura panóptica foi sendo introduzida nos diversos sistemas existentes, ora fugindo do controlo do Estado, ora se aproximando através de um conjunto de ferramentas cada vez mais complexas.

Entre as principais ferramentas de controlo, a comunicação de massas foi sendo vigiada, senão comandada, pelos Estados. Mas também pelas grandes empresas, que se tornaram quase Estados dentro de um ou mais Estados. O conceito de empresa multinacional tinha, de certo modo, uma ideia inicial de independência face a um Estado como forma de aumentar o seu poder. Algumas multinacionais, sobretudo no final do século XX, perceberam na World Wide Web uma forma de se tornarem super-Estados quase independentes (ou muito pouco dependentes). As gigantes Microsoft ou a Google Inc. são dois bons exemplos.

Empoderar os sujeitos foi algo crescente na fusão empresas-tecnologias-self. Esta tríade fez aparecer as redes sociais digitais. Se IBM, Microsoft ou Google criavam estruturas para a produção de serviços e artefatos informáticos e digitais, as redes sociais digitais recriavam novos mundos sociais. O sujeito-avatar na rede, uma nova possibilidade de existência desterritorializada, tornou-se uma ideia de negócio poderosa. No dealbar do século XXI, Hi-5, Second Love ou Facebook tornaram-se as primeiras empresas com estes desígnios. A ideia de que o sujeito pode ter uma outra vida, ou a mesma, mas arreigada a um princípio de imagem e no interior de uma dimensão digital, tornou-se uma ideia de sucesso. São, hoje, milhares de milhões os utilizadores das mais diversas formas de rede digital. Isso, tal como nos recordava bem Norbert Elias aquando da existência de uma transição para algo mais alargado e complexo, gerou novos padrões de individuação(3). Com as redes digitais, a vigilância da sua rede passou para as mãos do sujeito, mas também para as mãos de grandes multinacionais: algoritmos controlam os gostos, os ódios, os prazeres, sugerindo listas de conteúdos e assim unindo pessoas com elementos em comum. Doravante, o sujeito cria e recria a sua rede, permite ou impossibilita a sua aparição na visão de outros, reage ou comenta a ação digital de outros da sua rede. Ao fazê-lo, vigia e é vigiado.

Figura 3. O olhar vigilante das redes sociais digitais

É aqui que nos aparece uma lição dada por Franz Kafka, num pequeno conto intitulado The Watchman (o vigilante), presente no livro Parábolas e Fragmentos (original de 1947) (4). Nesse conto, o narrador descreve um momento curioso: a passagem por um vigia sem que ele o tivesse visto. Ficando horrorizado com essa ausência de vigilância, o narrador terá voltado atrás dizendo ao vigia que o tinha feito sem que esse o tivesse visto. O vigia ignorou o narrador, olhando em frente. Mas o narrador insistiu que não deveria ter feito isso, não obtendo, também aí, qualquer reação do vigia. Intrigado, o narrador questiona: o seu silêncio significa que tenho permissão para passar?

Traduzido por Gabriel Josipovici e citado pelo blog yolacrary.blogspot.com, com o título The Existence Machine: The watchman said nothing, a parábola surge-nos de forma curta mas concisa:

“I ran past the first watchman. Then I was horrified, ran back again and said to the watchman: ‘I ran through here while you were looking the other way.’ The watchman gazed ahead of him and said nothing. ‘I suppose I really oughtn’t to have done it,’ I said. The watchman still said nothing. ‘Does your silence indicate permission to pass?'”(5).

O facto de o vigilante não fazer nem dizer nada, de estar apenas presente, tem um impacto profundo: gera no narrador kafkiano uma culpa que o leva a revelar a omissão. De facto, o vigia não percebe que existe uma infração original porque olhava para o outro lado, sendo o narrador a ganhar a consciência para corrigir o erro. Ou seja, o vigiado passa, ele próprio, a vigilante da norma instituída. Esse não-poder-passar-por-regra leva o vigiado a vigiar a sua própria conduta, fazendo com que este se entregue à autoridade. Neste conto, o narrador interioriza, profundamente, as funções sociais e psicológicas da vigilância.

O efeito de aceitação e de cumprimento da vigilância é inquietante. No início da pandemia da Covid19, nos primeiros meses a partir de março de 2020, foi comum verificar uma forte vigilância dos vigiados sobre a presença do vírus. Mais tarde, sobre a vacinação. Denúncias anónimas sobre pessoas que não cumpriam o estado de quarentena, ou então um tom acusatório sobre aqueles que decidiram optar por não se vacinar, satisfizeram este efeito de vigilância: os vigiados tornaram-se também atentos vigias. Tal transformação gerou um pântano de conflitos, na rua como nas redes digitais. Clusters de pessoas organizaram-se, ora a favor, ora contra esta vigilância permanente. E quando utilizamos o termo “cluster”, é precisamente para evidenciar o que os algoritmos baseados em sugestões e gostos fazem hoje nas redes digitais: misturam, através de conteúdos para visualização nos feeds, pessoas com os mesmos gostos, pessoas com os mesmos interesses e assuntos, pessoas com as mesmas linhas de ação e motivação. Aproxima-se o igual e expulsa-se o outro, o diferente, o que pensa e age de forma diferenciada(6).

Neste conto de Kafka, são evidenciados alguns impactos psicológicos e sociológicos do Estado de vigilância. Um dos aspetos mais mencionados é o facto do sujeito vigiado ter permitido o fim dos seus direitos e liberdades em detrimento do cumprimento da vigilância. Kafka pressentia, em meu entender, acertadamente: um estado de permanente vigilância faz dos vigiados vigilantes, e essa orientação do sujeito para uma vigilância constante causa danos, tanto na psique individual como na sociologia do sujeito. Mais: na maneira do estar-junto. Diria que este é mesmo o maior perigo de se viver, atualmente, nas redes sociais digitais. Ao nos tornarmos vigilantes de pessoas da nossa rede próxima, ao reagirmos em conformidade com um tipo de aceitação ou de reprovação moral ou convencional, e até mesmo ao reagirmos em silêncio, estamos, invariavelmente, a coagir o Outro, a condicionar as suas motivações e gostos, a extrair dele qualquer coisa que é desejada pela nossa subjetividade.

Figura 4. The Whatchman – Comics adaptation of a short story by Frank Kafka. A child runs across a bridge of silent authority (https://www.inkystories.com/comics/the-watchman.html)

Pela perspetiva dos impactos psicológicos do estado vigilante, podemos vislumbrar afeções negativas, mais ou menos temporárias, nas motivações, nos gostos, na satisfação, na ansiedade, no stress e até no desempenho. Num ponto extremo, constata-se que o consumo excessivo de pornografia tende a gerar baixo desempenho sexual. Tal deve-se à criação de padrões de excitação e de expectativas que obtém dificuldade de cumprimento prático. A pornografia como referência do sexuado serve como vigilante do desempenho. Assim, o vigiado pela referência vigia-se a si mesmo, frustrando-se invariavelmente. Já num outro ponto extremo, temos os efeitos indesejados no trabalho quando o trabalhador é vigiado. É que uma administração empresarial sempre vigilante nunca poderá comparar a produtividade de um mesmo trabalhador nas duas situações (de vigiado e de não vigiado). Por seu turno, o supervisor só pode monitorar o monitorado. Há neste processo uma perda de informação que se autoperpetua. A vigilância sobre um trabalhador corrói, em certo sentido, a confiança que os funcionários têm na sua administração, e vice-versa (7)(8).

Ou seja, o vigiado e o vigia misturam-se, diluem-se, fragmentam-se um em direção do outro. A mulher e o homem em atividade sexual passam de vigiados um pelo outro a vigilantes um do outro, tendo como referência padrões externos. Os trabalhadores de uma empresa sentem a vigilância como uma afronta, vigiando a vigilância efetuada, e o empresário que vigia, por sua vez, passa a ser também vigiado. Mais: o desempenho do trabalhador reflete a condição de vigiado (em relação à performance) e de vigilante (em relação à vigilância de que é alvo). Não aumenta nem supera a produção pedida, por exemplo, se esse aumento significar mais à frente um continuum no aumento de produção.

Eis que estamos diante de efeitos de perda de identidade e de discriminação. Fatores que se alastram depois aos impactos na sociologia da vigilância: as relações entre pessoas ficam condicionadas por uma ausência de confiança, sendo que essa ausência atingirá, posteriormente, a motivação e a performance relacional. O namorado que descobre um like da namorada numa publicação de um terceiro elemento pode despoletar uma pré-desconfiança e um aumento do estado de vigilância sobre a própria relação. Mas tal como os namorados, também o cidadãos que detetam, através de uma sucessão de notícias, uma relação de corrupção entre membros de um mesmo governo perdem a confiança nos governantes; tal como deteta o fã de uma personalidade pública, quando a certa altura o seu ídolo não age de acordo com modelos morais dominantes.

Num estado de hiper-vigilância, todos estão sujeitos à vigilância e todos são vigias. A este propósito, importa invocar a ascensão da cultura Wook, ou cultura de cancelamento. A permanente vigilância do outro, do que pensa diferente, do que é oposição, é transformada rapidamente em sanção pela moral, ou mesmo num fácil e ágil rótulo de criminoso (quando se trata de um incumprimento legal). A cultura de cancelamento é mais do que punição legal. É punição social, moral e mediática, com efeitos devastadores. Os exemplos são vários: o movimento de cancelamento, por parte de Hollywood, ao ator Jonnhy Deep, por alegados maus-tratos à sua ex-mulher (que em tribunal não se verificaram); o movimento de cancelamento de músicos como Marilyn Manson ou de Eric Clapton, o primeiro por acusações, por parte da sua ex-mulher, de condutas violentas ocorridas num casamento acabado em 2015, e o segundo por se considerar anti-vacina Covid19; o cancelamento do tenista Novak Djokovic, pelo facto de rejeitar ser vacinado para participar em torneios; o cancelamento da Rússia e dos seus aliados, levando a casos onde crianças e seus familiares de origem russa fossem vítimas, em países de emigração, de xenofobia e de discriminação; entre outros casos menos mediáticos mas que ganham força devido a uma vigilância de condutas que outrora não existia. O instalar de uma cultura do idêntico (Han, 2018), assente num global-politicamente-correto, promoveu o alastramento uma cultura de ódio e posterior de cancelamento sem precedentes. O estado de hiper-vigilância, assente num padrão de dominação globalista, é feito, doravante, em redes digitais. A perseguição está agora transformada no comentário raivoso, odioso e agressivo, em achincalhamento público através de conversações digitais ou de memes.

Voltando à parábola de Kafka: na atual contingência tecnológica, o sujeito não está apenas a infringir e a denunciar-se. Está também a apontar ao mundo o erro do outro, a denunciá-lo, a puni-lo publicamente, a agredi-lo e a violentá-lo. Os impactos psicológicos e sociológicos da atual vigilância são, de facto, profundos e persistentes. Um cenário excessivamente vigilante só pode acabar em conflito. Se a ideia da vigilância é, como bem nos recorda a parábola, a de colocar os sujeitos no desempenho de papeis bem definidos, o seu excesso gera perda de referências e de identidades, produzindo uma desorientação inquietante (9).

(1) Foucault, M. (2018). Vigiar e Punir. Nascimento da prisão. Lisboa: Edições 70.

(2) George Alliger (2022). Kafka warned us: surveillance turns the watched into watchers. Psiche. Link: https://psyche.co/ideas/kafka-warned-us-surveillance-turns-the-watched-into-watchers?fbclid=IwAR0BNZD1OK1LFYAti0Co0dgsa6gdUwPoMLug1s88OkYbEs-cBvHUS5bsnX8


(3) Elias, N. (1993). O Processo Civilizador: formação do estado e civilização. Rio de Janeiro: Zahar.


(4) Kafka, F. (2020). Parábolas e Fragmentos. Lisboa: Assírio & Alvim.

(5) Blog Yolacrary (2008). The Existence Machine: The watchman said nothing. Link: http://yolacrary.blogspot.com/2008/08/watchman-said-nothing.html


(6) Han, B-C. (2018). A Expulsão do Outro – Sociedade, Perceção e Comunicação Hoje. Lisboa: Relógio D’Água.

(7) George Alliger (2022). Kafka warned us: surveillance turns the watched into watchers. Psiche. Link: https://psyche.co/ideas/kafka-warned-us-surveillance-turns-the-watched-into-watchers?fbclid=IwAR0BNZD1OK1LFYAti0Co0dgsa6gdUwPoMLug1s88OkYbEs-cBvHUS5bsnX8


(8) Strickland, L. H. (1958). Surveillance and trust. Journal of Personality, 26, 200–215. https://doi.org/10.1111/j.1467-6494.1958.tb01580.x

(9) Este artigo parte da temática explorada por George Alliger (2022), em Kafka warned us: surveillance turns the watched into watchers (Psiche, 2022) para depois ser relacionado com temas da cultura digital trabalhadas pelo autor ao longo dos últimos 15 anos.

Paisagens transgénicas

Procissão de São Bento do Cando numa paisagem despida da solenidade do sagrado

Sob o signo da amizade, Margens abre o ano com o olhar único de Álvaro Domingues que nos desafia a descobrir as margens no próprio caudal da corrente. Um “bilhete postal” do Miguel Bandeira é acompanhado por uma dezena de fotografias da exposição Paisagens Transgénicas (inaugurada nos Serviços Centrais do Instituto Politécnico da Guarda, em dezembro de 2019) e um excerto (capítulos 1 a 3) do livro homónimo.

Com a cumplicidade de quem se conheceu adolescente, naquele período imberbe de todas descobertas, mais ainda privilegiadamente sobreaquecido pelo Portugal que também se redescobria a si próprio, e também aprendia a democracia – que não é mutação menor para uma sociedade – o Álvaro foi um dos nossos últimos a vivenciar aquilo que, no nosso tempo, sem equívocos, se dizia trocar o campo pela cidade. Deixar os Pais e os amigos de infância, cambiar as tensões identitárias da fronteira pelo cosmopolitismo da cidade, ainda que esta fosse o Porto. Muitas violências para um só jovem, ainda que multiplamente dotado e com raro sentido de humor e, também, essa sensibilidade de artista, que a afirmação da cientificidade das ciências sociais nos anos setenta não reconhecia e teimava em recalcar. Com essa afinação apurada no Coral de Letras, o Álvaro, mais do que afinou a voz teve oportunidade de fazer desabrochar a sua expressão criativa. Talvez, por isso tudo e, seguramente, muito mais, que o próprio, estou certo, um dia nos brindará com as suas memórias, o Álvaro, brilhante aluno da ciência, mobilizado no verdadeiro espírito galilaico reclamou o paradoxal e aquilo que para muitos não passava do inobilitado contraditório. Como lhe disse um dia, ao Álvaro, pode não ter referenciado uma Escola do Porto, não porque lhe faltasse mérito ou reconhecimento, mas porque assumiu um modo de estar epistemologicamente transgressor, dir-se-ia, indisciplinado – por me ocorrer a harmonia feliz de uma razão filial – com os encantos próprios de quem antecipa, de quem resgatou entre nós a paisagem. Para os iniciados, a paisagem pós vidaliana ou ratzeliana… Uma visão para lá da ciência, da cultura e da arte. Quiçá, um novo paradigma…
Já lho disse pessoalmente, o Álvaro é o Pedro Almodovar da paisagem, ou o Emir Kusturica da geografia. As suas trangeniais paisagens, antes demais, são a expressão tragicómica e comovente da nossa condição humana atual, já de si de global e mentalmente transgénica.
Álvaro fico à espera do teu primeiro filme!
Um abraço forte do Sopas, que em tempos também foi geógrafo,
e os votos de um Feliz Ano Novo de 2023!
Auspícios!

Galeria de fotografias da exposição Paisagens transgénicas (carregar nas imagens para as aumentar)

Excerto do livro Paisagens transgéncias

Álvaro Domingues, nascido em Melgaço, em 1959, geógrafo, professor da Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto, é autor de Paisagem Portuguesa (c. D. Belo, 2022), Portugal Possível (c. R. Lage e D. Belo, 2022), Paisagens Transgénicas (2021), Volta a Portugal (2017), Território Casa Comum (c. N. Travasso, 2015), Vida no Campo (2012), A Rua da Estrada (2010), Políticas Urbanas I e II (c. N. Portas e J. Cabral, 2003 e 2011) e Cidade e Democracia (2006).

Santuário da Boa Morte, Correlhã, Ponte de Lima

Eduardo Pires de Oliveira

Corro este Minho onde vivo porque sou minhoto. E porque, mais importante ainda, tenho um imenso prazer em nele viver. Vejo o verde, bebo o verde, umas vezes tinto quando a comida é menos verde, bebo o branco quando o prato me apresenta alimentos que pedem esse verde.

Subo montes ou sigo rios sempre no prazer de conhecer mais e mais este meu, este nosso Minho. Minho que muitas vezes vai além Minho, penetra na Galiza, na mesma geologia, na mesma orologia, no mesmo milho, no mesmo alvarinho, no mesmo povo, no mesmo Labrego, tão bem tratado no celebrado Catecismo, já velho de quase século e meio, de 1889.

As lutas pelo poder foram as mesmas, ora em Santiago onde um Geraldes, um bispo com graves, grandes apetências de operador turístico, descobriu e logo vendeu a toda a Europa um corpo de um S. Tiago que atraiu todos os peregrinos que descobriram no túmulo de imediato criado um contraponto ao desejo cada vez mais impossível de uma ida a Jerusalém.

Ora, em Braga cujos cónegos viram logo que os rendimentos da peregrinação se iriam perder, esses homens quiseram atalhar a sua mais do que possível perda imediata e logo descobriram no Próximo Oriente um Santiago, este Interciso, que fizeram colocar em lugar nobre, numa capela da cabeceira da sua Catedral. Mas ou porque um santo era “maior”, era mais apelativo que o outro, ou porque o vendedor de sonhos e de desejos era melhor do que os outros, o Tiago “galego” ganhou ao “bracarense”, apesar de Braga ser naqueles tempos Primaz das Hespanhas e Santiago não. E o Tiago de Braga logo desapareceu, não no passar da fímbria dos tempos, mas sim derrotado por um marketing mais inteligente, muito mais bem montado.

Sonhos e vendas que têm, para mim, um dos exemplos mais simples e mais difuso nas celebradas fitinhas do Senhor do Bonfim que todos os jovens utilizam, quase sempre não sabendo o porquê de o fazer, usando-as porque sim. Um dia, saboreando um acarajé – depois de provar um abará que não me atraiu tanto, talvez por ser mais “macio” – acompanhado das inevitáveis cervejas para retemperar a garganta, perguntei a uma Amiga baiana, a Maria Helena Flexor, que sabia tudo ou quase sobre aquela sua nova cidade (tinha nascido em São Paulo, um dia fora para Salvador) onde vivia há já demasiados anos, o porquê daquelas fitinhas que cingiam os pulsos, e o que mais me interessava, a sua origem.

A resposta foi negativa, não sabia, era uma tradição, que um dia (qual?, quando?) tivera início. Um dia.

Estava então eu longe de saber que aquelas fitinhas poderiam ter origem quiçá neste meu amado Minho, num dos santuários menos falados deste Minho que tem tantos santuários, e que para mim é um dos mais espectaculares, embora pouco mais seja do que uma capela de finais de Seiscentos que a partir de meados do século XX tentou ter um parque à maneira do Bom Jesus do Monte, com uma escadaria, um laguinho, coretos e, desde há alguns, poucos anos, um soberbo parque de merendas, com mesas e mesas a perder de vista mas que mesmo assim não são em número suficiente para receber os ranchos de comensais que não sei se vão ali à Correlhã (Ponte de Lima), pela Senhora da Boa Morte, ou porque sabem que há uma sombra que os acaricia e mesas sem fim onde podem colocar os seus fartos e sempre apetitosos farnéis.

Lembro-me do primeiro dia em que lá fui, numa visita guiada durante um congresso mundial havido em Braga, ideia do já falecido Amigo Luís Moura Sobral (natural de Viseu, fizera o secundário em Braga, a licenciatura e o doutoramento em Lovaina, acabara como professor de História de Arte no Canadá, em Montreal) congresso em que se iria debater a Gesamtkunstwerk, a Obra de Arte Total. Corria o ano de 1995.

Eu estava no meio de um mundo de pessoas oriundas de todo o mundo, do Chile à Polónia, da Checoslováquia ao Perú, Perú cujo representante era curiosamente checo… Brasileiros sem par, quase tantos quanto os portugueses, a par de franceses, alemães, italianos, ingleses e de outros tantos mais países.

A ideia da ida lá era a de ver/sentir o espanto, a dor, um lamento. O que parafraseando Jonh Steinbeck, as primeiras palavras do seu livro mais interessante dos tempos iniciais, o Bairro da Lata, espanto, dor, lamento poderiam exactamente significar a mesma palavra espanto, grito ou maravilha. Ou noutras palavras, as que me parecem mais correctas, um valentíssimo murro nos queixos. Sim, um valentíssimo murro nos queixos! Já lá iremos.

No meio de uma encosta em que algumas lendas se cruzam com vestígios de mineração do tempo dos romanos e com um topónimo sem dúvida belo – monte da Nó –, situa-se uma capela voltada à bela veiga do rio Lima e de onde outrora se podiam ver os contrafortes do Soajo ou os arredores de Viana e um pouco mais longe o azul das águas do Atlântico. Uns dirão, sítio privilegiado. Eu tão somente direi, Minho.

Uma capela grande iniciada em 1695, muito estranhamente com três naves – à maneira das catedrais e de outras igrejas grandes como a matriz da vila, de Ponte de Lima – com um tecto neogótico em madeira, algo que foi corrente naqueles anos na Ribeira Lima, da década de 1720 ou 1730, e que surgiu muito antes do neogótico inglês, portanto, ou do de algumas capelas laterais da celebrada igreja de São Francisco, do Porto. Uma capela grande, dizia, a que o povo, curiosamente, chama mosteiro, embora nunca ali tenha havido qualquer vestígio de vivências de frades ou de freiras; como também chamam mosteiro à igreja velha de São Bento da Porta Aberta!

Uma capela onde se entra e perante o que os nossos olhos veem logo nos vêm à memória as estranhíssimas palavras de Pinho Leal – ou de quem para ele escreveu sobre este lugar:

Entra-se na capela e tem-se medo. Repito: Entra-se na capela e tem-se medo!!!

Eu não tive medo naquele ano de 1995, naquela minha primeira visita, porque tínhamos ido em dois autocarros apinhados de gente, umas 80 pessoas. Mas muito recentemente, num dia em que estava a falar com a Presidente da Junta de Freguesia, entrou no seu gabinete um colega de outra freguesia próxima para lhe pedir o livro acabado de sair, no mês anterior, sobre o santuário. E ao ver a foto que preenche a capa, ele disse logo: quando em miúdos vínhamos à Senhora, eu tinha sempre medo ao entrar na igreja. Só o senhor, perguntei-lhe eu. Não, respondeu, todos os rapazes, todos os que vínhamos. E acrescentou, aqueles santos metiam-me medo. Um medo dos diabos!

Aqueles santos metem medo! Eu já tinha ficado intrigado com estas palavras que tinha lido no estudo que Flávio Gonçalves publicara em 1977 na revista “Bracara Augusta”.

Não tive medo. E não tive apenas porque estava ali no meio de muita gente uns de conhecimento recente, outros velhos amigos. Não tive medo porque o meu olhar, a minha atitude foi sobretudo de um imenso, de um infinito espanto.

Espanto por ver uma capela de três naves num sítio tão ermo. Espanto por ver numa mesma capela um tratamento duplo ao mistério da morte, no masculino e no feminino, algo que não conheço em nenhum outro local deste país.

A morte de Cristo no piso térreo, patente num excelente conjunto de imagens lavradas de forma clássica por uma mão excelente em que tanto ficamos presos às expressões fortemente dolorosas – mas com o seu quê de tradicionais – de Maria e das santas mulheres que a acompanham, de Nicodemos e de José de Arimateia.

Ou a morte, perdão, o Trânsito, de Maria, no andar superior, uma Maria deitada, rodeada, em semicírculo, pelos apóstolos do seu Filho, no conjunto mais expressionista da História de Arte portuguesa, mas expressionista de 1719 e não daquela corrente que surgiu entre nós nos finais da década de 1920 e na de 1930.

(Lembro-me bem da vez que lá levei o pintor surrealista Cruzeiro Seixas e lhe disse que iria ver uma obra expressionista de 1719 e sem par na nossa arte. Ele olhou-me, melhor, mediu-me longamente de cima a baixo e os seus olhos, que não enganavam ninguém, chamaram-me louco. Depois de uma viagem sem palavras, ao chegarmos a Braga, na esplanada onde bebíamos uma água talvez para refrescar emoções demasiado fortes, disse-me: afinal não estava louco… tinha razão no que me disse; nunca vi, nunca verei nada igual!)

Como disse, as imagens dos apóstolos estão em semicírculo. Mas para o conjunto ser mais expressivo umas, as das pontas, estão ajoelhadas sobre terra, perdão, sobre a madeira. As outras, estão colocadas em plintos que vão crescendo conforme nos vamos aproximando das figuras centrais. É impossível fazer-se uma mais expressiva colocação de actores, encontrar um sentido, maior teatralidade. Até porque as imagens, todas as imagens, todas com um tamanho maior do que o da realidade, só expressam um sentimento, um terrível sentimento, dor. Pouco antes tinham perdido o seu chefe, Cristo, agora iam ficar sem a outra figura chave do seu grupo, daquele grupo que expressava ideias revolucionárias, mas de uma forma doce, Maria.

Naqueles homens não havia um centímetro quadrado do seu ser, dos seus braços, dos seus dedos, dos seus olhos, das suas bocas que não exprimisse um horror infindo, uma dor infinda por mais esta perda irremediável que estava quase para acontecer. Perda, dor que se veem na torção dos seus corpos, numa quase dança, dança de movimentos parados, suspensos, em que a torsão dos corpos se conjuga perfeitamente com o movimento das mãos, o rito das bocas, o carregado dos olhos, o encrespado dos cabelos…

Prefiro, porém, repetir aqui o que já escrevi noutro local:

Globalmente, podemos dizer que há uma forte diferença entre as cabeças e os corpos. Apesar de terem de ser apresentadas com medidas superiores ao natural – como era corrente na época nos grupos dos passos –, apesar de terem que ostentar um rito duríssimo que a pintura minuciosa dos dentes amplia, há aqui cabeças bastante boas, dignas mesmo de um bom mestre. Estão neste caso a de São Pedro, com um ar profundamente pensativo, como que duvidando do que ali estava a acontecer, a de São Mateus, a de São João, e a de São Simão.

Os corpos apenas interessavam pelo aspecto gigantesco que davam às imagens ou pelo quanto poderiam ajudar a transmitir uma mensagem ainda mais expressiva. Daí a torção incrível do corpo de São Paulo, quase em forma de X, com o braço direito muito levantado, com o modelado das vestes desse braço a sugerir uma maior vitalidade ao gesto prolongado até ao infinito pelos finíssimos dedos e o ondulado ostensivamente grosseiro dos cabelos, a chamar a atenção não para a sua cabeça, mas para a direcção do olhar.

Olhar que atinge o ponto maior de contrição em São Tomé, que quase parece estar mais arrependido do seu gesto de dúvida do que propriamente da morte do seu Mestre! Aqui são os olhos, estrategicamente colocados em planos diferentes, o olho direito semicerrado, o juntar dos cabelos no início da cana do nariz e um pouco caídos sobre o lado direito, o que ajuda à sensação daquele olho estar contrito. Os cabelos não são ondulantes como os de Paulo, nem poderiam ser porque aqui tudo se passa ao contrário. Nesta imagem, o sentimento não se dirige para o alto, mas para o chão, ou seja, para dentro de si mesmo. Essa a razão por que a barba, embora revolta, está mais vertical. As mãos crispadas sobre si não transmitem apenas a dor que o trespassa ou algum resto de dúvida sobre os motivos que o levaram a ter aquela atitude de descrença. As mãos, porque colocadas num registo horizontal, são aparentemente um elemento um pouco dissonante; mas a verdade é que harmonizam todas aquelas linhas de forte tensão e não deixam que a figura se esvaia, quase parecendo que o seu olhar, que a sua dor, se concentra nelas.

O discípulo querido, São João, que fecha o conjunto do lado oposto ao de Pedro, tem uma cabeça de grande finura; semi-ajoelhado, tem um olhar perdido de dor. São Simão está em posição quase oficiante. Mais do que pela sua calvície, é notado pela sua cabeça sisuda e pela mão esquerda, muito nervosa; o seu corpo e roupagem apresentam uma qualidade de tratamento que não tem qualquer paralelo com os demais.

A imagem de São Tiago Maior aproxima-se muito da de Santo André, com o mesmo sentido de mãos, mas com um olhar mais frontal. São Bartolomeu é, entre as figuras de carácter mais popular, a que é apresentada com maior naturalidade. A sua cabeça faz lembrar imenso a de Nicodemos, do grupo da Lamentação de Cristo. É talvez a figura que se encontra em pior estado de conservação, com uma lona pintada a esconder a madeira fortemente corroída do braço esquerdo.

Santo André recebeu uma cabeça disforme que amplifica a incidência do seu olhar veemente e muito dolorido, mas dissonante do gesticular das mãos. São Tiago Menor tem uma cabeça em tudo semelhante à de Santo André, mas o seu olhar está muito mais cheio de dor, não querendo encarar a dura realidade que se abateu sobre ele e os seus companheiros.

São Filipe parece estar a tentar chamar os seus companheiros com gestos muito amplos. O seu corpo muito esguio é contrabalançado pela ampla aba da mão esquerda e pelos fortíssimos panejamentos que se cruzam em forma de X na zona da cintura, quase que segurando a sua figura extremamente esguia.

Grosso modo, os corpos são fortes, modulados apenas grosseiramente, no que ajudam ao espectáculo que ali estava em cena, a transmitir uma maior tensão, um terror mais veemente.

Os rostos são afilados, em forma de V, com barbas fortes e cabelos em cachos. Mas as roupagens têm interessantes modulações, foram desenhadas com cuidado, com um saber que nem todos teriam capacidade de igualar. As peças valem cada uma por si, mas o conjunto é de uma grandiosidade única, aterradora, apesar de terem saído de diferentes mãos.

(O Santuário de Nossa Senhora da Boa Morte. Correlhã – Ponte de Lima. Ponte de Lima. Câmara Municipal. 2021)

E não posso deixar de trazer aqui a lembrança da memória da conversa que tive naquele ano de 1995 com os dois colegas do Museu Nacional de Escultura, sintomaticamente situado não na capital Madrid, mas sim em Valladolid, a 190 quilómetros de distância: nós não temos nada igual. Nós não temos nada igual. Isto não tem paralelo!

E tudo isto, ambas estas mortes, no masculino e no feminino, estão colocadas numa estrutura que também é sem paralelo em Portugal, não num retábulo, mas sim numa espécie de dossel em que o Cristo morto está no piso térreo e a Maria preparada para o Trânsito está no tabuleiro superior, coberta por um céu ovalado repleto de nuvens e de anjos, lavrado em 1719 por um entalhador bracarense, Francisco Pereira de Castro.

Outras palavras que não as minhas de homem maravilhado com este local podem ser colhidas noutras mão, agora as escritas por Vítor Serrão no seu blog, dedicadas ao livro que saiu em 2021, a 30 de Julho, no dia da romaria, romaria que nesse ano foi amordaçada pela pandemia, o que de maneira impediu que a capela estivesse cheia:

Fundado em 1695, o Santuário da Senhora da Boa Morte na Correlhã, em sítio altaneiro de sabor hierofânico na encosta da Serra da Nó, dominante sobre a veiga do Lima, guarda um dos mais impactantes conjuntos de escultura devocional portuguesa do século XVIII. A obra, já aliás destacada na sua força artística em estudos de Ernesto de Sousa (1973) e de Flávio Gonçalves (1977) — ambos muito relevantes, devo dizer, para rever as reservas juvenis de tantos, como eu, face à escultura e talha barrocas… — impõe visita demorada por causa desse acervo de imaginária que, em contexto de Barroco rural, surge dotado de tal força expressiva…

Neste livro em que se assentam novos saberes (e que em qualquer ‘certificação de méritos científicos’ que fosse justa, isenta e objectivas estaria sempre em lugar de destaque), Eduardo Pires de Oliveira afirma que a escultura do Santuário tem forçosamente de «figurar definitivamente na lista das mais estranhas e excepcionais peças do Barroco português e, como tal, em todos os manuais de História de Arte Portuguesa».

O que se sabe hoje a partir dos saberes aduzidos por este livro sobre a arte do santuário atesta a importância do caríssimo retábulo entalhado em 1719 pelo mestre bracarense Francisco Pereira de Castro — retábulo este que é sobretudo um grande dossel abrigando o grupo escultórico da Morte da Virgem –, a policromia e estofo das esculturas dos Apóstolos, em 1722, por João Coelho de Araújo e João Fagundes, a obra dos altares colaterais feitos em 1741 por outro entalhador famoso de Braga, Jacinto da Silva, uma intervenção do pintor Manuel Furtado de Mendonça no grupo da ‘Deposição no Túmulo‘, entre outras referências.

Persiste o mistério de quem era este prodigioso MESTRE IMAGINÁRIO, assim citado, sem nomeação expressa, nas contas do Santuário, e que já Ernesto de Sousa, extasiado pela cabeça de São Pedro e certos ‘orientalismos’ de lavor nessa e em outras figuras do apostolado, chegou a comparar como um antecedente do genial António Francisco Lisboa, o Aleijadinho, que atingirá mais tarde em Congonhas do Campo (Minas Gerais) o áspide do ‘pathos’ escultórico do Barroco… Aliás, Eduardo Pires Oliveira aventa os nomes de Marceliano de Araújo, de Braga, e Manuel Gomes, de Arcos de Valdevez, como escultores coetâneos deste mestre da Correlhã e, também, sublimes lavrantes da madeira, mas as diferenças de estilo parecem consideráveis — pelo que este mistério vai prosseguir, sem que daí decorra nenhuma menorização das esculturas do Santuário da Boa Morte, às quais o anonimato nada retira de sublime.

Escrevi eu logo no início deste texto: Sonhos e vendas que têm, para mim, um dos exemplos mais simples e mais difuso nas celebradas fitinhas do Senhor do Bonfim que todos os jovens utilizam, quase sempre não sabendo o porquê, usando-as porque sim.

Fitinhas que, quem sabe (?), poderão ter tido início aqui neste santuário da Boa Morte pois sabe-se da grande ligação que desde o século XVI o Minho tinha com o Nordeste brasileiro (Viana do Castelo era, naqueles tempos, o porto privilegiado na recepção do açúcar que vinha do recôncavo baiano). Salvador que foi um dos portos de chegada, no séc. XVIII, para o infindo número de minhotos que procuravam aceder ao eldorado brasileiro, Minas Gerais, onde procuravam a hipótese de uma vida melhor do que no seu Minho natal nunca em dia algum poderiam ter.

Fitinhas que já desde o ano económico de 1720/1721 eram, com autorização da confraria residente na capela, colocadas à venda (mas desde quando?) nas tendas dos vendedores ambulantes que estadeavam no terreiro nos dias da romaria de Nossa Senhora da Boa Morte… Vejam-se alguns textos extraídos dos livros velhos da Confraria:

… por vir notícia da mesa que os tendeiros traziam a vender medidas com o título de Nossa Senhora da Boa Morte para as venderem ocultamente estando esta Irmandade desde o tempo de sua erecção na posse antiquíssima de só ela as mandar fazer e vender para ajuda e veneração da mesma Senhora,

porém, sem embargo de que se deitou bando por ordem do juiz ordinário deste Couto a requerimento dos oficiais desta Irmandade para que os ditos tendeiros nenhum vendessem as ditas medidas com a pena de se lhe tomarem e embargarem, ponderando eles oficiais também já terem feito gastos com as

ditas medidas e não serem sabedores mais cedo da dita proibição, e por virem a esta mesa suplicar que ao menos por esta vez se lhes concedesse licença para as venderem e que nunca mais tornariam em outros anos, por esta vez se lhes concedesse licença para as venderem e que nunca mais tornariam em outros anos a vendê-las, com efeito se lhes concedeu licença por esta vez somente…

[Arquivo Municipal. Ponte de Lima – Livro de actas da Confraria de Nossa Senhora da Boa Morte, Correlhã, Ponte de Lima. 1754-1799], fls. 5v-6. Acta da sessão da Mesa de 25 de Julho de 1758]

ou

D para se comprar 1$000 réis de fitas para medidas de Nossa Senhora (1720/1721)

…………………..

Renderam as fitas que se venderam na igreja 1$900 (1733-1734)

…………………..

Despesa com as fitas para as medidas que se deram na romagem a quem trazia as esmolas e para se venderem mais 6$130 (1749-1750) [Arquivo Municipal. Ponte de Lima – Livro das contas da receita e da despesa da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte, 1719 (14 de Julho) – 1750 / 1751, fls. 9-10v; 74-75v; 85-87v]

Espero que o leitor não se fique apenas por este texto, só desejo que as palavras e as imagens o seduzam e queira ir ali à Correlhã pois só assim poderá emergir na real, na extraordinária singularidade de todo este conjunto único, e sobretudo nas emoções que aquele grupo de homens sem par provocam, que metem medo a quem entra.

Homens que gostaria bem de um dia os ver num espaço muito amplo, muito negro, com uma coreografia de luzes sabiamente a eles dirigidas, de forma a ainda mais realçar o bailado de todos os sentimentos que exprimem.

Oxalá um dia o sonho possa ser vida.

Fotografias de Amândio Sousa Vieira

O riso da velha grávida

Este texto, porventura demasiado extenso, corresponde a um dos capítulos do livro A Arte na Morte, em teimosa revisão desde 2017. Trata-se de uma versão renovada e consideravelmente aumentada de um artigo homónimo publicado no blogue Tendências do Imaginário em 13 de março de 2016 (O Riso da velha grávida 2016). Agradecem-se críticas e sugestões! Pelo ritmo, chegarão a tempo.

***

Figura 1. Hieronymus Bosch. As Tentações de Santo Antão. Tríptico, c. 1500. Museu Nacional de Arte Antiga.

No canto inferior esquerdo do painel central do Tríptico As Tentações de Santo Antão (c. 1500), Hieronymus Bosch introduz uma criatura deveras complexa e estranha: uma velha, montada num rato. A velha é um ser híbrido: da cabeça cresce uma árvore e os braços são ramos; o corpo termina em cauda. A velha segura nos braços um bebé enfaixado. Naquele tempo, era prática enfaixar os recém-nascidos. Assim é retratado o menino Jesus no presépio já no século IV (Figura 3) e ainda no século XVII (Figura 4).

Contemplamos uma velha na antecâmara da morte que segura, encostada ao ventre, uma criança. Extrapolando, reconhece-se o tópico da morte que alberga a vida, tópico amplamente estudado por Mikhaïl Bakhtin. Esta figura convoca ainda, através do hibridismo da velha, os três reinos da vida: o humano, o animal e o vegetal. O conjunto, cósmico, alude ao ciclo natural e contrapõe verticalmente o telúrico, o rato que evolui num líquido lamacento, ao aéreo, a árvore que demanda o céu.

Na Grécia, em particular na Beócia, descobriram-se várias estatuetas de terracota que, datadas por volta do século IV aC, podem ser, de algum modo, consideradas antepassadas da velha de Hieronymus Bosch. Das figuras 5 a 7, destaco a última, da coleção do British Museum, pelo seu dinamismo e exposição comunicativa, significados pela posição, boca aberta e dobras da roupa, expressivas do movimento e da tensão dos contrários. Parece falar, cantar ou rir animadamente enquanto cuida da criança.

Figura 7 Velha ama com bebé. Beócia. C.330-300 a.C. British Museum.

Entre a criança ao colo e a gravidez vai apenas um passo no tempo. Um passo atrás que desenha uma ligação ainda mais íntima entre a vida e a morte.

“Entre as célebres figuras de terracota de Kertch, que se conservam no Museu L’Ermitage de Leningrado, destacam-se velhas grávidas cuja velhice e gravidez são grotescamente sublinhadas. Lembremos ainda que, além disso, essas velhas grávidas riem. Trata-se de um tipo de grotesco muito característico e expressivo, um grotesco ambivalente: É a morte prenhe, a morte que dá à luz” (Mikhail Bakhtin, A cultura popular na Idade Média e no Renascimento: O contexto de François Rabelais, São Paulo, HUCITEC, 1987, pp. 22-23).

Só de as imaginar, estas pequenas estatuetas de terracota provenientes de Kertch, na Crimeia, fascinam. Há anos que as procuro. Mas se a Internet é pródiga quando o tema de pesquisa é abrangente, costuma mostrar-se somítica quando este é deveras específico. Não obstante, alguns autores (e.g. Katia Vanessa Tarantini Silvestri, Carnavalização como transgrediência da multidão, Tese apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos, para a obtenção do Título de Doutora em Linguística, São Carlos, 2014, pp, 134-135) contemplam uma estatueta que condiz com as velhas grávidas de Mikhail Bakhtin: uma mulher, em pé, aparentemente idosa e grávida (Figura 8). Provém de Kertch, contanto se encontre no Museu do Louvre, em Paris, e não no Museu L’Ermitage, em São Petersburgo. Cada vez que observo esta “velha grávida” convenço-me que é precursora da Gioconda: não consigo descortinar se está ou não a rir.
Não muito longe de Kertch, na região de Beócia, na Grécia, foi descoberta uma estatueta com uma mulher, agora sentada, numa postura semelhante à da velha ama com bebé da figura 7: idosa, obesa e, com boa vontade interpretativa, grávida e risonha (Figura 9). Também não está no L’Ermitage, mas no British Museum. Condiz com as figuras de terracota de Mikhail Bakhtin. Convergem, inclusivamente, na data: por volta do século IV aC).
Antes de prosseguir este rosário de imagens com velhas com crianças, ao colo ou no ventre, ilustrativas do ciclo da vida e da morte, importa proceder a um desvio pela mitologia grega. Produzida há mais de 4500 anos, a “Vénus Adormecida”, do Museu Nacional de Arqueologia em Valetta (Malta), servir-nos-á como chave ou introito. Dorme, redonda, como a Terra Mãe, à espera da regeneração (Figura 10). Um sono de Inverno com sonho de verão. Batizaram-na Vénus (Afrodite, na mitologia grega). Parece aguardar, durante o inverno, o belo Adónis.

Figura 10 Vénus adormecida. Museu de Arqueologia. Valletta, Malta. 4000-2500 aC

Afrodite apaixonou-se por Adónis ainda este era criança. Entregou-o à guarda de Perséfone, que, por seu turno, também se toma de amores por ele. Ambas reclamam Adónis. Zeus, chamado a pronunciar-se, é salomónico. Divide o ano em três partes iguais: durante os meses de inverno em que as sementes estão soterradas, Adónis vive no inferno com Perséfone; na primavera, quando as sementes germinam, Adónis vive com Afrodite; os meses restantes ficam à escolha de Adónis, que opta por Afrodite. Adónis é o deus da morte e da ressurreição, um deus ctónico, associado à vegetação. Durante a sua estadia no submundo, a terra é estéril. A partir da Primavera, a terra torna-se fértil. A vida enterra a vida, a morte dá à luz a vida. Sem tréguas, nem dramas. Uma tragédia.
A própria Perséfone, igualmente bela, teve um destino similar, embora com enredo e protagonistas distintos.
Divertia-se Perséfone, filha de Deméter, por entre as flores quando ao aproximar-se de um narciso se abriu uma fenda no solo através da qual Hades a raptou e levou para o submundo. Ignorando o sucedido, Deméter, deusa associada à maternidade, a tudo que envolve a plantação, a nutrição e o crescimento, mas também à morte, à destruição e à transformação, procura a filha, sem comer, dormir ou banhar-se, durante nove dias e nove noites. Informada do rapto por Hélio, deus do Sol, assim como da conivência de Zeus, retira-se do monte Olimpo e, disfarçada de velha, divaga, inconformada, por cidades e campos. Em Elêusis, manda construir um templo em sua honra, onde permanece isolada e inativa. Sem a sua ação, nada germina, tudo permanece estéril. A miséria ameaça destruir a humanidade, privando os deuses das suas ofertas e sacrifícios. Após várias tentativas infrutíferas para demover Deméter, Zeus acaba por ordenar a Hades a libertação de Perséfone. Antes da partida, Hades oferece sementes de romã a Perséfone que as saboreou. Durante o reencontro, Deméter pergunta a Perséfone se tinha comido alguma coisa no submundo. Fatalmente! Por causa das sementes de romã, Perséfone resulta condenada a ser, durante o
inverno. rainha do submundo junto a Hades [sina semelhante à de Adónis]. Deméter devolve a fertilidade à terra e promove os Mistérios Elêusianos, festival durante o qual as pessoas “adquirem sabedoria para viver com alegria e morrer sem medo da morte” (remeto a análise do mito de Perséfone para o estudo de Camila Golegã e Luciana Romano Hernandes: “Deméter e Perséfone – A inexorabilidade cíclica da natureza” (https://offlattes.com/archives/author/camila-golega; acedido em 28.08.2022). Retenho, contudo, um pormenor: as sementes de romã. Até as sementes podem desempenhar um papel negativo, neste caso, a condenação de Perséfone. Símbolo por excelência da fecundidade, as sementes também padecem da duplicidade do devir. Morrem e renascem duas vezes: enterradas, para dar o trigo; queimadas para dar o pão. Pela terra e pelo fogo.
Mas nem a intensidade semiótica da semente nem o ciclo cósmico justificam o desvio pela mitologia grega. Este faculta, na verdade , o acesso a uma figura mítica tão pouco conhecida quanto prodigiosa: Baubo, “um arquétipo da vida, da morte e da fertilidade”, “deusa pagã grega da alegria e obscenidade, com a forma de uma velha gorda que exibe publicamente os genitais” (Figuras 11 a 13), mencionada, entre outros, por Goethe, em “Noite de Walpurgis” do Fausto (1808), e Nietzsche, na Introdução de A Gaia Ciência (1882).

“Imagens com mulheres grávidas e mulheres com as pernas abertas passaram a ser representadas em terracotas de estilo Tanagra no Egito a partir do período ptolemaico [iniciado em 323 a. C. Algumas terracotas apresentavam os atributos de Ísis-Afrodite e possuíam um corpo gracioso. Outras tinham escasso ou nenhum atributo, um corpo rechonchudo e pernas abertas para exibir os genitais. A estas terracotas estranhas costuma chamar-se Baubo, o nome de uma velha senhora que mostrou os seus órgãos genitais a Deméter para distraí-la da dor provocada pela perda de Perséfone. O nome Baubo aparece nos Fragmentos órficos de Clemente de Alexandria e Arnóbio que descrevem o episódio do rapto de Perséfone. Baubo também era alvo de culto, em conjunto com Deméter, em várias áreas do mundo grego, como demonstram diversas inscrições e estatuetas. O motivo para atribuir a designação “terracotas Baubo” a estas terracotas egípcias decorre da postura assumida de exposição dos genitais tal como Baubo fez com Deméter. Um outro motivo prende-se ainda com uma outra relação clara de algumas dessas terracotas egípcias com Deméter: existem vários exemplares com a imagem egípcia de Baubo sentada num javali [Figura info], gesto que lembra os javalis selvagens sacrificados durante o festival grego da Thesmophoria. Tanto os rituais da Elêusis como a Thesmophoria eram celebrados na região de Elêusis em Alexandria, com provável recurso a estas terracotas nestes contextos (Nifosi, Ada (2021) The Throw of Isis-Aphrodite: a rare decorated knucklebone from the Metropolitan Museum of New York. The Journal of Egyptian Archaeology. Acedido em 28.08.2022).

Existem várias versões do episódio de Baubo, algumas mais circunstanciadas e excêntricas como a comentada por Sigmund Freud num pequeno texto de 1916 (“Parallèles mythologiques à une représentation obsessionnelle plastique”, Essais de psychanalyse appliquée, Paris, Éditions Gallimard, 1971, pp. 83-85).

“Baubo é a esposa mítica de Disaule, bem como a empregada/ama que acolhe Deméter em Elêusis – o umbigo esotérico da Europa – quando esta procura desesperadamente a sua filha Perséfone. Recusando-se Deméter a tocar na comida, Baubo fá-la rir levantando o vestido e mostrando obscenamente os seus órgãos genitais. Iacchus, seu filho, também é reputado ter estado presente nesta cena, e ter aplaudido descontroladamente – o que provoca o riso de Deméter e enfatiza o lado cômico do episódio. Em algumas versões da história, diz-se que Iacchus rastejou sob as saias, de tal modo que seu rosto apareceu no lugar dos genitais quando Baubo exibiu suas partes púdicas, o que pode ser lido como uma alusão à fertilidade de Baubo – ela pode estar grávida – e, portanto, como um sinal de esperança para a fecundidade muito mais significativa que a própria Deméter tem que reencontrar, a fim de resgatar o mundo do inverno eterno” (Michele Cometa, “The Survival of Ancient Monsters: Freud and Baubo” in Raul Calzoni / Greta Perletti (eds.), Monstrous Anatomies. Literary and Scientific Imagination in Britain and Germany during the Long Nineteenth Century, Göttingen, V&R Unipress, 2015, pp. 297-310).

Baubo oferece-se como uma súmula de todas as situações, ações e propriedade até agora consideradas: é uma velha, grávida e com criança, pujante, cuja sexualidade desbragada provoca alívio e riso. Integra uma mistura de ações e atributos, um concentrado semiótico capaz de rivalizar com a “a velha com bebé ao colo” de Hieronymus Bosch. Condensa luto, fecundidade e jovialidade numa fusão apotropaica transbordante de sexualidade e humor. Os opostos mais do que se alternar ou de se (su)ceder uns aos outros coexistem. Prevalece a conjunção em detrimento da disjunção. Baubo é, simultaneamente, morte e vida, Eros e Thanatos, ordem e caos, tragédia e comédia, luto e esperança. Esta leitura corresponde, naturalmente, a uma interpretação, uma camada subjetiva de sentido que reveste Baubo. Tomando o presente texto como um todo, como um retrato, Baubo arrisca, com a sua turbulência, oferecer-se como um punctum, “o detalhe que preenche toda a fotografia” (Roland Barthes, A Câmara Clara, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1984, p. 73).

Figura 18 James Ensor. A morte a as máscaras. 1927

Chegada a navegação a esta “bacia semântica”, terão os nossos olhos visto o que de essencial há para ver? Saturou-se o imaginário? A modernidade e a pós-modernidade pouca ou nenhuma originalidade acrescentam, limitando-se a repetir e reciclar? Convenha-se que, mínimas ou não, algumas alterações e inovações se verificaram.

Figura 19 Mason Williams. Esqueleto tatuado e bebé

A morte passa a ser menos disfarçada ou subentendida. A velha tende a ser substituída pela própria morte ou, mais precisamente, pela sua principal imagem-signo: o esqueleto. Volvidos quatro séculos da conclusão das Tentações de Santo Antão, no quadro A Morte e as Máscaras, datado de 1927, de James Ensor, destaca-se, entre os mascarados, um recém-nascido segurado ao colo não de uma velha mas de um esqueleto, a única figura sem máscara (Figura 18). Ressurge este tópico, por exemplo, nos motivos para tatuagem criados por Mason Williams (Figura 19).

Figura 20 Dança macabra. Impressa por Antoine Vérard. C. 1491-1492. Fonte Biblioteca Nacional de França

Mas esta diferença não deve ser sobrevalorizada. Inúmeros esqueletos, com ou sem carne, passeiam-se pelas pinturas e gravuras medievais e renascentistas. E fazem praticamente tudo o que é caraterístico de um ser humano (ver Vida de Esqueleto II. O Espelho: https://tendimag.com/2017/09/30/vida-de-esqueleto-ii-o-espelho/). Não é, aliás, de descartar a possível existência, que admito desconhecer, de uma qualquer imagem com um esqueleto a dar colo a uma criança. Registe-se que alguns esqueletos das danças macabras parecem tentados a embalar um berço. Por exemplo, na gravura da dança da morte mais antiga de que se tem conhecimento situada no cemitério dos Santos Inocentes, em Paris (Figura 20).

Figura 21 George Grosz. Estou feliz por estar de volta. 1943. Fonte Wikioo.org

Cumpre a Georg Grosz, pintor da desgraça humana do século XX, patentear a principal singularidade da nossa era. Na pintura Estou feliz por estar de volta, de 1943, um esqueleto andrajoso rasga a carne ensanguentada de um ventre rumo à luz, ao exterior, ao mundo (Figura 21). Eis a nova marca dos dois séculos mais recentes, modernos ou pós-modernos. Já não é só a morte que apaga a vida, a própria vida dá à luz a morte. No novo imaginário, muda a física, a geografia, e a orgânica, a progenitura, da relação entre a vida e a morte, este mundo e o outro. Nos séculos antigos, se o diabo andava, omnipresente, à solta, o inferno situava-se no Além, no outro mundo. Agora, o inferno está entre nós, “o inferno são os outros” (Jean-Paul Sartre, Huis Clos, 1944) ou, mais lucidamente, “somos nós”. Numa “sociedade mortífera”, a própria vida se encarrega de gerar a morte.

Autor: Albertino Gonçalves

A Liturgia dos Pássaros: Homenagem a Olivier Messiaen

Olivier Messiaen

No dia 29 de dezembro, às 19:00, ocorre na Reitoria da Universidade do Minho uma homenagem a Olivier Messiaen pelo Drumming GP e Daniel Bernardes Trio, evento que o margens recomenda (ver apresentação). O blogue Tendências do Imaginário dedica dois artigos a este compositor francês que compôs e estreou a obra Quatuor Pour Les Fins du Temps (1941) enquanto prisioneiro no campo de concentração nazi de Gorlitz: Filhos do Crepúsculo: A Arte e a Música no Campo de Concentração (2017) e Música da desgraça Humana (2020).

Resulta oportuno acrescentar o texto (pdf) A arte na segunda guerra mundial: as diferentes artes que se faziam sentir nos campos de concentração, por Glória Manuela Rodrigues Fernandes para a disciplina Sociologia e Semiótica da Arte do curso de Mestrado em Comunicação, Arte e Cultura, da Universidade do Minho, em 2017.

Olivier Messiaen. Oiseaux exotiques (1956). Interpretação: ensemble oktopus für musik der moderne & Markus Bellheim,9 February 2017, Reaktorhalle, Munichh

Natais há muitos. Boas festas!

Por Miguel Bandeira

Recente, ainda quase sem visitantes, o blogue Margens faz questão de desejar boas festas. O “postal”, alusivo à cooperação internacional, é do Miguel Bandeira e o texto, atento à diversidade de mundivivências do Natal, da Rita Ribeiro. Abordam o reverso da atual encenação artificial da felicidade: a solidão e o sofrimento de parte substantiva da população. Temas pouco habituais neste tipo de mensagens. Convém, todavia, recordar que este reverso menosprezado foi outrora a principal vocação do Natal: a solidariedade e a partilha de modo a preservar a coesão social. Nas sociedades agrárias, a falta de cereais sentia-se já pelo Natal e ameaçava a sobrevivência até às próximas colheitas. Morria-se mais de fome. À semelhança de outras festas de inverno, como o S. Martinho, o São Nicolau ou os Reis, o “espírito natalício” assegurava um mínimo de redistribuição de bens em benefício dos mais carenciados. Não tinha Cristo prescindido da sua gloriosa divindade para vir ao mundo como um ser humano humilde e vulnerável? Importa não desviar o olhar, até porque o momento talvez seja de inflexão civilizacional e os ventos desaconselhem consumismos, desperdícios, descuidos e soberbas.

Para acompanhar, descontraidamente, o postal do Miguel Bandeira e o texto da Rita Ribeiro, segue uma pequena compilação de cânticos de Natal, interpretada pelo Ensemble Obsidienne.

Ensemble Obsidienne. Cânticos de Natal do século XV. Ao vivo. Le Magazine, 29.04.2015