Curiosidades do Primeiro de Abril
Pela mão do historiador de arte Eduardo Pires de Oliveira, o blogue Margens tem a oportunidade e o privilégio de divulgar seguintes documentos, deveras fabulosos, respeitantes à escadaria do Santuário do Bom Jesus do Monte de Braga: uma imagem de meados dos anos 1970 e uma fatura por serviços prestados nas capelas no ano 1785.

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Uma factura fantástica que tem sido atribuída ao Santuário do Bom Jesus do Monte
Entre a realidade e a fantasia não há diferença mensurável. Hugo Pratt, através do seu fantástico herói tão profundamente sonhador e humano que é Corto Maltese, deu-nos, melhor do que qualquer outro, a noção exacta dessa diferença: a diferença entre a realidade e o sonho está no simples acto de abrir ou fechar os olhos!
Mas será essa uma diferença real? Não sei responder porque, na verdade, não sei em que mundo quero viver: se no mundo em que sou obrigado a andar com os olhos abertos e em que vejo continuamente coisas que nunca imaginei ver (atropelos de toda a espécie, mesmo pelas pessoas que nunca pensei que o pudessem vir a fazer, etc.); ou se no meu mundo interior em que o sonho comanda a vida, e em que ao não querer ver a “realidade” estou, talvez, a desrespeitar os outros.
Na história também acontece o mesmo. Ciclicamente chega-nos às mãos o conhecimento dos mais incríveis factos, que uns acreditam ser realidade e que outros sabem logo ser mentira. Mas, mesmo aqueles factos que facilmente percebemos ser mentira, podem lentamente tornar-se realidade se forem continuamente dados a conhecer, ou se a sua transmissão for feita por alguém que nós respeitamos e admiramos.
Mas a que propósito vem este relambório, perguntará o leitor. Explico-lhe já.
Por mais do que uma vez fui confrontado com a existência de uma factura fantástica que durante anos correu impressa e agora anda na net, sobre pequenas obras efectuadas no figurado das capelas da via-sacra do Bom Jesus do Monte. Como o espaço não dá para mais, vejamos apenas duas dessas cópias.
Uma foi-nos dada a conhecer pelo incansável bibliófilo Cândido de Sousa (“Diário do Minho”, 1 de Novembro de 1956: Velharias bracarenses. Uma factura… “roubada”?), infelizmente já há muito desaparecido do mundo dos vivos. A outra chegou-me há dias entre as brincadeiras que quotidianamente recebo pela net.
Uma, a de Cândido de Sousa, intitula-se
CÓPIA DA FACTURA APRESENTADA PELO ARMADOR À CONFRARIA DO BOM JESUS DO MONTE DE BRAGA, POR VÁRIOS SERVIÇOS EXECUTADOS NAS CAPELINHAS DA ESCADARIA NO ANO DE 1785
a outra tem um título similar mas que, se analisarmos bem, apresenta imensas diferenças e, desde já o digo, é muito mais inverosímil
CÓPIA DA FACTURA QUE UM MESTRE-DE-OBRAS APRESENTOU EM 1853 PELA REPARAÇÃO QUE FEZ NA CAPELA DO BOM JESUS DO MONTE DE BRAGA (Do original arquivo da Torre do Tombo)
Analisemos a possível plausibilidade de ambas:
Em 1785, o Bom Jesus estava num momento de charneira. Tinha uma obra maior, imensa, que lhe absorvia quase todo o dinheiro possível e impossível de obter: a construção da nova igreja, iniciada precisamente no ano anterior. Se lermos a excelente e minuciosa tese de Mónica Massara, logo descobriremos que nesse ano as despesas estavam todas vocacionadas para aquela obra maior.
Em 1853, a confraria do Bom Jesus do Monte não tinha obras excepcionais a fazer, embora estivesse a correr um trabalho de certa monta: a construção da capela da Elevação.
Reparemos agora na pessoa que é apresentada como responsável pelas obras: é-nos dito que em 1785 foi um armador que ficou com o encargo; e em 1853 um mestre-de-obras.
Ora, não nos parece plausível que um ou outro destes homens pudesse ter tomado à sua conta estes pequenos “remendos”. Um armador aceitava o trabalho de preparar festas, procissões, ornamentações fúnebres, etc.; um mestre-de-obras encarregava-se de trabalhos de pedra, raramente de carpintaria, e nunca de pequeninas reparações de figurado.
A verdade é que nesta data o trabalho escasseava, mesmo numa cidade extremamente importante do ponto de vista religioso como era o caso de Braga. E como a urbe era pequena, rapidamente os artistas sabiam da necessidade de se fazer estes retoques e acorriam a oferecer-se, sobretudo aqueles que tinham um menor nome no mercado e que, confessemos, eram perfeitamente aptos para executar este tipo de trabalhos.
Vejamos agora o local onde teriam sido feitas as obras: para um, foi nas capelas da via-sacra, o que nos parece plausível. Para outro, na capela; mas qual capela, perguntamos nós?
E não se esqueça que enquanto um nada nos diz sobre o local onde se guarda a factura original, o outro informa-nos que está na Torre do Tombo. E a minha pergunta será: porque carga de água na Torre do Tombo? Nem na Torre do Tombo nem no Arquivo Distrital de Braga! Um papel desses, a existir, guarda-se nos arquivos da confraria.
Por último, devemos dizer que enquanto o primeiro dos relambórios tem 14 parcelas, o outro tem 16. E enquanto um apresenta um total de 16$760 réis, o outro dá-nos apenas o valor de 2$545 réis, um preço perfeitamente irrisório, tanto mais que havia algumas obras que, embora fossem menores, não eram assim tão baratas.
Naturalmente, não vamos apresentar aqui os dois relambórios. Daremos apenas conta do que nos parece ser mais plausível, o de 1785:
1 – Por corrigir os dez mandamentos, embelezar o Pôncio Pilatos, mudar-lhe as fitas e limpar o nariz 1$700 réis
2 – Um rabo novo para o galo de S. Pedro e pintar-lhe a crista $500 réis
3 – Lavar o criado do Sumo-sacerdote e pintar-lhe as suissas 1$000 réis
4 – Dourar e pôr asas novas no lado esquerdo do Anjo da Guarda e botar-lhe vinho no cálice 1$000 réis
5 – Tirar as nódoas ao filho de Tobias 2$000 réis
6 – Uns brincos novos para a filha de Abraão $930 réis
7 – Avivar as chamas do Inferno, pôr um rabo novo no diabo e fazer vários concertos nos condenados 2$400 réis
8 – Renovar o purgatório e pôr-lhe almas novas 1$830 réis
9 – Limpar o fato e a cabeleira de Herodes e retocar-lhe o bigode 1$000 réis
10 – Meter uma pedra nova na funda de David e empastar a cabeça de Gulias (sic) e alargar as pernas de Santo Saúl 1$400 réis
11 – Adornar a arca de Noé e compor a túnica do filho pródigo, limpar-lhe a orelha esquerda e lavar os pés $600 réis
12 – Renovar o céu, arranjar as estrelas e limpar a lua 1$400 réis
13 – Pôr umas barbas novas no Padre Eterno e pintar a pomba do Espírito Santo 1$000 réis
14 – Cortar o cabelo e comprar um lenço novo para assuar (sic) o nariz do rapaz da cesta dos pregos
Importa a presente em dezasseis mil setecentos e sessenta réis.
E por ser cópia e conforme, peço a todos quantos a lerem a façam cumprir e cumpram tão fielmente quanto eu.
Braga, ano de N. S. J. C. de 1785, aos 28 de Fevereiro
- Jeremias Anastácio Rei
F.S.M.
Ressalta logo aos nossos olhos que esta factura é de todo inverosímil. Se lermos com atenção, veremos que falta a conta da última parcela, e que mesmo assim a soma total bate certa!
E o que é que nos diz a sabedoria imensa de Cândido de Sousa? Precisamente isso mesmo! Sem tirar nem pôr!
Ou seja, que já vira esta factura publicada na “Revista da Semana”, do Rio de Janeiro, ano 18, nº 35, de 6 de Outubro de 1917 e que a redacção desta revista carioca indicava que por sua vez a encontrara num jornal francês de que não indicava o nome, onde era dada a conhecer uma conta curiosa apresentada às autoridades eclesiásticas de uma povoação da Bélgica pelo artista que fora encarregado de executar diversos trabalhos numa velha igreja. E, de seguida, apresentava uma tradução dessa factura, em tudo semelhante à que acima transcrevemos.
Quer dizer: da Bélgica foi para a França, da França para o Brasil, do Brasil para o Bom Jesus do Monte!!! Quase me parece aquelas lengalengas infantis…
Claro que ainda ficou muito por dizer, mas nem o meu espaço no jornal é elástico (apenas uma página que deverá ser “temperada” por uma gravura), nem o tempo para me ler é eterno. O leitor já tem dados suficientes para poder analisar mais calmamente a factura e sorrir. Pelo que me fico por aqui. Até uma próxima oportunidade.
Diário do Minho, Braga, 5 de setembro de 2005
Eduardo Pires de Oliveira
Os coletes amarelos. Um imaginário da revolta na era digital

Surgem estudos que, sem recurso a dispositivos de investigação tais como observatórios, institutos de sondagens ou bases de dados, logram captar dinâmicas e tendências sociais emergentes, em status nascendi. Com o tempo, não perdem, adquirem relevância. É o caso do ensaio de Jean-Martin Rabot sobre o movimento dos “coletes amarelos” em França enquanto sintoma de um novo imaginário e de um novo tipo de mobilização suscetíveis de subverter os regimes democráticos instalados através do retorno a outras formas de socialidade.
Revolta gaulesa. As ruas de Paris em chamas

Violência em França. 23 de março de 2023 © Alain JOCAR / AFP
“A semana [19 a 25 de março] mais tensa da vida política e social francesa do último ano terminou esta quinta-feira com mais uma demonstração de dissonância total entre as ruas e o Presidente. O nono dia de manifestações contra a reforma do sistema de pensões de Emmanuel Macron teve protestos que atraíram mais de um milhão de pessoas em mais de 200 cidades, greves e bloqueios um pouco por toda a França (…) Ainda o desfile organizado pelas centrais sindicais não tinha chegado ao fim e já a zona em redor da Ópera de Paris estava transformada num campo de batalha em que os manifestantes black bloc e a polícia coreografavam avanços e recuos, ataques e contra-ataques. Vestidos de negro e com a cara coberta, dezenas de pessoas partiram montras, incendiaram lixo e quiosques, montaram barricadas, atiraram pedras, garrafas e cocktails Molotov à polícia. Esta respondeu lançando gás lacrimogéneo” (https://www.publico.pt/2023/03/23/mundo/noticia/ruas-franca-voltam-encherse-aumento-idade-reforma-2043588)”
CiNEMAS

Foi recentemente lançada pela AO NORTE a CiNEMAS, uma revista eletrónica dedicada à reflexão crítica em torno do cinema, da escola e do cineclubismo. Com tiragem semestral, e acompanhando as atividades da Associação AO NORTE. CiNEMAS tem a direção de Daniel Maciel e, na Comissão Editorial, contou com a colaboração de Gláucia Davino e Teresa Norton Dias.
Do editorial deste primeiro número, respigamos um excerto:
“(…) É neste espírito de aprendência que lançámos a publicação que se segue, produzida a partir de contribuições de gente que de alguma forma se vai cruzando com a AO NORTE e nos presenteia com reflexões, questões, projectos, e experiências várias. A edição 1 da CINEMAS condensa assim uma multiplicidade de perspectivas, tonalidades de análise e temas, texturas sensoriais, abrindo-nos a curiosidade em várias frentes e motivando-nos para o movimento de aprendência que provocou a organização dos Encontros de Cinema de Viana, das várias actividades da AO NORTE e dos cineclubes em geral, assim como o lançamento desta mesma publicação. Permitamo-nos este acto existencial, talvez egoísta, mas não sendo por isso menos edificante, de procurarmos o questionamento que alimenta esta aprendizagem activa”.
Vacinas do Pensamento
Entrevista a Álvaro Domingues
Importa imaginar para conhecer. Descolar da realidade para a descobrir. Desviar-se do rigor ruminante da “ciência normal” (Thomas S. Kuhn). E namorar a filosofia, as letras, as artes… Resgatar, até, o senso comum. Trata-se de uma opção que tem a virtude de franquear outras janelas para outros mundos, os “mundos da vida”. Sem eclipsar nem o “coeficiente humanístico” (Florian Znaniecki) nem a “dimensão acústica” (Marshall McLuhan) da experiência social. Quantos sociólogos podem rivalizar, por exemplo, com Marcel Proust ou Thomas Mann no retrato da ritualização quotidiana ou com Francisco de Goya na figuração do poder?

Álvaro Domingues assume-o. Instado por Diniz Cayolla Ribeiro a selecionar algumas obras chave para o entendimento da realidade contemporânea, convoca Todos os Nomes (1997), de José Saramago, Os Transparentes (2012), de Ondjaki, Portugal, o Mediterrâneo e o Atlântico (1945), de Orlando Ribeiro, e a poesia de Rui Lage. Dois romancistas, um poeta e um geógrafo, o mais literário e criativo dos cientistas sociais portugueses.
O Álvaro, excelente conversador, é um provocador inspirador e sedutor. Também um excelente parceiro de percurso. Inquieto e atento, mas ancorado num fundo seguro e sereno, lembra um todo-o-terreno com suspensão Rolls-Royce a palpitar paisagens adormecidas. É um explorador, um cúmulo de “serendipidade”, um rastreador de fenómenos “inesperados, anómalos e estratégicos” (Robert K. Merton). Não hesita em tentar os limites! No rio, não bastam as águas pasmadas da pesqueira, deixa-se levar pelas correntes revoltas; na praia, escala falésias escarpadas; e na serra, não há tojal que o demova. Quem não ousar acompanhá-lo, que se entretenha à espera. O Álvaro é assim! Sente-se na sua pele tanto só como acompanhado, tanto a idealizar como a concretizar.
Entretanto, a vida continua e a sabedoria já não é o que era. Desafina, senta-se cada vez menos nos coros e nos cadeirais institucionais. “Pelo sonho é que vamos (…) Chegamos? Não Chegamos? – Partimos. Vamos. Somos” (Sebastião da Gama, Sonho, in Pelo Sonho é que Vamos, 1953).
Vozes na Língua da Maré
Há uma espécie de homens-peixe que, se não veem o mar todos os dias, deixam de respirar. Ou dito de outra forma, que só deixam de ir ver o mar quando já não respiram. Esta forma de simbiose herdei-a dos meus antepassados, que até ao meu pai foram pescadores. O meu irmão ainda calça essas botas, que a mim não me serviram, o que me tornou terrenho, fisicamente distanciado da vida que levam para lá da língua da maré: linha de onde os que ficam se despedem dos que vão, aguardando a sua chegada.
Regresso sempre que posso a essa fronteira mutável, que balança com os humores da lua, do vento, e do mar. Ela é a metáfora de uma vida passada em escuta, de ganha-pão na mão, à procura, na boca salgada da minha gente, de palavras que, presas numa memória de malha apertada, se não esqueçam. É metáfora de uma vida à procura, nessa linha e nessas histórias que a ela arribam, de um cabo de amarração, de uma âncora, que me segure, que nos segure a todos, a um lugar.

Na Língua da Maré é metáfora de uma vida à procura, nessa linha e nessas histórias que a ela arribam, de um cabo de amarração, de uma âncora, que me segure, que nos segure a todos, a um lugar.
Comecei na praia dos meus avós nas Caxinas, em Vila do Conde, onde há um farol que não alumia nada nem tem, já, barco algum para alumiar, mas que continua a guiar-nos àquele areal. Ali conheci outros rostos atentos ao mesmo horizonte, e ali fundamos e fundeamos, há quase uma década, uma associação cultural, a Bind’ó Peixe, uma pequena catraia cuja companha vem lançando redes a um património em construção.

Em 2014, a Mútua dos Pescadores ajudou-nos a recriar, por umas horas, o tempo em que os barcos ainda chegavam à nossa praia, repetindo, com esse gesto, o empenho que coloca na promoção e apoio a uma miríade de iniciativas de valorização da cultura marítima, um pouco por toda a costa onde estão as comunidades que constituem, desde sempre, a sua razão de ser. Para um primeiro encontro, tão marcante ele foi, não poderia ter sido mais feliz.
No início de 2022 recebi um convite para escrever um livro para o 80.º aniversário desta cooperativa de seguros. Desejava-se, à partida, que ele refletisse o universo em que a instituição navega e, após uma primeira ponderação, considerou-se que a obra ganharia se, para além de textos, pudesse incluir fotografia. Helder Luís, artista, designer e fotógrafo que tem, nos últimos anos, produzido e editado importante obra sobre a pesca, a partir da Póvoa de Varzim, onde nasceu e atualmente vive, foi então convidado a participar na concepção e produção deste projeto.
Cada um à sua maneira, temos sido, promotor e autores, vozes da língua da maré: a Mútua, com as reflexões que produz na sua revista, nas campanhas e nos encontros que promove; Helder Luís, com livros como Atlântico, de 2019, e Sardinha, publicado já em 2023; e eu, que, em 2022, com a Bind’ó Peixe e outras entidades, concebi e coordenei editorialmente o projeto Rostos da Maré, com histórias de vida que cruzam os territórios de Matosinhos, Póvoa de Varzim e Vila do Conde, de que resultou um livro homónimo editado pela Área Metropolitana do Porto.
Inspirado em escritores como Bernardo Santareno (Nos Mares do Fim do Mundo), Ramalho Ortigão (As Praias de Portugal) ou Raul Brandão (Os Pescadores), há muito que aguardava uma aberta para me fazer a este mar num registo cronístico, cruzando observações, notas e depoimentos obtidos nos territórios da pesca com reflexões geradas por décadas de dedicação à cultura marítima. Poder fazê-lo, finalmente – mesmo sendo, como se notará, um verde de primeira viagem num banco de pesca frequentado por algumas das primeiras linhas da nossa literatura –, era uma oportunidade que não podia recusar.

Para este projeto estivemos em várias comunidades da beira-mar de Portugal continental, dos Açores e da Madeira, procurando testemunhos e sinais da relação desses lugares, e dos seus habitantes, com a pesca e com outras atividades marítimas, umas em claro recuo, outras a ganhar espaço na nossa economia. E com este livro, queremos principalmente apontar a atenção de quem o venha a folhear para um país em que o Atlântico, mais do que uma fronteira, para muitos de nós se mantém como extensão natural de um território físico e espiritual. A safra que desta viagem trazemos, não sendo, de todo, exaustiva, reflete, julgamos, no nosso trabalho documental e criativo, muita da diversidade de experiências que o mar, em Portugal, suscita.
Limitado pelo tempo disponível e pela vontade de publicar este livro ainda em 2022, no fecho das comemorações do octogésimo aniversário da Mútua, este roteiro acabou por deixar de fora vários portos, uns maiores, outros mais pequenos, onde vive gente e se desenvolvem atividades de inegável contributo para um retrato mais aprofundado da nossa maritimidade, passada e presente. São lugares e comunidades a que esperamos, noutros projetos, poder regressar, à procura de outras vozes da língua da maré.
Este texto é uma versão, com ligeiras adaptações, da introdução ao livro na Língua da Maré, de Abel Coentrão e Helder Luís. Uma edição Mútua dos Pescadores distribuída pela Âncora Editora.
As novas sereias. Encantos de espantar

Numa atmosfera eivada de exotismo e exuberância, os sentidos almofadados entregam-se ao ecrã das surpresas programadas (Albertino Gonçalves, instalação “cápsulas de emoções”, exposição Vertigens do Barroco, Mosteiro de Tibães, 2007)
Estiveram abertas até ao dia 10 de março as candidaturas para o concurso New York Festivals Advertising Awards, organizado em parceria com a BCW (Burson Cohn & Wolfe, empresa multinacional de relações públicas e comunicação, com sede em Nova York). A “chamada” desafia os candidatos a exibir algo nunca antes visto (“Show Us Something We Haven’t Seen”), capaz de impressionar e contrariar a saturação dos nova-iorquinos e dos profissionais de publicidade. Algo, ao mesmo tempo, espantoso e memorável.


“A New York Festivals (NYF) desenvolve, desde 1957, a nível mundial, uma atividade que convoca o espírito de rutura e de vanguarda caraterístico da cidade (…) A campanha de promoção reúne fotógrafos da cidade de Nova York cujas imagens expressam a vibração urbana de NYC e projetam uma luz reveladora da agitação e da atitude invulgares que alicerçam a excelência criativa em NYC” (Scott Rose, presidente, New York Festivals Competitions).
A campanha de promoção do festival é composta por três posters e um vídeo.
“Como nunca ninguém viu” é o título de um artigo que publiquei em 2011 (in Moisés de Lemos Martins et alii, Imagem e Pensamento, Coimbra, Grácio Ed., pp. 139-165). Corresponde à conferência “A construção do impossível: o espaço nos anúncios publicitários”, apresentada no Congresso Internacional de Ciências da Comunicação, em Braga, em setembro de 2009.
“‘Ver como ninguém viu’, porventura mais do que ver “o nunca visto”, eis a tentação ou, melhor, a proposta que percorre a publicidade atual” (Como nunca ninguém viu, p. 142).
O texto procura argumentar e ilustrar esta intuição. O vídeo “A construção do impossível”, com duração de 20 minutos, acrescenta uma seleção de anúncios ilustrativos. Segue uma primeira versão do texto, não paginada mas com imagens a cores (a versão editada, com imagens a preto e branco, está acessível no seguinte endereço do livro: https://hdl.handle.net/1822/29165), bem como o vídeo complementar. Constam entre os meus trabalhos preferidos, concebidos, aliás, durante um período de deriva da desmotivação da cidade académica para a exploração de trilhos menos consagrados. Menos pontos no currículo e mais realização pessoal. A criação do blogue Tendências do Imaginário, em 2011, constitui um marco e um bom exemplo.
A aposta no assombro, especialmente no nunca visto, cruza-se com duas tendências que atravessam a publicidade. A difícil captação da atenção e influência dos públicos justifica duas rotações: dos produtos para as marcas e do desejo para a adesão. À distinção invejável sobrepõem-se a identificação projetada e a estranheza fácil de entranhar. O foco desliza, assim, por exemplo, do belo e do funcional para o surpreendente e o insólito, que tocam, impregnam e envolvem. Uma espécie de rotinização ou homeopatia do anómalo.




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