Ida e volta a Cucujães
Álvaro Domingues

João de Andrade Corvo (1824-1890) no seu ímpeto de modernização do país arcaico entregue às conveniências de quem detinha o poder e aos interesses de companhias privadas estrangeiras e de alguns capitalistas e industriais do reino, num discurso à Câmara dos Deputados a 6 de Maio de 1867, afirmou: “Eu considero o caminho-de-ferro, não como um instrumento de criação imediata de produto líquido, mas como uma força que se põe ao serviço das diversas indústrias, como se põe uma máquina a vapor ao serviço dos diversos aparelhos, e das diversas máquinas de uma fábrica”. A primeira referência à Linha do Vouga data de 1874 e, como era frequente, a principal justificação era a de ligar regiões agrícolas e mineiras encravadas na exígua mãe-pátria, aos portos atlânticos – neste caso, ligar Viseu, o Vale do Vouga e o de Lafões ao Porto e a Aveiro e à linha do Norte. Pelo caminho haveria termas, fábricas, vilas e povoados, e muitas discussões sobre expropriações e opções de traçado ou de localização e designação de estações e apeadeiros. Onde chegasse o comboio, chegaria a via acelerada para o milagre económico.
Foi um longo ziguezaguear. Nada disposto a alimentar o lado romântico da tecnologia, Paul Virilio já disse que quem tinha inventado o caminho-de-ferro, sem saber, tinha também inventado o descarrilamento; acidentalmente, uma coisa decorre da outra.

A ordem natural das coisas, a perfeição e o desmesurado, os filósofos da Grécia antiga – o homem é a medida de todas as coisas – o palmo, o pé, a polegada, a braça, o pé quadrado… são medidas que os humanos (hoje, dir-se-ia, o homem, a mulher, a diversidade LGBT) inventaram a partir da sua própria concepção do mundo e do lugar central que aí pensavam ocupar. Leonardo da Vinci, inspirado no venerável Vitrúvio, desenhou essas medidas inscrevendo um macho adulto humano de pernas e braços abertos num círculo e num quadrado de idêntica área. As proporções dessa figura modelar ficaram fixadas num padrão matemático e respectivas regras geométricas. Do corpo humano ao universo, havia de caber tudo numa quadratura do círculo, numa medida universal que satisfizesse as pretensões mágicas da espécie em matéria de cogitações sobre-humanas muito úteis para esconder as misérias do mundo e dar espaço ao algoritmo.
Para além da bitola larga, há o metro e o quilómetro, a distância em anos-luz, as galáxias, o nano mícron e outras medidas da era tecnológica que em nada se relacionam com as medidas do corpo – o metro, a partir da de krípton 86, e o segundo, calculado a partir da radiação de césio 133. Sujeito a coima, o homem do Vitrúvio, fechou as pernas porque lhe está vedada a passagem para além da razão unidimensional da eficácia técnica, da racionalidade do mercado, da organização burocrática e do totalitarismo tecnocrata e tecno-lógico. A razão técnica transforma-se em mitologia, e, depois do paraíso e da idade de ouro, a natureza caminha para o pesadelo. É a bitola estreita do mundo, as pernas fechadas, o passo tolhido, o bloqueio. A horta é uma miragem para lá do terreno pedregoso. Em qualquer dissertação sobre jurisprudência, a coima pode ser discutida segundo variadas e refinadíssimas retóricas.

Literalmente, a necrópole é a cidade dos mortos, tal como os monumentos designavam sinais do passado, presenças da ausência dos que já não pertencem ao mundo dos vivos. Por isso é que a cidade dos mortos é monumental. O monumento funerário é um gesto de perpetuação da memória dos mortos. Por sua vez, os documentos correspondem sobretudo a registos escritos que contêm informações muito úteis para os historiadores. Na cultura erudita da Europa do séc. XIX, o termo monumento usava-se também para designar as grandes colecções de documentos. Em latim – a língua morta então preferida -, os Portvgaliae monvmenta historica iniciados por Alexandre Herculano, uma coletânea de textos da História de Portugal, são disso exemplo. Criticando versões fantasiosas da história, Henri Lefebvre escreveu que não há história sem documentos e se os factos históricos não foram registados em documentos escritos ou gravados, esses factos ter-se-ão perdido. Citando outro nome incontornável, Michel Foucault, pode ler-se: (…) o documento não é o feliz instrumento de uma história que seja, em si própria e com pleno direito, memória: a história é uma certa maneira de uma sociedade dar estatuto e elaboração a uma massa documental de que se não separa. Bibliotecas, arquivos e conservatórias são os grandes depositários desse rastreamento do passado que amanhã já terão arquivado coisas de hoje. Em tempos de digitalização acelerada, os arquivos marcham para o infinito.
Sobre isso, Saramago escreveu em Todos os Nomes: Do mesmo modo que todos os cemitérios deste ou de qualquer outro mundo, este começou por ser uma coisinha minúscula, uma parcela breve de terreno na periferia do que ainda era um embrião de cidade, virado para o ar livre das campinas, mas depois, com o andar dos tempos, como infelizmente tinha de ser, foi crescendo, crescendo, crescendo, até se tornar na necrópole imensa que é hoje. Ao princípio esteve todo murado ao redor, e, durante gerações, de cada vez que o aperto lá dentro começava a prejudicar tanto o alojamento ordenado dos mortos como a circulação prática dos vivos, fazia-se o mesmo que na Conservatória Geral, deitavam-se abaixo os muros e levantavam-se um pouco mais à frente. Nada como a boa literatura para nos explicar o mundo.
Deixando a visão geral do cemitério e caminhando pelo dédalo dos monumentos funerários em granito que são a arte já muito industrializada do saber dos marmoristas, encontramos o instante metafórico a que Saramago se refere acerca dos muros derruídos para que a conservatória ou o cemitério cresçam: ao fundo, intensamente iluminado pelo sol está o muro que cerca o cemitério; no primeiro plano, resolve-se o avanço do edifício, sobrepondo, desligando os planos. No meio das sepulturas, a coluna ajuda a perceber a grande dificuldade que as lajes de betão apresentam quando são forçadas a flutuar.

Virá um dia a banalização da cremação e tudo isto poderá tomar outros caminhos. A memória pública dos mortos traduzida em toneladas de pedra polida alinhada na necrópole, poderá esfumar-se em cinzas espalhadas ao vento, nos roseirais, no mar ou em pequenos sarcófagos guardados em casa. Outras versões mais elaboradas usarão fornos sofisticados onde se converterá a matéria carbónica dos cadáveres em pequenos cristais de diamante que se poderão usar como joias onde, fisicamente, os entes queridos permanecem e brilham para todo o sempre. Que seriam os vivos sem os mortos, sem os fantasmas, sem o menor traço da presença de quem já não está. Jean-Didier Urbain – O Arquipélago dos Mortos – lembra que o luto não é apenas um modo de aceitação da morte do outro, aquilo que é necessário integrar é a incerteza que provoca a sua ausência na vida -uma espécie de flutuação. É por essa razão que os lugares do luto são importantes – aqui jaz significa isso mesmo.
Este texto foi produzido no âmbito do projeto À Volta do Vale das Voltas – Programa Integrado de Dinamização Intercultural das Terras de Santa Maria
Palmira
Diana Gonçalves

SINOPSIS CORTA
La vida que transcurre lentamente, repetitiva. Un cuerpo cansado pero a la vez resistente. Y del otro lado de la cámara, la tentativa de encontrar ese instante fugaz que nos revele algo más de la vida. De la observación a la construcción con el propio personaje. Palmira es el retrato de varios encuentros y testigo del proceso y evolución de ese retrato.

SINOPSIS
Palmira, conocida por la mayoría como la abuela de Galicia, fue una de las protagonistas de mi primer documental, Mulleres da Raia. La búsqueda en ese momento era otra, pero desde el día que la vi a través de la ventana, sentí la necesidad de volver para filmarla.
Y así lo hice. Un año después encontré el motivo y el espacio para hacerlo. Palmira es el resultado de 5 años de encuentros promovidos por el laboratorio de creación “El retrato filmado” (Play-doc, Festival Internacional de Documentales de Tui), que dio origen a varios retratos filmados en diferentes momentos y editado en una única pieza años después.
Palmira es el encuentro entre una mujer centenaria y una aprendiz documentalista que a lo largo de los años y durante unos días se reencuentran para construir su retrato. ¿Pero cuál? ¿El de Palmira o el de la documentalista? Sin quererlo inicialmente, ambos.
La vida que transcurre lentamente, repetitiva. Un cuerpo cansado pero a la vez resistente. Y del otro lado de la cámara, la tentativa de encontrar ese instante fugaz que nos revele algo más de la vida. De la observación a la construcción con el propio personaje.
Palmira es el retrato de varios encuentros y testigo del proceso y evolución de ese retrato.
BIOFILMOGRAFÍA
DIANA GONÇALVES (1986)
Nace en Tui en 1986. Licenciada en Comunicación Audiovisual por la Universidade de Vigo (2008). Máster en Comunicación e Industrias Creativas por la Universidade de Santiago de Compostela (2013).

En 2009 produce y realiza su primer documental cinematográfico Mulleres da Raia, que ha recibido varios premios en diversos festivales nacionales e internacionales. En 2010 da sus primeros pasos en la realización televisiva colaborando con la productora Pórtico Audiovisuales en el programa Ben Falado para Televisión de Galicia.
Paralelamente, en el campo de la producción, colaboró con la Agencia Gallega de las Industrias Culturales (AGADIC) en el diseño y organización de varios encuentros del programa CREATIVA, promoviendo el intercambio cultural multidisciplinar entre España y Portugal.
Su trayectoria como productora continuó en el estudio de post-producción sonora cinematográfica Cinemar Films con presencia en mercados internacionales.
En 2010, coordinó la retrospectiva documental “Carlos Velo: Mirar al margen”, siendo programadora de Filminho (Festival de Cine Gallego y Portugués). Asimismo, promovió y desarrolló varios workshops itinerantes en varios centros escolares de Galicia y Norte de Portugal.
Entre 2009 y 2013, fue miembro del laboratorio documental “El Retrato Filmado”, dirigido por Marta Andreu. Más tarde recupera el material y la pieza resultante, Palmira, es su segundo trabajo documental.
Actualmente, combina su faceta de documentalista con su actividad en el mundo de la empresa centrada en el marketing y la comunicación corporativa.
Para mais informação, aconselha-se a consulta da seguinte brochura (5 páginas).
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Albertino Gonçalves
A meus avós galegos Pura e Avelino
“E retratos, retratos espetaculares (…) Rembrandt não compreendia apenas os seus ricos clientes e a imagem que pretendiam projetar de si mesmos, ele também foi um manipulador virtuoso da pintura. Ninguém enxergou melhor a topografia das pálpebras da meia-idade, a oleosidade de um próspero nariz, a lacrimosa membrana vítrea dos olhos, a reluzente tensão de uma testa puxada para trás numa touca de linho. Observe o retrato de uma mulher com 83 anos na Galeria Nacional de Londres. Observe o tecido translúcido da touca alada, as bordas pintadas com uma única pincelada. Observe as suas sobrancelhas e as pálpebras caídas, feitas com pinceladas picantes, a melancolia levemente desfocada, o temperamento de vulnerabilidade pungente, o conjunto a suavizar a face de uma velha raposa, com a certeza ansiosa de que não demorará muito a encontrar o grande contador do céu. Não é, portanto, apenas um pintor, mas um psicólogo da condição humana, não concorda? Em que consiste a obra dos outros grandes vultos, Velásquez, Rubens, Van Dyck? Pintar máscaras, o olhar estudado de princesas e papas. Conhecem de antemão, muito bem, a máscara do dia: decisão marcial, preocupação majestosa, melancolia pensativa. Mas Rembrandt vê por detrás da pose e é isso que contribui para que os seus retratos nos toquem como os de mais ninguém. Podemos ver as pessoas a exibir as suas faces ao mundo. Mas isso não as diminui, antes lhes acrescenta simpatia” (Simon Schama. Rembrandt. Power of Art 3/8. BBC. 2006).
As sequências do filme Palmira, de Diana Gonçalves, recordam-me os retratos de Rembrandt. Entranham-se para além da aparência sem desnudar ou vulgarizar a pessoa.
Palmira convida-nos a acompanhar o quotidiano de uma persona mayor solitária no entardecer da vida. Sem sombra de intrusão ou indiscrição, respira cumplicidade, humildade e respeito. Como quem bate a uma porta aberta. Entra-se, sem máscaras nem tipificações, surpreendendo a naturalidade do banal. Com empatia. Cada sequência oferece-se como uma janela, mas em sentido contrário do habitual: de fora para dentro, do exterior para o interior, com o devido resguardo e recato. Colhidas anos a fio com extremo cuidado, com uma câmara que sente mais do que regista, estas imagens dedicadas à intimidade de uma mulher centenária resultam raras, muito raras. E preciosas. Este filme de Diana Gonçalves é uma dádiva antropológica, uma aproximação ao humano que teima a escapar ao nosso olhar normal: o demasiado humano.




Reencontro biobibliográfico
Albertino Gonçalves

Deparei-me hoje, inesperadamente, online, com o artigo “La emigración portuguesa hacia Francia en la sigunda mitad del siglo XX: breve caracterización”, publicado, em coautoria com José Cunha Machado, na revista Migraciones y Exilios (3-2002, pp. 117-137). Tinha-lhe perdido o rasto, a tal ponto que, aquando do registo no currículo do CIENCIAVITAE, nem sequer lhe soube indicar a paginação. Um lapso obtuso, à luz dos cânones académicos, visto tratar-se de um contributo internacional. Não interessa! Agradeço esta surpresa uma partilha recente do seu tradutor: Benito Bermejo. Tamanha é a satisfação, que entendo partilhar o texto. Um motivo adicional impele. Volvidos vinte anos, retomo o tema da emigração. Na verdade, após um prolongado e quase absoluto retiro, estou a regressar a quase tudo.
Estou a estudar, com o Américo Rodrigues, as migrações em Castro Laboreiro até aos anos trinta do século passado, no âmbito do programa de investigação e intervenção Quem somos os que aqui estamos? Trata-se de uma iniciativa, inaugurada em 2016, associada ao MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, promovido pela AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual e pelo Município de Melgaço. À equipa, composta também por Álvaro Domingues, Daniel Maciel, João Gigante, Carlos Eduardo Viana e Rui Ramos, cumpre dedicar-se, cada biénio, sucessivamente, a um agrupamento de freguesias do concelho. Após Parada do Monte e Cubalhão, primeiro, e Prado e Remoães, em seguida, estamos a concluir a União das Freguesias de Castro Laboreiro e Parada do Monte. De cada “caderno de encargos” constam a publicação de dois livros com imagens e textos, um com fotografias produzidas pela equipa, o outro com fotografias recolhidas junto da população, a promoção de duas exposições e a organização de vários encontros científicos e culturais. Já foram editados os livros Pedra e Pele (2018), Festa (2018), Quem fica (2019) e Uma Paisagem Dita Casa (2022). Um dos livros teima em permanecer no prelo. O mais recente, dedicado à freguesia de Lamas de Mouro, inclui o capítulo “A ave, o casal e a lápide: as esculturas da porta da igreja de São João Baptista de Lamas de Mouro”, uma boa ilustração da forma de investigação e comunicação que tenho vindo a adotar. Permito-me disponibilizá-lo também no Margens.

Albertino Gonçalves
Natural de Melgaço, doutorado em Sociologia, investigador do Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, autor de Imagens e Clivagens: Os residentes face aos emigrantes (1996), Métodos e Técnicas de Investigação Social (1998), A Romaria da Srª da Agonia. Vida e Memória da Cidade de Viana (2000, c. Moisés de Lemos Martins & Helena Pires), As Asas do Diploma: a inserção profissional dos licenciados pela Universidade do Minho (2001), Da Universidade para o Mundo do Trabalho: Desafios para um Diálogo (2001, c. Leandro S. Almeida, Rosa Vasconcelos & Susana Caires), Dar vida às letras: promoção do livro e da leitura (2007, c. Fernanda Leopoldina Viana & Maria de Lourdes Dionísio), Vertigens do Barroco em Jerónimo Baía e na Actualidade (2007, c. Aida Mata, Ângela Ferreira & Luís da Silva Pereira), Perspectivas de Desenvolvimento do Município de Monção (2008, c. José Cunha Machado, Miguel Bandeira & Victor Rodrigues), Vertigens: para uma sociologia da perversidade (2009), A idade de ouro do postal ilustrado em Viana do Castelo (2010), Guimarães 2012: capital europeia da cultura: impactos económicos e sociais: relatório intercalar (2012, c. Rui Vieira de Castro, Fernando Alexandre et alii), Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura: impactos económicos e sociais: relatório final (2013, c. Rui Vieira de Castro, José Cunha Machado et alii).
Um Passeio pelas margens da memória
Teresa Lima
A porta abre e fecha; separa. A ponte liga; une. A ponte e a porta unem e separam. A janela também intercala mundos, mas o movimento propende a operar-se num único sentido, de dentro para fora. O olhar capta o exterior. A partir destas metáforas, Georg Simmel escreveu um dos textos mais curtos e brilhantes da Sociologia (“Brücke und Tür”, Der Tag. Moderne illustrierte Zeitung, n° 683, 15.09.1909, p. 1-3). Pela janela, o sujeito costuma ainda penetrar no mundo sem nele intervir.
Espécie de moldura para um retrato realista, a janela de Alberti não deixa de assentar num ponto de vista, de configurar, precisamente, uma perspetiva. Olhar pela janela é um ato relativo carregado de subjetividade. Acresce que a janela pode funcionar como espelho, em particular quando a luz, o foco, incide sobre o observador. Reflexiva, a prospeção reverte, agora, para mundos interiores, eventualmente, para a introspeção. Nada impede o recurso a várias janelas propiciador de uma visão múltipla, “poligonal” (José Saramago). Somando estes traços, resulta tentador convocar as figuras do flâneur e da deambulação, ao sabor de uma morna lenta e caprichosa, porventura melancólica, filtrada por “janelas portáteis”.
Este breve apontamento inspira-se no artigo “Um Passeio pelas margens da memória”, de Teresa Lima, que, de janela em janela, convoca, em diálogo íntimo, memórias, obras e autores. Passeia-se não pelas ruas de Paris mas pelos atalhos da vida nos interstícios da alma. Um tango dialógico de excursões e incursões entrelaçadas. Afins, o blogue Margens e a Passeio, Plataforma de Arte e Cultura Urbana, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, são água da mesma fonte. O presente texto de Teresa Lima inaugura a expressão desta parceria. (Albertino Gonçalves)
A minha estreia na Passeio, plataforma de arte e cultura urbana do CECS/UMinho, deu-se com um texto sobre a infância, intitulado Subúrbio na cidade.

Não é que tenha sido intencional, mas pensando retrospetivamente, penso que não poderia haver entrada mais fiel ao espírito da deambulação, que se pretende imprimir a este projeto.


Para mim, como para Miguelim, cada partida é o reconhecimento de que o lugar da infância só é verdadeiramente bonito quando o perspetivamos à distância. Aviso, desde já, que Guimarães Rosa será, nas próximas linhas, uma referência próxima do obsessivo. Depois de ter lido Grande Sertão Veredas (um vaguear filosófico pelo sertão pessoal e físico), tive receio de nunca conseguir ler mais nenhum livro, por indiferença a tudo que não fosse aquela oralidade cheia de subtilezas. O vaguear reflexivo que aqui pretendo calcorrear começa num ponto de tensão entre o aconchego de um lugar familiar, o desejo de sair e o susto provocado por geografias estranhas. Vou apoiada por companheiros de viagem.
Logo de rajada, surgem-me em catadupa imagens e referências: a rua da meninice, que ainda hoje hesito em pisar, as cidades que nos fustigam com os seus excessos, o anonimato urbano que nos faz respirar, o cheiro reconfortante de uma esquina conhecida e a vida. A minha e a dos outros com quem me tenho cruzado. De modo que tenho uma vaga ideia, mas não sei ao certo onde este percurso sem destino pré-definido – para um blogue sobre cultura, arte e imaginário – me poderá levar. O sentido de orientação nunca foi o meu forte, por isso, embalada pelo contexto das margens, confio na intuição como uma boa bússola para percorrer os caminhos da memória.
Peço licença para introduzir o conceito de biografia, a pessoa humana nos lajedos que trilha. Porque somos, antes de tudo, um corpo, que (se correr como o esperado) se desenvolve embalado por outros corpos, que são faróis no caminho. Falando nisto, adoro o romantismo dos faróis no meio da escuridão. Como gosto de barcos à deriva. O cheiro a óleo dos barcos, as amarras que se libertam no cais e a paisagem ao longe, fazendo-nos duvidar se é a vida que caminha por si só, como num travelling infinito, se somos nós que caminhamos por ela. E água que lava tudo. Sozinha, em Braga, há três décadas, deixei-me interpelar pelo granito das ruas, mudos edifícios que me olhavam sem delicadeza. Voltava sempre para o horizonte marítimo, ao fim-de-semana, como que para um balão de oxigénio.
Em Braga, havia uma janela na qual me debruçava (qual varandim de um barco) para observar o movimento da vizinhança. Sei, hoje, que a janela é uma justa metáfora da forma como encaramos a vida. Uma moldura concetual, um filtro. Porque a verdade (ao contrário do que cheguei a acreditar) nunca é um destapar do pano. “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os factos”. (“O Espelho”, Primeiras Estórias). Como numa janela, observo as interseções dos lugares, não esperando nada, que é a mais completa forma de comprometimento e intervenção. Uno a ideia da janela a Manoel de Oliveira. Apreender uma vida através dos documentos produzidos no decurso de uma atividade, isto é, dar sentido a essa organicidade documental, é iniciar uma jornada a que nunca se encontra o fim, não há nada de universal e exato numa vida. Como num passeio, experienciei, neste projeto, o medo de encarar o desconhecido, a responsabilidade de calcorrear os caminhos corretos, a necessidade de despir todos os contextos, todas as ideias pré-concebidas, para aceitar o que o percurso nos propõe. A partir daqui, sou encaminhada, como num navio à deriva, para o filme Je rentre à la maison/Vou para casa.

O imprescindível turbilhão do exterior, que nos empurra, cedo ou tarde, para um regresso ao quente do útero. Que é uma casa onde não precisamos de fabricar nada, nem observar, quase nem respirar. É possível que vivamos em espiral e não em linha reta. O útero é como que uma caverna onde recarregamos baterias. Mas o redemoinho experimentado por um mergulho no mar, onde por momentos perdemos a noção espacial ou temporal, é, para mim, mais do que um desejo, uma inevitabilidade.
Assim sendo, sigo viagem e confesso-me numa encruzilhada. Mas é necessário ler as indecisões dos caminhos, “o diabo no meio do remoinho”. Miguelim adulto é Miguel em “O Buriti”, só percebi isso numa terceira leitura recente. De modo que Miguel, depois de viajado, procura um lugar-casa, que é o corpo de uma mulher que conhece superficialmente e por quem se apaixonou. É, também, um regresso ao útero, mas renovado. Não para morrer já, como com Michel Picolli, em Je Rentre à la Maison, mas para renascer. Uma espécie de olhar ao espelho ou a chegada de alguém que esperávamos, sem o sabermos conscientemente. Neste emaranhado paisagístico em forma de texto, olho as notas que tirei previamente. Escolho, para este pedaço de caminho, Guinga e a canção Meu Pai. Porque nos fala da infância, do que se espera que as ruas do subúrbio carioca respondam, perante a busca incessante de um autor pelo seu pai. Um cruzamento entre uma história de vida pessoal e um espaço público comum, carregado de memórias e desejos individuais. Voltamos à ideia do espelho, que é, claro está, um nunca completo processo identitário.

Por fim e ainda, uma outra janela. Neste caso, um outro filme, do realizador Edgar Pêra. A Janela (Marialva Mix) pode ser um olhar acelerado sobre o quotidiano de um típico bairro lisboeta. Ou uma espera numa janela, onde tudo passa e nunca se sabe bem se o que vemos a acontecer é resultado da nossa cabeça ou a realidade. Seja lá o que isso for. Uma vez mais, público e privado, particular e universal. Caminhos múltiplos, verdades e inverdades, espelhos que são o que queremos ver, sintonias e aversões. Prossigamos o Passeio.
Teresa Lima
Bolseira de investigação na Passeio- plataforma de arte e cultura urbana, é doutoranda de Ciências de Comunicação na UMinho, com uma tese que relaciona a biografia e a comunicação, a partir da história de vida do realizador Edgar Pêra. Com um percurso profissional que começou no jornalismo, enveredou, mais tarde, pelas Ciências da Informação, tendo participado no tratamento do arquivo Manoel de Oliveira, atualmente depositado na Casa do Cinema, na Fundação de Serralves.
A simulação da moral (do blogue Tendências do Imaginário)
Albertino Gonçalves

«Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube» (Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, 1523).
Manifestam-se cada vez mais frequentes os anúncios que aderem ao formato patente no anúncio russo Born Inclusive, da Naked Heart Foundation. Creio que se inspiram, por um lado, na sofisticação (quase) laboratorial da psicologia experimental e, por outro, na vulgaridade mediática dos “apanhados”. Não duvido que sejam eficientes e convincentes, mas comportam uma característica que me provoca algum ceticismo e renitência. Encenam situações ideais que tendem a afastar o ruído ambiente, as intromissões, eventualmente imprevisíveis, dos efeitos “parasitas”, por outras palavas, da contingência das variáveis e dos fatores que os sábios apelidam “espúrios”. Arrefecem a efervescência da vida, propendem a pintar o mundo a preto e branco: o certo e o errado, o bom e o mau… Uma simplificação sedutora. Convoco a máxima do sofista Protágoras, “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”, e o pensamento de Pascal, a medida do homem é turbulenta, incerta e infinita. Lutar por um mundo melhor não significa caricatura-lo e descolori-lo. A redução maniqueísta e monocromática não me parece uma perspetiva apropriada, não é uma promessa auspiciosa.
Demasiado cínico? Estou em crer que mais vale cínico do que estúpido. “O indivíduo estúpido é o tipo de indivíduo mais perigoso”; “o indivíduo estúpido é mais perigoso do que o bandido; ” “É estúpido aquele que desencadeia um prejuízo para outro indivíduo ou para um grupo de outros indivíduos, embora não tire ele mesmo nenhum benefício e eventualmente até inflija prejuízo a si próprio” (Carlo Cipolla, Allegro ma non tropo, 1988).
Este comentário é, de algum modo, injusto para com o anúncio de sensibilização Born Inclusive, da Naked Heart Foundation. Trata-se de um exemplar de marketing e publicidade e como tal deve ser avaliado. Carece ser encarado à luz da linguagem do marketing e da publicidade e não de outra linguagem, por exemplo, a linguagem externa da filosofia e da sociologia. Neste sentido, este comentário apresenta-se como uma crítica “bárbara”, uma violência simbólica, na aceção de Pierre Bourdieu. Cai na falácia de impor um sistema de relevâncias, estranho, a outro sistema de relevâncias, original, francamente distinto. Do ponto de vista do marketing e da publicidade, este anúncio, criativo, consistente, pedagógico e eficaz, resulta excelente. Acerta no alvo: a predisposição para a discriminação não nasce connosco, é fruto da socialização primária, da endoculturação. Um pressuposto que vai de encontro a Rousseau (“A natureza faz o homem feliz e bom, mas (…) a sociedade degenera-o e o torna-o miserável”: Dialogues, 1772-1776) e a Durkheim (“A sociedade encontra-se portanto, a cada nova geração, na presença de uma tábua quase rasa sobre a qual é necessário construir a novo custo”: Éducation et sociologie, 1922).

Acontece que um anúncio, para além de orbitar na esfera do marketing e da publicidade, não deixa de ser um fenómeno social. É composto por raízes (contexto), caule (suportes), ramos (redes e canais), folhas (ações) e sementes (efeitos) sociais. Não se pode escusar a uma leitura filosófica e sociológica, por mais corrosiva e cínica que seja. No que me respeita, não me inibo de ler nas entrelinhas de quaisquer modalidades de comunicação, principalmente aquelas que se são grávidas de consequências, quando não de efeitos perversos subliminares que não passam pelo crivo da consciência e do raciocínio avisados e oportunos.
Hoje o dia está peneirado!
A língua portuguesa, apesar de a tratarmos tão mal, com acordos mal engendrados e pouco esclarecedores, é de uma riqueza infindável e permanentemente viva, com novas palavras que emergem diariamente e outras que vão entrando em desuso.
É desta riqueza que hoje venho falar porque um destes dias, numa manhã fria de Janeiro, ouvi a seguinte expressão a uma minhota de gema: “hoje o dia está peneirado”, referindo-se à geada que se tinha formado durante a noite e que tornava a paisagem branca como a farinha. Quando isto ouvi esbocei um sorriso pela beleza da expressão e, de imediato, o meu pensamento voou para alguém, qual figura alada, que, durante a noite, tivesse andado, montado num tapete voador ou numa nave espacial, com uma peneira e um saco de farinha a peneirar a terra. E tinha feito isto apenas porque lhe apetecia brincar, deixando os pobres terrestres a olhar o branco da paisagem e a tiritar de frio por uma horas, até vir o sol e, magicamente, desaparecer tudo até ao outro dia.

Esta expressão levou-me para o linguajar regional e das palavras novas que aprendi quando vim residir para o Minho. Ainda não estou enraizada, mas, de vez em quando, já digo, sem me aperceber, uma ou outra palavra ou…um palavrão! É que de tal modo são comuns por estas bandas que à custa de tanto os ouvirmos começam a ser-nos familiares. Mas, ao inverso, também aprendi a não dizer certas palavras e expressões, mais típicas da região beirã, para não deparar com o olhar interrogado de alguns.
Mas olhemos algumas diferenças do nosso linguajar. Comecemos pelo tempo meteorológico onde os minhotos têm algumas particularidades. Habituados a um clima mais ameno chamam “neve” à geada, e ao granizo, que nós chamamos “saraiva”, exageram um pouco e vem daí “pedraça”. Quando faz aguaceiros, entendem que há “chuveiros” e quando troveja dizem que “trovoa”.
Para se referirem aos miúdos chamam-lhe “canalha”, o que para nós é um insulto, e a franja do cabelo são as “rêpas”. Na Beira “rêpas” é um cabelo mal penteado, por isso nunca disse no cabeleireiro que queria cortar as “rêpas”, sinto até algum pudor em utilizar a palavra. Assim como também ainda não consigo dizer “passador”, em vez do “travessão” ou gancho do cabelo.
Na linguagem gastronómica também nos diferenciamos. Por exemplo, na Beira diz-se que o pão está “ressesso”, palavra que ninguém conhece no Minho. Aqui dizem que o pão é “atrasado”. Ao comprar alfaces no mercado deparo-me com a expressão genérica de “salada” ou “selada”, mais popular. As abóboras são “cabaças” ou jerimus e o arroz malandro aqui é “arroz fresco”, a fugir pelo prato fora como deve ser! O “chícharo” aqui vira “feijão-galego” ou “miúdo” e no resto do país feijão-frade, palavra que agora se vai generalizando. Atenção que o chícharo noutras regiões é outra variedade de feijão! Mas também não me esqueço que o “conduto”, ou seja, o prato que se segue à sopa, por cá denomina-se “presigo”. E nós, beirões, quando queremos descascar umas batatas usamos, no nosso linguajar mais popular, a palavra “esbrugar”, assim como “caldeiro” para designar balde, palavras que vão caindo em desuso.
Se falarmos dos ramos das árvores, pernadas ou cavacos, aqui temos que lhes chamar “canos” e as cavacas assumem a denominação de “canhotas”. Vai daí também a caruma vira “pruma”.
Com os meus filhos também aprendi alguma linguagem escolar. As “burronas” são as nossas canetas de feltro e as “safas” são as borrachas. Quando se brinca à apanhada não se diz “apanhei-te” mas “cacei-te”.
E a propósito de crianças lembrei-me das festas de anos. Os meus filhos habituados, desde muito pequenos, a comemorar o aniversário na escola, deles e dos colegas, diziam com toda a naturalidade que estavam a “bufar“ às velas, ou seja, “soprar”. E eu corrigia: diz “sopra” porque “bufa” é outra coisa….! A língua portuguesa é muito traiçoeira!
A Inteligência Artificial e Seus Herdeiros

No universo dos videojogos, confesso-me um old school. Tenho uma máquina arcade em casa, com jogos das décadas de 80 e 90. Ainda prefiro a estética 2D. Mas é inegável o impacto do 3D, da inteligência artificial (AI) e do Machine Learning (ML) no desenvolvimento dos videojogos em particular, bem como na economia em geral. Só a título de exemplo, recordo que a partir de 2020, as receitas da indústria de videojogos ultrapassaram as indústrias do cinema e do desporto (1).
Um dos jogos que pratico com regularidade é o jogo de damas. Considero que a vida comum, a monótona e que nos envolve todos os dias, é mais parecida com um jogo de damas do que de xadrez. No xadrez há reis, rainhas, bispos, cavalaria, etc. Mas isso não se reflete na lógica de uma microssociologia, onde o plano vigente é o da proximidade entre peças, e onde as hierarquias e vantagens não são feitas de grandes poderes; antes de pequenos movimentos, de pequenas antecipações, de pequenas flexões para encaminhar o próximo a agir.
Habitualmente, jogo damas contra o computador. E ele usa machine learning (ML). E eu uso aprendizagem humana. É uma dança constante. No início de cada nível, perco. Depois uso essa espécie de ultra-instinto baseado na aprendizagem, e ganho. Subo de nível, e tudo recomeça: a máquina ganha até eu perceber como posso ganhar. E depois ganho eu. Subo de nível até ao topo. E no topo tenho, já, muita dificuldade em ganhar. Tenho que memorizar jogadas, sequências, usar muitas vezes o ‘undo’ para entender o sucedido. E só assim ganho, depois de muito treino.
Em fevereiro de 2023, um advogado robô vai defender um humano. Com um tipo de AI. Não se sabe ainda qual a sua base de dados, se apenas jurídica ou se complexa e capaz de misturar boas práticas humanas com aberturas legais. Veremos como se desenrola o processo (2).
Billy Corgan, vocalista dos Smashing Pumpkins, considera que o futuro da música será um domínio completo da AI. Se atualmente o eletrónico já domina na maioria dos processos musicais, no futuro a junção de eletrónico com AI será uma certeza. O rocker considera que o músico que dominar a produção musical com AI dificilmente terá rivais (3).
Já foram produzidas músicas em AI. Ao grupo dos 27, o projeto Lost Tapes aplicou um processo de produção completa de letra, música e voz de artistas que já não se encontram entre os vivos. Entre Jimi Hendrix, Amy Winehouse, entre outros, o projeto Lost Tapes também aplicou o processo aos Nirvana, ressuscitando Kurt Cobain e traços das suas capacidades de composição e interpretação. O resultado é muito bom, nas músicas You’re Going To Kill Me (Jimi Hendrix), Man I Know (Amy Winehouse) e Drowned in the sun (Nirvana).
Apesar das potencialidades infinitas, e de resultados muito bons, há ainda coisas que falham na AI. Acho que posso sintetizar essas falhas com o exemplo das damas e com a expressão ‘Somos mais do que as máquinas’, cantada por Gavin Rossdale (dos Bush).
Com as damas, reparo que o ML será sempre melhor do que eu porque o jogo é fechado. É apenas aquilo. As regras são simples e as possibilidades finitas. A ML do jogo pensa 3 a 4 jogadas à frente, com memória infalível. Se eu pensar em 5 à frente, ele aumenta para 6. E assim sucessivamente. Dificilmente terei hipótese dentro deste tipo de jogos.
Mas com a música, ou eventualmente com a decisão de um juiz, tudo será diferente. Estamos já em ambientes mais infinitos (mais na música do que na justiça, obviamente). Como refere Gavin Rossdale, ‘Somos mais do que máquinas porque sentimos’.
E sentir é algo que a AI, por mais engendrada com o ML, nunca conseguirá fazer. Quando o Kurt Cobain criou a Sappy, misturou o amor por uma tartaruga, as memórias do seu lar infantil meio distorcido, uma depressão profunda e uma adição poderosa às drogas. Não há AI que deste combinado retire o que quer que seja. Passem os anos que passarem. Como pode a AI criar a partir de fundos que não tem? De emoções que não conhece? De razões que não obedecem a qualquer lógica?
Mais: como pode uma máquina ler um texto de Franz Kafka e produzir um som tão obscuro quanto aquilo que é a reticência do pensamento kafkiano? A obscuridade que não está no texto, mas que reside na paisagem imaginária e comum de mentes que se leem e tornam gémeas?
Não pode a AI mas pode o humano. É o caso do texto At Night (de Franz Kafka) e da música At Night, dos The Cure. No texto de Kafka, é-nos apresentada a continuação da ideia de um vigilante sempre presente. E da noite, aquele silêncio em que só um olhar divino pode controlar. O texto reza assim:
“Deeply lost in the night. Just as one sometimes lowers one’s head to reflect, thus to be utterly lost in the night. All around people are asleep. It’s just play acting, an innocent self-deception, that they sleep in houses, in safe beds, under a safe roof, stretched out or curled up on mattresses, in sheets, under blankets; in reality they have flocked together as they had once upon a time and again later in a deserted region, a camp in the open, a countless number of men, an army, a people, under a cold sky on cold earth, collapsed where once they had stood, forehead pressed on the arm, face to the ground, breathing quietly. And you are watching, are one of the watchmen, you find the next one by brandishing a burning stick from the brushwood pile beside you. Why are you watching? Someone must watch, it is said. Someone must be there.” (4)
Robert Smith, líder carismático dos The Cure, recria At Night a partir do texto de Kafka não como um pintor de paisagens, mas como um pintor de sons (5). Há, nesta diferimitação (imitação diferenciada e transdutiva), toda uma sinistra atmosfera que só a maior sincronia mental e artística poderia refletir o escrito. Saberá sequer o que é uma transdução, a AI? Não me parece…nem o humano sabe do que são feitas essas comunicações entre diferentes matérias…
O ideal mesmo é ler Kafka e, simultaneamente, ouvir esta At Night.
Contudo, e já que crescem as aplicações da AI no mundo humano, seria interessante ver a sua aplicação ao mais finito mundo da corrupção. Sobretudo na ajuda à gestão da transparência nas democracias. Dava jeito a Portugal termos uma máquina incorruptível, cumpridora, zelosa, para enfrentarmos o futuro. Se assim fosse, o pântano em que mergulhamos atualmente não existiria…
(3)https://radarlisboa.fm/2022/09/27/billy-corgan-critica-industria-musical/
(4)https://www.goodreads.com/quotes/10478175-deeply-lost-in-the-night-just-as-one-sometimes-lowers
Autópsia de um crime com revolução em fundo
Luís Cunha

Revisitar o momento e acompanhar as circunstâncias em que Aldo Moro foi executado pelas Brigate Rosse (BR) em Itália leva-nos a olhar o passado como se este fosse um país estranho, para usar aqui uma formulação de uso corrente. É a essa viagem que nos convida Marc Bellocchio em Esterno Notte, uma série em seis episódios, recentemente disponibilizada numa plataforma de streaming. O espetador sabe que Aldo Moro foi executado, pelo que não é a incerteza do desfecho que nos leva a querer ver o episódio seguinte.
Tenho para mim que a virtude maior de Esterno Notte é a sobriedade quase documental com que nos leva a (re)visitar um tempo histórico recente e que, no entanto, nos parece estranhamente distante, como se não fosse parte do que somos hoje.
Naquele final da década de 70 vivia-se um tempo ainda incerto quanto ao rumo que o mundo haveria de tomar e que nos trouxe até aqui. Na verdade, usando a frieza analítica que a distância temporal nos permite, sabemos hoje que os dados estavam já lançados e que a grande viragem, aquela que levaria à substituição do consenso social-democrata pelo consenso neoliberal, iniciara já uma marcha irreversível. Podendo ser vista como um filme dividido em seis capítulos, a série Esterno Notte leva-nos a esse período agitado, concretamente a 1978 e aos dois meses que durou o sequestro de Aldo Moro. Recorde-se que o sequestrado foi uma das figuras maiores da política italiana do pós-guerra: primeiro-ministro em meados da década de 60, responsável por várias pastas em diferentes governos, era, à data dos acontecimentos, líder da Democracia Cristã e um dos principais defensores do entendimento político com o Partido Comunista Italiano, o famoso Compromisso Histórico. O ano de 1978 é um bom ponto de partida para percebermos um período que agora nos parece estranho, mas também, e sobretudo, para nos ajudar a perceber essa estranha dialética entre as escolhas que homens e mulheres concretos fazem a cada momento e essa indefinida mas poderosa força que desenha o ar do tempo e condiciona, às vezes de forma decisiva, o que se escolhe fazer.
A execução de Aldo Moro assinala, simultaneamente, o ponto de máxima notoriedade e de declínio de uma força política armada que foi responsável por dezenas de assassinatos em Itália. Fundadas em 1970, as BR podem ser vistas como produto de uma dobra histórica que ganhou visibilidade em maio de 68 em Paris, para depois assumir as variadíssimas expressões que durante décadas marcariam o espaço político da Europa Ocidental. A sua face mais radical revelou-se na criação de grupos políticos armados, descrentes das virtudes da democracia representativa e que se viam a si próprios como os agentes que operariam a verdadeira revolução, desígnio que justificava o sacrifício próprio e a punição dos que se lhes opunham. As suas ações estendem-se entre as décadas de 60 e 80, desenhando o que, cerca de meio século depois, nos parece um “país estrangeiro”, assustador pelos atos praticados mas também sedutor pela demonstração da força que há nas ideias e nos sonhos de mudança.

Espreitemos os atos, sem sair do tempo retratado na série. Poucos meses antes do sequestro de Moro vivera-se na República Federal Alemã o chamado Outono Alemão, marcado pelo assassinato, às mãos da Rote Armee Fraktion (RAF), vulgarmente conhecida como grupo Bader-Mainhof, de um Procurador-Geral e de duas ilustres figuras ligadas à banca e à indústria. Um ano antes, os Revolutionäre Zellen, em cooperação com a Frente Popular para a Libertação da Palestina, sequestrara e desviara para o Uganda um voo da Air France, dando continuidade a um foco de intervenções em nome da libertação da Palestina que começara pouco antes, com um ataque à sede onde reuniam os países produtores de petróleo. Também em Portugal, nesse mesmo ano de 1978, um agente da Polícia Judiciária é morto e dois outros feridos numa operação militar contra o Partido Revolucionário do Proletariado – Brigadas Revolucionárias (PRP-BR), estrutura criada em 1973 e que se extinguiria em 1980, com alguns dos seus membros a transferir-se para Projeto Global/FP25.

Muito diferentes entre si, estes e outros movimentos convergiam na legitimação da luta armada contra as estruturas de poder e figuras a elas associadas, embora divergissem, frequentemente, no matiz ideológico que os inspirava. Um cartaz do PRP-BR sintetiza a convergência: “A arma é o voto do povo”, proclama, acrescentando, “Não às eleições. Sim à Revolução Socialista”. Justificavam-se assim as ações armadas contra os símbolos e as figuras do poder, onde se incluem assaltos a bancos, sequestros ou assassinatos de figuras políticas ou ligadas à alta finança e indústria.
Em países como Itália e Alemanha foi igualmente importante o combate a figuras saídas diretamente do nazismo e do fascismo para a democracia do pós-guerra. No plano das ideias, eram muitas as subtilezas ideológicas evocadas na margem esquerda dos partidos comunistas europeus, onde todos estes movimentos se situavam, mas era usada uma palavra que efetivamente os unia: Revolução! Entrevistado pelo L’express a propósito dos acontecimentos de Maio de 68, Henri Lefebvre usara-a também de forma expressiva: “Julgo que os acontecimentos que se acabaram de desenrolar são o esboço da primeira revolução do século XX” [In A Revolta de Maio em França, Cadernos Dom Quixote, 11, Publicações Dom Quixote, Lisboa, 1968, p. 107]. Remetendo a revolução russa para o século XIX, Lefebvre à semelhança de outros intelectuais, como Sartre, sinalizava uma novidade com potencial para desenhar um novo tempo. Este não é o lugar para escalpelizar um esboço de desenho que nunca ganhou traço firme, mas onde se combinava a crítica ao centralismo democrático e à vanguarda dirigente com a projeção de uma frutuosa conciliação entre trabalhadores e estudantes, na tentativa de encontrar um sentido para um mundo que estava a mudar demasiado depressa e que, vemo-lo agora, não parou desde então de acelerar nessa mudança.

A estranheza, a ela volto, é a que resulta de hoje olharmos um tempo em que a ideia de Revolução não só fazia parte do quotidiano como transportava em si a abertura a uma imaginação política que não se continha na proclamação supostamente racional de que «Não há alternativa». Parece-nos distante e no entanto, vendo de outra forma, a eterna tensão entre a dúvida que nos constrange e a certeza que nos empurra para a ação são as de sempre. No episódio 4 de Esterno Notte há um episódio particularmente revelante no equilíbrio dramático da série e que remete para essa constante. Trata-se de um diálogo entre o casal de brigadistas ligados ao sequestro de Moro que vamos acompanhando desde o início da série. Ela desconfia da utilidade da estratégia política que está a ser seguida nas negociações associadas ao sequestro, afirmando que não bastam jogos daquele género para vencer e agitar as massas. Ele pergunta-lhe se acredita mesmo que conseguirão vencer e conquistar o poder. Percebemos que para ele não se coloca qualquer horizonte de vitória, “Che Guevara é o nosso herói e será o nosso fim”, afirma, e acrescenta “A minha verdadeira paixão não é a revolução mas a transgressão, rebelar-me contra as ordens, desobedecer”. É em nome destes objetivos limitados que ele se mostra disponível a sacrificar Moro, tal como sacrificou a sua vida pessoal. Este realismo colide com a crença da companheira na revolução, em nome da qual, como lhe recorda, abandonara uma filha e aceitara fazer um aborto. Toca-lhe ainda mais fundo quando lhe diz que em nome de uma revolução em que não acredita ele aceitara matar cinco pais de família, referindo-se aos guarda-costas que acompanhavam Aldo Moro na altura do sequestro.

Entre o ceticismo e o desencanto, este casal ficcionado por Bellocchio coloca-nos perante dilemas que não se encerraram com a extinção dos partidos e grupos que há cerca de 50 anos levaram a cabo centenas de atentados contra o sistema de poder. As perguntas permanecem: as mudanças conseguidas num quadro institucional são conquistas que nos servem ou distrações que nos afastam de transformações reais? Podemos nós falar e agir em nome de alguém que não nós próprios? Faz sentido combater o ar do tempo ou devemos deixar que ele nos leve? Sobra a convicção de que o passado é mesmo um país estranho e a certeza de que a estranheza que hoje sentimos ao ver Esterno Notte é equivalente à que sentirão os futuros espetadores de uma série que retrate algum episódio trágico dos nossos agitados dias, por exemplo a tomada dos símbolos de poder em Washington ou Brasília a que recentemente assistimos. Também ali há fé e convicção, febre e cegueira; homens e mulheres que acham que estão no centro da História e outros a que basta a adrenalina da transgressão. Comparação espúria, bem sei, apenas permitida em nome dessa estranha matéria que é o tempo e do incerto sentido que nele descobrimos.

Luís Cunha, professor da Universidade do Minho, doutorado em Antropologia, é autor de A nação nas malhas da sua identidade (1994), Memória social em Campo Maior (2006) e Vinte mil léguas de palavras (2017; Prémio Nacional do Conto Manuel da Fonseca 2016).
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