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Vestir os Nus. Vídeo da conferência

Eu saí nu do ventre da minha mãe e nu hei de voltar ao seio da terra. Deus mo deu, Deus mo tirou

Job: 1:21

Na última década e meia, pouco me preocupei com a divulgação dos meus estudos. Quando muito um ou outro apontamento no blogue Tendências do Imaginário. Entretanto, a predisposição mudou. Passei a atender à transmissão dos conhecimentos amealhados, desde que pelos canais e do modo que bem entendo: sem demandas, candidaturas ou submissões. Multiplico, portanto, conversas e partilhas. Durante três dias a fio, empenhei-me na montagem do vídeo da conferência “Vestir os Nus: Censura e Destruição da Arte”. Embora obra de amador, não deixo de apresentar o resultado obtido.

Para aceder ao vídeo da conferência, carregar na imagem seguinte o no endereço https://tendimag.com/2023/04/08/vestir-os-nus-video-da-conferencia/

Vestir os Nus: Censura e Destruição da Arte. Albertino Gonçalves. Museu de Arqueologia D. Diogo de Sousa, em Braga, 18 de fevereiro de 2023

*****

Acabei de me inteirar de um novo caso de “agasalho de um nu”. Desta vez, o São Sebastião, de Guido Reni (1617-1618), da coleção do Museu do Prado. Acabado de restaurar, o original está exposto desde o passado mês de março.

Museu do Prado recupera original do São Sebastião de Guido Reni (1617-1618)

CiNEMAS

Foi recentemente lançada pela AO NORTE a CiNEMAS, uma revista eletrónica dedicada à reflexão crítica em torno do cinema, da escola e do cineclubismo. Com tiragem semestral, e acompanhando as atividades da Associação AO NORTE. CiNEMAS tem a direção de Daniel Maciel e, na Comissão Editorial, contou com a colaboração de Gláucia Davino e Teresa Norton Dias.

Do editorial deste primeiro número, respigamos um excerto:

“(…) É neste espírito de aprendência que lançámos a publicação que se segue, produzida a partir de contribuições de gente que de alguma forma se vai cruzando com a AO NORTE e nos presenteia com reflexões, questões, projectos, e experiências várias. A edição 1 da CINEMAS condensa assim uma multiplicidade de perspectivas, tonalidades de análise e temas, texturas sensoriais, abrindo-nos a curiosidade em várias frentes e motivando-nos para o movimento de aprendência que provocou a organização dos Encontros de Cinema de Viana, das várias actividades da AO NORTE e dos cineclubes em geral, assim como o lançamento desta mesma publicação. Permitamo-nos este acto existencial, talvez egoísta, mas não sendo por isso menos edificante, de procurarmos o questionamento que alimenta esta aprendizagem activa”.

https://www.ao-norte.com/cinemas.php

A PEDRA-MÃE DO CONVENTO DE MAFRA E DE JOSÉ SARAMAGO E AS COLUNAS DA IGREJA DO SANTUÁRIO DO BOM JESUS DO MONTE

2. AS DIFICULDADES SENTIDAS PARA AS LEVANTAR

Vimos já no jornal do mês passado as desventuras porque passaram os mesários da Irmandade do Bom Jesus do Monte para que a sua igreja fosse a mais bela, a mais digna de ser notada entre as muitas igrejas belas da cidade de Braga.

Vimos as dificuldades que os caminheiros tiveram para trazer as colunas da fachada de uma distância que não ia além de uns dois, no máximo três quilómetros.

Sentimos o cheiro intenso do suor de homens e bois, a chiadeira das rodas dos carros queixando-se do peso excessivo das pedras.

Soubemos da admiração da cidade, estivemos também na berma do caminho a incentivar bois e homens, a dar-lhes malgas de vinho e cuias de água.

Mas…

Mas o problema não estava totalmente resolvido: as colunas não serviriam de nada estendidas no chão! O templo não ficaria completo se as não tivesse!

Havia então que resolver o problema. Que fazer?

Teria sido mais simples se os mestres de pedraria tivessem estado em Lisboa no momento em que foi içada a estátua equestre do rei D. José, se conhecessem as máquinas e apetrechos que foram utilizados.

Claro que o problema não era o mesmo; mas não deixava de haver algum paralelismo.

Que fazer? Como é que haveriam de ser içadas?

Acredito bem que os mesários e o mestre responsável dormiram mal durante alguns dias. Até porque não queriam cortar as colunas.

Essa seria a situação mais fácil, mas era de todo descabida. Então para que é que tinha havido tão ingente esforço para as trazer inteiras?

Claro está que também não as queriam ver furadas, também não fazia sentido…

Depois de muito matutar, depois da mesa da irmandade ter ficado em grande consternação, pois se tinha cansado em procurar dos professores de arquitectura, curiosos, e mestres pedreiros, conduzindo estes ao Santuário, o mestre responsável pelos trabalhos, António José Lopes, descobriu a almejada forma para as colocar no sítio em que todos as queriam ver.

Deveria ser feita uma espécie de prisão de madeira

que prendesse a coluna no meio, toda chapeada, e com quatro argolões nos quatro lados, e nas costas da mesma se devia furar para meter uma torno de ferro que a não deixasse correr acima, e para não correr a dita imprensa pela face da coluna, devia atar-se uma cadeira pela cinta e viesse prender a outro torno de ferro que devia estar quase no fim das costas da mesma, e para maior segurança e prumo, devia levar na cabeça um ferro da grossura de um braço, que se enterrasse pela mesma três palmos abaixo, cujo segurasse pelas costas dela outro torno, e deste ferro devia pender o melhor calabre, e melhor roda, e dos quatro argolões outros quatro calabres e quatro rodas ou sarilhos que deviam puxar com igualdade,

A mesa da irmandade aceitou de imediato

a dita ideia e mandou se aprontasse tudo o necessário debaixo da inspecção do dito mestre.

No dia 2 de Julho tentou-se levantar a primeira. E, sorte dos deuses [ou do Bom Jesus do Monte], a coluna foi levantada!

A segunda foi içada passados dois dias. E fez-se então um pequeno espaço de espera, talvez para reflectir e reforçar os cabos que tinham sido utilizados.

E então no dia 9, como que mostrando que o problema até nem era assim tão difícil, levantaram as outras duas! O génio do homem tinha mais uma vez vencido.

O templo do Bom Jesus do Monte poderia ufanar-se de ter umas colunas tão possantes e tão belas!

A pedra onde foram arrancadas não teria razão para se lamentar – se o pudesse fazer – porque as suas “filhas” estavam ali a receber a admiração de todos!

Deixemos aqui, de novo, as descrições que retiramos do livro das actas. Lembramos só que é o mesmo volume que já demos a conhecer no texto anterior, nos fólios imediatamente sequentes

Termo em que se faz menção do ajuste das quatro colunas e paga dele por se acharem já as ditas colunas no santuário juntas a obra, e resolução que houve para se fazerem os aprestes para se levantarem e se mandou pagar ao mestre pedreiro o cabo que se lhe consumiu, na primeira condução das colunas …

Mais se propôs era necessário fazerem-se alguns aprestes para o levantamento das colunas, bem assim eram um calabre bem grosso, e seguro, para poder sustentar o excessivo peso das referidas colunas, e também uma roda, e varas, e como estava presente o nosso mestre da obra, e disse que na Páscoa, ou antes dela pretendia se levantassem as ditas colunas; por essa razão se deu faculdade aos nossos companheiros… para que cuide nos ditos aprestes com toda a segurança e equidade. Foi mais proposto pelo dito mestre pedreiro que se lhe consumira um cabo na condução da primeira coluna, e que valia 6$500 réis, e ponderado por esta mesa o dito prejuízo convieram em que se lhe pagasse…

e

Também foi proposto que o nosso mestre da obra António José Lopes tinha achado uma ideia ou modo para se prenderem e segurarem as colunas perpendicularmente quando se levantassem que por estarem já lavradas e se lhe não deixarem uns morros ou cabeças que sustentassem as cadeias e calabres para se subirem tinha posto esta mesa em grande consternação, pois se tinha cansado em procurar dos professores de arquitectura, curiosos, e mestres pedreiros, conduzindo estes ao Santuário, alguma ideia, que não (à margem: fosse a de serem furadas) pela fronteira se com efeito depois de um devoto e curioso ter feito um modelo em pau dando algumas ideias de prisão, que se não acharam suficientes pelo enorme peso delas, ultimamente disse o nosso mestre se devia fazer uma imprensa de pau que prendesse a coluna no meio, toda chapeada, e com quatro argolões nos quatro lados, e nas costas da mesma se devia furar para meter uma torno de ferro que a não deixasse correr acima, e para não correr a dita imprensa pela face da coluna, devia atar-se uma cadeira pela cinta e viesse prender a outro torno de ferro que devia estar quase no fim das costas da mesma, e para maior segurança e prumo, devia levar na cabeça um ferro da grossura de um braço, que se enterrasse pela mesma três palmos abaixo, cujo cadilhace (sic) pelas costas dela outro torno, e deste ferro devia pender o melhor calabre, e melhor roda, e dos quatro argolões outros quatro calabres e quatro rodas ou sarilhos que deviam puxar com igualdade, e logo esta mesa abraçou a dita ideia e mandou se aprontasse tudo o necessário debaixo da inspecção do dito mestre,…

E, finalmente,

… aí se lembrou que como se tinham levantado as colunas pelo modo supra, a primeira no dia 2 do corrente mês e a segunda no dia 4 do dito, e a terceira e quarta coluna foram levantadas ambas em um dia que foram 9 do corrente mês de Julho, e atendendo esta mesa ao excessivo trabalho que teve o nosso mestre pedreiro em cogitar os meios, e ideia, e engenho para elas se levantarem, a felicidade que houve que causou admiração a todo o povo que se juntou, pois não sucedeu a oficial algum o menor perigo, e por isso houve um alvoroço, e alegria, e grande contentamento em todo o povo, e em atenção ferido a respeito do dito mestre pedreiro, e pequeno salário que se lhe dá se mandaram dar de alvíssaras 6$400 réis, que se lhe levarão em conta ao nosso tesoureiro … nas que der por assim se vencer nesta Mesa.

Não me acredito que José Saramago tenha, alguma vez, conhecido estes textos. Mas também me não custa muito a crer que haja outros semelhantes quer na Biblioteca de Mafra, quer em outro qualquer arquivo público.

O “Memorial do Convento” não é só um romance fabuloso pelo excepcional poder de enfabulação do seu autor. É, também, uma das obras mais admiráveis pela verdade histórica que encerra.

Tenho a certeza que José Saramago fez um trabalho de pesquisa muito profundo porque os seus ambientes não são falsos no que respeita á História. Claro que são recriações de situações possíveis; mas estas recriações só foram feitas após muitas e muitas horas de leitura, de cansar os olhos em livros e livros sobre D. João V, sobre o século XVIII português, sobre o Homem barroco. Seria bem interessante que ele nos dissesse um dia não só quais foram as suas fontes de inspiração mas, também, quais foram as suas fontes de informação.

E o leitor gostou daqueles velhos textos? Ou achou que foi História a mais? Quererá dar-nos o prazer de nos comunicar a sua opinião? Muito obrigado.

Eduardo Pires de Oliveira

09/10/1787

Mais se mandou fazer menção neste livro de que já se achava junto a obra do novo templo a arquitrave ou padieira que se há de sustentar nas duas colunas que estão dos lados entre a porta do templo em que leva a descrição, cuja padieira saiu do mesmo penedo, que deu as quatro colunas, a que vulgarmente chamavam o Penedo Negro, sito na Chã de Felgueiras, freguesia de S. Bento de Donim, e tem de comprido vinte e dois palmos, e quatro de largo, e foi conduzido no mesmo carro das colunas, e levou dois dias a dita condução, que foram os dias 2 e 3 de Agosto deste presente ano

Arq. Bom Jesus Monte. 3º Livro dos Termos e acórdãos. 1786-1809, fol. 20-20v

A PEDRA-MÃE DO CONVENTO DE MAFRA E DE JOSÉ SARAMAGO E AS COLUNAS DA IGREJA DO SANTUÁRIO DO BOM JESUS DO MONTE

1. AS DIFICULDADES DO TRANSPORTE

Aprendi muito novo uma velha máxima latina: a de que nada há de novo neste mundo (nihil est novi sub terrae).

Nunca me preocupei em confirmar este aforismo. Mas um dia, já lá vão quase duas décadas, ao ler o maravilhoso livro que é o “Memorial do Convento” do nosso Prémio Nobel, José Saramago, pensei que haveria alguma coisa nova neste mundo, criada pelo génio literário deste nosso escritor.

Refiro-me à prodigiosa descrição que ele faz da vinda da Pedra-Mãe, desde as profundezas da pedreira onde foi extraída, a quilómetros do local onde o convento estava a ser levantado, até ao local para onde era destinada.

Fiquei de tal maneira encantado com estas palavras que tive o cuidado, de imediato de as reler, antes de avançar na leitura do romance; e, de vez em quando, não resisto e volto a procurá-las.

Perdoem-me todos os amantes desta obra prima absoluta que é o “Memorial do Convento”, perdoem-me os amantes dessa força mágica de mulher que é a Blimunda, mas as páginas que mais me encantaram foram aquelas em que homens e bois arrostaram com força a natureza para transformar um belo e monstruoso pedaço de pedra no pormenor fundamental dessa obra prima da nossa arte joanina que é o convento de Mafra.

Não exagero ao dizer que não foram só os homens que conduziam o imenso carro e que não foram só os bois que o puxavam que suaram de tanto esforço.

As palavras de Saramago são de tal forma contagiantes que, quando dei conta de mim, estava a meter a mão ao bolso à procura de um lenço para limpar a testa; e, passados mais alguns minutos, sei que fui ao frigorífico buscar uma cerveja, que a minha garganta também estava muito seca!

Sempre me questionei, portanto, se, acaso, esta descrição não seria uma coisa nova, em absoluto. Se assim fosse o velho aforismo cairia, embora em glória.

Há alguns anos, no decurso desta investigação e deste prazer desmedido que é o de querer conhecer tudo sobre a velha Braga barroca, tive oportunidade de publicar a tese de mestrado de uma “velha” Amiga, uma “minhota” de Minas Gerais, Mónica Massaro.

[Digo “minhota” porque ela é de Minas e nunca em local algum me sinto tanto em casa como lá: são as velhas casas, é o sacromonte de Congonhas, é a talha das suas igrejas, a utilização da couve-galega… tudo me faz lembrar este velho Minho].

 E encontrei então uma descrição interessantíssima sobre um problema grave que afectava os mesários da Irmandade do Bom Jesus do Monte, aqui junto a esta cidade de Braga. É que o projecto que o engenheiro Carlos Amarante concebera para a nova igreja incluía quatro colunas de dimensões colossais.

A resolução deste problema não era nada simples. Até porque se não restringia a uma só questão. Eram antes três, cada qual o mais complicado:

  • onde encontrar uma pedra de qualidade com tal dimensão;
  • como seria possível trazer da pedreira até à igreja as quatro colunas colossais;
  • e como, por fim, seria possível colocá-las no local para onde estavam destinadas.

Depois de longos trabalhos e pesquisas, depois de terem sido percorridos todas os campos e montes das redondezas, de terem sido inquiridos todos os mestres pedreiros e curiosos das aldeias vizinhas, apareceu, finalmente, a almejada pedra. A Mesa da Irmandade do Bom Jesus do Monte exultou tanto com a novidade que, para nossa sorte, teve o cuidado de expressar a sua satisfação, por mais do que uma vez, no livro de actas que então estava em uso. Eis as palavras que nos legaram:

Termo de Mesa pelo qual consta aparecera um penedo, que pela sua grandeza, e comprimento dava as quatro colunas do frontispício da nova igreja e se tinham já cortado duas, e se fizera um carro para as conduzir, e se pusera o dia 21 do corrente para a dita condução

Aos 21 dias do mês de Agosto de mil setecentos e oitenta e seis anos… foi proposto, que como se tinha procurado um penedo que houvesse de dar as quatro colunas para o frontispício da nova Igreja, que pela sua grandeza, era dificultoso o achar-se, pois se tinha assentado uniformemente deviam ser inteiras, para maior formosura, e grandeza da mesma obra, cujas colunas, segundo a arte, deviam ter cada uma vinte e cinco palmos de comprido, e largura proporcionada à mesma altura e comprimento; com efeito, depois de uma esquisita diligência, e trabalho, apareceu um penedo no monte chamado, a Chã de Felgueiras (à margem: vulgo o Penedo Negro), na freguesia de S. Bento de Donim, do qual penedo se tem já separado duas famosas pedras, que tem vinte e oito ou trinta palmos de comprido, e em quadro por cada lado quatro palmos; e como para a referida grandeza e monstro de pedra era necessário carro proporcionado, e igualmente seguro, se tinha mandado já fazer; e para a condução das ditas colunas, prometeu por seu zelo e devoção o Rev. Bernardo Francisco de Sá, vigário da igreja de S. Vítor desta cidade, aprontar todas as juntas de bois necessárias e o mais que lhe inspirar o seu zelo e devoção; e se tem assentado ser a condução de uma das referidas colunas no dia 21 do corrente mês; e por este termo se dá faculdade ao nosso tesoureiro para concorrer com o necessário para o jantar dos condutores…

Nos fólios seguintes, e dois dias mais tarde, foram acrescentadas mais estas palavras:

Aos 23 dias do mês de Agosto de mil setecentos e oitenta e seis anos… se ponderou o sucesso que tinha acontecido na condução da primeira coluna, porque foram vinte e duas juntas de bois, e todos os aprestes necessários de manufacturas de carpintaria, pedraria e lavoura; porém, como a pedra é de uma grandeza tão extraordinária que se assenta tem para cima de 120 quintais de peso e finalmente causou suma admiração e pasmo a todas as pessoas que concorreram desta cidade e aldeias vizinhas, e ainda aquelas, que têm visto na capital do reino as maiores obras, e pelo sumo peso e grandeza, se não pôde conduzir mais que em até a entrada da freguesia de Sobreposta, e por causa de se enterrara as rodas do carro não pôde continuar mais, e novamente querendo esta mesa dar novas providências para a referida condução, por consultas de inteligentes pessoas, uniforme se assentou se fizesse uma máquina, que um devoto queria fazer e experimentar, e tendo efeito se continuasse a condução da referida coluna com a brevidade possível, e havendo bom sucesso, logo se continuasse a quebrar as outras duas que faltavam, para se aprontarem enquanto os caminhos estavam secos.

E ainda estas:

Aos 15 dias do mês de Janeiro de mil setecentos e oitenta e sete anos… foi proposto… sobre a condução das colunas do novo templo pelas justas causas que nele se ponderaram se fizera com efeito o dito ajuste com António José da Silva morador na rua do Souto desta cidade, e José de Barros carpinteiro da freguesia de S. Pedro d’Este e por convenção que entre estes houve, veio a ficar tão somente o dito António José da Silva com a dita obrigação in solidum, cujo ajuste se fez pela quantia de 382$000 réis, de que se lavrou assinado, que fica na secretaria, e por se achar satisfeita a dita condução, e estar paga por nosso irmão tesoureiro …  como se mostra das pagas copiadas, digo lançadas no mesmo assinado pelo dito… se determinou e resolveu, se lhe houvesse por abonada, e levasse em conta a dita parcela por se ter tudo feito e tratado pelas resoluções desta mesa, tendo-se experimentado, e sendo pública a toda esta cidade a grande utilidade que houve naquele ajuste.

Para o leitor não pensar que esta descrição também é da minha imaginação – e bem gostaria eu de ter tal capacidade – aqui lhe deixo a indicação do local e do livro onde se guardam estas preciosas palavras: Arquivo da Irmandade do Bom Jesus Monte, Livro dos Termos e Acórdãos (1786-1809), fólios 3v-4v e 4v-5v.

Já vai longo este texto. Tenho que me ficar por aqui. Prometo que para o próximo jornal continuarei. Dar-lhe-ei então a conhecer as dificuldades que houve em colocar as colunas na fachada da igreja.

Obrigado pela sua paciência. E obrigado a si, José Saramago, por me ter sugerido este texto.

Eduardo Pires de Oliveira

Curso – Recuperação do Mosteiro de Tibães: A Preservação. A Salvaguarda. A Proteção. A Revitalização

Informações:
Local: Sala das Cavalariças do Mosteiro de Tibães.
Datas: 4 e 18 de março das 10.00 às 18.00 horas.
Número de participantes: máximo 30.
Preço do almoço na Hospedaria do Mosteiro: 20€
Organização: Associação Grupo de Amigos do Mosteiro de Tibães

Palmira

Diana Gonçalves

SINOPSIS CORTA
La vida que transcurre lentamente, repetitiva. Un cuerpo cansado pero a la vez resistente. Y del otro lado de la cámara, la tentativa de encontrar ese instante fugaz que nos revele algo más de la vida. De la observación a la construcción con el propio personaje. Palmira es el retrato de varios encuentros y testigo del proceso y evolución de ese retrato.

SINOPSIS
Palmira, conocida por la mayoría como la abuela de Galicia, fue una de las protagonistas de mi primer documental, Mulleres da Raia. La búsqueda en ese momento era otra, pero desde el día que la vi a través de la ventana, sentí la necesidad de volver para filmarla.
Y así lo hice. Un año después encontré el motivo y el espacio para hacerlo. Palmira es el resultado de 5 años de encuentros promovidos por el laboratorio de creación “El retrato filmado” (Play-doc, Festival Internacional de Documentales de Tui), que dio origen a varios retratos filmados en diferentes momentos y editado en una única pieza años después.
Palmira es el encuentro entre una mujer centenaria y una aprendiz documentalista que a lo largo de los años y durante unos días se reencuentran para construir su retrato. ¿Pero cuál? ¿El de Palmira o el de la documentalista? Sin quererlo inicialmente, ambos.
La vida que transcurre lentamente, repetitiva. Un cuerpo cansado pero a la vez resistente. Y del otro lado de la cámara, la tentativa de encontrar ese instante fugaz que nos revele algo más de la vida. De la observación a la construcción con el propio personaje.
Palmira es el retrato de varios encuentros y testigo del proceso y evolución de ese retrato.

Palmira. Realização: Diana Gonçalves. Espanha. 2017

BIOFILMOGRAFÍA
DIANA GONÇALVES (1986)
Nace en Tui en 1986. Licenciada en Comunicación Audiovisual por la Universidade de Vigo (2008). Máster en Comunicación e Industrias Creativas por la Universidade de Santiago de Compostela (2013).

En 2009 produce y realiza su primer documental cinematográfico Mulleres da Raia, que ha recibido varios premios en diversos festivales nacionales e internacionales. En 2010 da sus primeros pasos en la realización televisiva colaborando con la productora Pórtico Audiovisuales en el programa Ben Falado para Televisión de Galicia.

Paralelamente, en el campo de la producción, colaboró con la Agencia Gallega de las Industrias Culturales (AGADIC) en el diseño y organización de varios encuentros del programa CREATIVA, promoviendo el intercambio cultural multidisciplinar entre España y Portugal.
Su trayectoria como productora continuó en el estudio de post-producción sonora cinematográfica Cinemar Films con presencia en mercados internacionales.
En 2010, coordinó la retrospectiva documental “Carlos Velo: Mirar al margen”, siendo programadora de Filminho (Festival de Cine Gallego y Portugués). Asimismo, promovió y desarrolló varios workshops itinerantes en varios centros escolares de Galicia y Norte de Portugal.
Entre 2009 y 2013, fue miembro del laboratorio documental “El Retrato Filmado”, dirigido por Marta Andreu. Más tarde recupera el material y la pieza resultante, Palmira, es su segundo trabajo documental.
Actualmente, combina su faceta de documentalista con su actividad en el mundo de la empresa centrada en el marketing y la comunicación corporativa.

Para mais informação, aconselha-se a consulta da seguinte brochura (5 páginas).

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Albertino Gonçalves

A meus avós galegos Pura e Avelino

“E retratos, retratos espetaculares (…) Rembrandt não compreendia apenas os seus ricos clientes e a imagem que pretendiam projetar de si mesmos, ele também foi um manipulador virtuoso da pintura. Ninguém enxergou melhor a topografia das pálpebras da meia-idade, a oleosidade de um próspero nariz, a lacrimosa membrana vítrea dos olhos, a reluzente tensão de uma testa puxada para trás numa touca de linho. Observe o retrato de uma mulher com 83 anos na Galeria Nacional de Londres. Observe o tecido translúcido da touca alada, as bordas pintadas com uma única pincelada. Observe as suas sobrancelhas e as pálpebras caídas, feitas com pinceladas picantes, a melancolia levemente desfocada, o temperamento de vulnerabilidade pungente, o conjunto a suavizar a face de uma velha raposa, com a certeza ansiosa de que não demorará muito a encontrar o grande contador do céu. Não é, portanto, apenas um pintor, mas um psicólogo da condição humana, não concorda? Em que consiste a obra dos outros grandes vultos, Velásquez, Rubens, Van Dyck? Pintar máscaras, o olhar estudado de princesas e papas. Conhecem de antemão, muito bem, a máscara do dia: decisão marcial, preocupação majestosa, melancolia pensativa. Mas Rembrandt vê por detrás da pose e é isso que contribui para que os seus retratos nos toquem como os de mais ninguém. Podemos ver as pessoas a exibir as suas faces ao mundo. Mas isso não as diminui, antes lhes acrescenta simpatia” (Simon Schama. Rembrandt. Power of Art 3/8. BBC. 2006).

As sequências do filme Palmira, de Diana Gonçalves, recordam-me os retratos de Rembrandt. Entranham-se para além da aparência sem desnudar ou vulgarizar a pessoa.

 Palmira convida-nos a acompanhar o quotidiano de uma persona mayor solitária no entardecer da vida. Sem sombra de intrusão ou indiscrição, respira cumplicidade, humildade e respeito. Como quem bate a uma porta aberta. Entra-se, sem máscaras nem tipificações, surpreendendo a naturalidade do banal. Com empatia. Cada sequência oferece-se como uma janela, mas em sentido contrário do habitual: de fora para dentro, do exterior para o interior, com o devido resguardo e recato. Colhidas anos a fio com extremo cuidado, com uma câmara que sente mais do que regista, estas imagens dedicadas à intimidade de uma mulher centenária resultam raras, muito raras. E preciosas. Este filme de Diana Gonçalves é uma dádiva antropológica, uma aproximação ao humano que teima a escapar ao nosso olhar normal: o demasiado humano.

Reencontro biobibliográfico

Albertino Gonçalves

Quem fica. Fotografia de João Gigante. 2019

Deparei-me hoje, inesperadamente, online, com o artigo “La emigración portuguesa hacia Francia en la sigunda mitad del siglo XX: breve caracterización”, publicado, em coautoria com José Cunha Machado, na revista Migraciones y Exilios (3-2002, pp. 117-137). Tinha-lhe perdido o rasto, a tal ponto que, aquando do registo no currículo do CIENCIAVITAE, nem sequer lhe soube indicar a paginação. Um lapso obtuso, à luz dos cânones académicos, visto tratar-se de um contributo internacional. Não interessa! Agradeço esta surpresa uma partilha recente do seu tradutor: Benito Bermejo. Tamanha é a satisfação, que entendo partilhar o texto. Um motivo adicional impele. Volvidos vinte anos, retomo o tema da emigração. Na verdade, após um prolongado e quase absoluto retiro, estou a regressar a quase tudo.

Estou a estudar, com o Américo Rodrigues, as migrações em Castro Laboreiro até aos anos trinta do século passado, no âmbito do programa de investigação e intervenção Quem somos os que aqui estamos? Trata-se de uma iniciativa, inaugurada em 2016, associada ao MDOC Festival Internacional de Documentário de Melgaço, promovido pela AO NORTE – Associação de Produção e Animação Audiovisual e pelo Município de Melgaço. À equipa, composta também por Álvaro Domingues, Daniel Maciel, João Gigante, Carlos Eduardo Viana e Rui Ramos, cumpre dedicar-se, cada biénio, sucessivamente, a um agrupamento de freguesias do concelho. Após Parada do Monte e Cubalhão, primeiro, e Prado e Remoães, em seguida, estamos a concluir a União das Freguesias de Castro Laboreiro e Parada do Monte. De cada “caderno de encargos” constam a publicação de dois livros com imagens e textos, um com fotografias produzidas pela equipa, o outro com fotografias recolhidas junto da população, a promoção de duas exposições e a organização de vários encontros científicos e culturais. Já foram editados os livros Pedra e Pele (2018), Festa (2018), Quem fica (2019) e Uma Paisagem Dita Casa (2022). Um dos livros teima em permanecer no prelo. O mais recente, dedicado à freguesia de Lamas de Mouro, inclui o capítulo “A ave, o casal e a lápide: as esculturas da porta da igreja de São João Baptista de Lamas de Mouro”, uma boa ilustração da forma de investigação e comunicação que tenho vindo a adotar. Permito-me disponibilizá-lo também no Margens.

Salto. Fotografia de João Gigante. 2016

Albertino Gonçalves

Natural de Melgaço, doutorado em Sociologia, investigador do Centro de Estudos Comunicação e Sociedade, autor de Imagens e Clivagens: Os residentes face aos emigrantes (1996), Métodos e Técnicas de Investigação Social (1998), A Romaria da Srª da Agonia. Vida e Memória da Cidade de Viana (2000, c. Moisés de Lemos Martins & Helena Pires), As Asas do Diploma: a inserção profissional dos licenciados pela Universidade do Minho (2001), Da Universidade para o Mundo do Trabalho: Desafios para um Diálogo (2001, c. Leandro S. Almeida, Rosa Vasconcelos & Susana Caires), Dar vida às letras: promoção do livro e da leitura (2007, c. Fernanda Leopoldina Viana & Maria de Lourdes Dionísio), Vertigens do Barroco em Jerónimo Baía e na Actualidade (2007, c. Aida Mata, Ângela Ferreira & Luís da Silva Pereira), Perspectivas de Desenvolvimento do Município de Monção (2008, c. José Cunha Machado, Miguel Bandeira & Victor Rodrigues), Vertigens: para uma sociologia da perversidade (2009), A idade de ouro do postal ilustrado em Viana do Castelo (2010), Guimarães 2012: capital europeia da cultura: impactos económicos e sociais: relatório intercalar (2012, c. Rui Vieira de Castro, Fernando Alexandre et alii), Guimarães 2012, Capital Europeia da Cultura: impactos económicos e sociais: relatório final (2013, c. Rui Vieira de Castro, José Cunha Machado et alii).

Vestir os nus em vésperas do carnaval

No próximo dia 18, sábado, às 17 horas, apresento a conferência “Vestir os Nus. Censura e Destruição da Arte”, no auditório do museu arqueológico D. Diogo de Sousa, em Braga. Seguir-se-á, às 18 horas, noutra sala, com direito a bebida quente, uma mesa redonda sobre a censura na atualidade, com participação de vários amigos. Junto, como convite., o cartaz. Vai ser um encontro agradável e, estou em crer, compensador. Venha! E traga outro amigo, também.

Um Passeio pelas margens da memória

Teresa Lima

A porta abre e fecha; separa. A ponte liga; une. A ponte e a porta unem e separam. A janela também intercala mundos, mas o movimento propende a operar-se num único sentido, de dentro para fora. O olhar capta o exterior. A partir destas metáforas, Georg Simmel escreveu um dos textos mais curtos e brilhantes da Sociologia (“Brücke und Tür”, Der Tag. Moderne illustrierte Zeitung, n° 683, 15.09.1909, p. 1-3). Pela janela, o sujeito costuma ainda penetrar no mundo sem nele intervir.

Espécie de moldura para um retrato realista, a janela de Alberti não deixa de assentar num ponto de vista, de configurar, precisamente, uma perspetiva. Olhar pela janela é um ato relativo carregado de subjetividade. Acresce que a janela pode funcionar como espelho, em particular quando a luz, o foco, incide sobre o observador. Reflexiva, a prospeção reverte, agora, para mundos interiores, eventualmente, para a introspeção. Nada impede o recurso a várias janelas propiciador de uma visão múltipla, “poligonal” (José Saramago). Somando estes traços, resulta tentador convocar as figuras do flâneur e da deambulação, ao sabor de uma morna lenta e caprichosa, porventura melancólica, filtrada por “janelas portáteis”.

Este breve apontamento inspira-se no artigo “Um Passeio pelas margens da memória”, de Teresa Lima, que, de janela em janela, convoca, em diálogo íntimo, memórias, obras e autores. Passeia-se não pelas ruas de Paris mas pelos atalhos da vida nos interstícios da alma. Um tango dialógico de excursões e incursões entrelaçadas. Afins, o blogue Margens e a Passeio, Plataforma de Arte e Cultura Urbana, do Centro de Estudos de Comunicação e Sociedade, são água da mesma fonte. O presente texto de Teresa Lima inaugura a expressão desta parceria. (Albertino Gonçalves)

A minha estreia na Passeio, plataforma de arte e cultura urbana do CECS/UMinho, deu-se com um texto sobre a infância, intitulado Subúrbio na cidade.

Não é que tenha sido intencional, mas pensando retrospetivamente, penso que não poderia haver entrada mais fiel ao espírito da deambulação, que se pretende imprimir a este projeto.

Para mim, como para Miguelim, cada partida é o reconhecimento de que o lugar da infância só é verdadeiramente bonito quando o perspetivamos à distância. Aviso, desde já, que Guimarães Rosa será, nas próximas linhas, uma referência próxima do obsessivo. Depois de ter lido Grande Sertão Veredas (um vaguear filosófico pelo sertão pessoal e físico), tive receio de nunca conseguir ler mais nenhum livro, por indiferença a tudo que não fosse aquela oralidade cheia de subtilezas. O vaguear reflexivo que aqui pretendo calcorrear começa num ponto de tensão entre o aconchego de um lugar familiar, o desejo de sair e o susto provocado por geografias estranhas. Vou apoiada por companheiros de viagem.

Logo de rajada, surgem-me em catadupa imagens e referências: a rua da meninice, que ainda hoje hesito em pisar, as cidades que nos fustigam com os seus excessos, o anonimato urbano que nos faz respirar, o cheiro reconfortante de uma esquina conhecida e a vida. A minha e a dos outros com quem me tenho cruzado. De modo que tenho uma vaga ideia, mas não sei ao certo onde este percurso sem destino pré-definido – para um blogue sobre cultura, arte e imaginário – me poderá levar. O sentido de orientação nunca foi o meu forte, por isso, embalada pelo contexto das margens, confio na intuição como uma boa bússola para percorrer os caminhos da memória.

Peço licença para introduzir o conceito de biografia, a pessoa humana nos lajedos que trilha. Porque somos, antes de tudo, um corpo, que (se correr como o esperado) se desenvolve embalado por outros corpos, que são faróis no caminho. Falando nisto, adoro o romantismo dos faróis no meio da escuridão. Como gosto de barcos à deriva. O cheiro a óleo dos barcos, as amarras que se libertam no cais e a paisagem ao longe, fazendo-nos duvidar se é a vida que caminha por si só, como num travelling infinito, se somos nós que caminhamos por ela. E água que lava tudo. Sozinha, em Braga, há três décadas, deixei-me interpelar pelo granito das ruas, mudos edifícios que me olhavam sem delicadeza. Voltava sempre para o horizonte marítimo, ao fim-de-semana, como que para um balão de oxigénio.

Em Braga, havia uma janela na qual me debruçava (qual varandim de um barco) para observar o movimento da vizinhança. Sei, hoje, que a janela é uma justa metáfora da forma como encaramos a vida. Uma moldura concetual, um filtro. Porque a verdade (ao contrário do que cheguei a acreditar) nunca é um destapar do pano. “Tudo, aliás, é a ponta de um mistério. Inclusive, os factos”. (“O Espelho”, Primeiras Estórias). Como numa janela, observo as interseções dos lugares, não esperando nada, que é a mais completa forma de comprometimento e intervenção. Uno a ideia da janela a Manoel de Oliveira. Apreender uma vida através dos documentos produzidos no decurso de uma atividade, isto é, dar sentido a essa organicidade documental, é iniciar uma jornada a que nunca se encontra o fim, não há nada de universal e exato numa vida. Como num passeio, experienciei, neste projeto, o medo de encarar o desconhecido, a responsabilidade de calcorrear os caminhos corretos, a necessidade de despir todos os contextos, todas as ideias pré-concebidas, para aceitar o que o percurso nos propõe. A partir daqui, sou encaminhada, como num navio à deriva, para o filme Je rentre à la maison/Vou para casa.

O imprescindível turbilhão do exterior, que nos empurra, cedo ou tarde, para um regresso ao quente do útero. Que é uma casa onde não precisamos de fabricar nada, nem observar, quase nem respirar. É possível que vivamos em espiral e não em linha reta. O útero é como que uma caverna onde recarregamos baterias. Mas o redemoinho experimentado por um mergulho no mar, onde por momentos perdemos a noção espacial ou temporal, é, para mim, mais do que um desejo, uma inevitabilidade.

Assim sendo, sigo viagem e confesso-me numa encruzilhada. Mas é necessário ler as indecisões dos caminhos, “o diabo no meio do remoinho”. Miguelim adulto é Miguel em “O Buriti”, só percebi isso numa terceira leitura recente. De modo que Miguel, depois de viajado, procura um lugar-casa, que é o corpo de uma mulher que conhece superficialmente e por quem se apaixonou. É, também, um regresso ao útero, mas renovado. Não para morrer já, como com Michel Picolli, em Je Rentre à la Maison, mas para renascer. Uma espécie de olhar ao espelho ou a chegada de alguém que esperávamos, sem o sabermos conscientemente. Neste emaranhado paisagístico em forma de texto, olho as notas que tirei previamente. Escolho, para este pedaço de caminho, Guinga e a canção Meu Pai. Porque nos fala da infância, do que se espera que as ruas do subúrbio carioca respondam, perante a busca incessante de um autor pelo seu pai. Um cruzamento entre uma história de vida pessoal e um espaço público comum, carregado de memórias e desejos individuais. Voltamos à ideia do espelho, que é, claro está, um nunca completo processo identitário.

Por fim e ainda, uma outra janela. Neste caso, um outro filme, do realizador Edgar Pêra. A Janela (Marialva Mix) pode ser um olhar acelerado sobre o quotidiano de um típico bairro lisboeta. Ou uma espera numa janela, onde tudo passa e nunca se sabe bem se o que vemos a acontecer é resultado da nossa cabeça ou a realidade. Seja lá o que isso for. Uma vez mais, público e privado, particular e universal. Caminhos múltiplos, verdades e inverdades, espelhos que são o que queremos ver, sintonias e aversões. Prossigamos o Passeio.

Teresa Lima

Bolseira de investigação na Passeio- plataforma de arte e cultura urbana, é doutoranda de Ciências de Comunicação na UMinho, com uma tese que relaciona a biografia e a comunicação, a partir da história de vida do realizador Edgar Pêra. Com um percurso profissional que começou no jornalismo, enveredou, mais tarde, pelas Ciências da Informação, tendo participado no tratamento do arquivo Manoel de Oliveira, atualmente depositado na Casa do Cinema, na Fundação de Serralves.

A simulação da moral (do blogue Tendências do Imaginário)

Albertino Gonçalves

Giovanni Buonconsiglio. Aristóteles e Fílis. Circa 1500-1515.

«Mais quero asno que me leve, que cavalo que me derrube» (Gil Vicente, Farsa de Inês Pereira, 1523).

Manifestam-se cada vez mais frequentes os anúncios que aderem ao formato patente no anúncio russo Born Inclusive, da Naked Heart Foundation. Creio que se inspiram, por um lado, na sofisticação (quase) laboratorial da psicologia experimental e, por outro, na vulgaridade mediática dos “apanhados”. Não duvido que sejam eficientes e convincentes, mas comportam uma característica que me provoca algum ceticismo e renitência. Encenam situações ideais que tendem a afastar o ruído ambiente, as intromissões, eventualmente imprevisíveis, dos efeitos “parasitas”, por outras palavas, da contingência das variáveis e dos fatores que os sábios apelidam “espúrios”. Arrefecem a efervescência da vida, propendem a pintar o mundo a preto e branco: o certo e o errado, o bom e o mau… Uma simplificação sedutora. Convoco a máxima do sofista Protágoras, “O homem é a medida de todas as coisas, das coisas que são, enquanto são, das coisas que não são, enquanto não são”, e o pensamento de Pascal, a medida do homem é turbulenta, incerta e infinita. Lutar por um mundo melhor não significa caricatura-lo e descolori-lo. A redução maniqueísta e monocromática não me parece uma perspetiva apropriada, não é uma promessa auspiciosa.

Demasiado cínico? Estou em crer que mais vale cínico do que estúpido. “O indivíduo estúpido é o tipo de indivíduo mais perigoso”; “o indivíduo estúpido é mais perigoso do que o bandido; ” “É estúpido aquele que desencadeia um prejuízo para outro indivíduo ou para um grupo de outros indivíduos, embora não tire ele mesmo nenhum benefício e eventualmente até inflija prejuízo a si próprio” (Carlo Cipolla, Allegro ma non tropo, 1988).

Anunciante: Naked Heart Foundation. Título: Born Inclusive. Agência: Marvelous. Direção: Maksim Kolyshev. Rússia, março 2020.

Este comentário é, de algum modo, injusto para com o anúncio de sensibilização Born Inclusive, da Naked Heart Foundation. Trata-se de um exemplar de marketing e publicidade e como tal deve ser avaliado. Carece ser encarado à luz da linguagem do marketing e da publicidade e não de outra linguagem, por exemplo, a linguagem externa da filosofia e da sociologia. Neste sentido, este comentário apresenta-se como uma crítica “bárbara”, uma violência simbólica, na aceção de Pierre Bourdieu. Cai na falácia de impor um sistema de relevâncias, estranho, a outro sistema de relevâncias, original, francamente distinto. Do ponto de vista do marketing e da publicidade, este anúncio, criativo, consistente, pedagógico e eficaz, resulta excelente. Acerta no alvo: a predisposição para a discriminação não nasce connosco, é fruto da socialização primária, da endoculturação. Um pressuposto que vai de encontro a Rousseau (“A natureza faz o homem feliz e bom, mas (…) a sociedade degenera-o e o torna-o miserável”: Dialogues, 1772-1776) e a Durkheim (“A sociedade encontra-se portanto, a cada nova geração, na presença de uma tábua quase rasa sobre a qual é necessário construir a novo custo”: Éducation et sociologie, 1922).

Hieronymus Bosch. Removing the Stone of Stupidity. Detail. 1475-1480.

Acontece que um anúncio, para além de orbitar na esfera do marketing e da publicidade, não deixa de ser um fenómeno social. É composto por raízes (contexto), caule (suportes), ramos (redes e canais), folhas (ações) e sementes (efeitos) sociais. Não se pode escusar a uma leitura filosófica e sociológica, por mais corrosiva e cínica que seja. No que me respeita, não me inibo de ler nas entrelinhas de quaisquer modalidades de comunicação, principalmente aquelas que se são grávidas de consequências, quando não de efeitos perversos subliminares que não passam pelo crivo da consciência e do raciocínio avisados e oportunos.